31 agosto 2025

maria do rosário pedreira / nesse verão…

  
Nesse verão, o vento despenteou os campos e os barcos
andaram aos gritos sobre as ondas. A beleza excessiva
das crianças arrombou os espelhos; e as raparigas,
surpreendendo a intimidade dos pais, enlouqueceram
nos corredores e foram perder-se, também elas,
na volúpia dos dias. Nas árvores centenárias
 
rebentaram frutos que inflamavam a concha das mãos
e escorregavam para a boca com a pressa dos nomes
proibidos. O sol queimou as páginas do livro
interrompido na violência de um poema e revirou
os cantos do único retrato que resistira à moldura
do tempo. de noite, os rapazes deitaram-se às baías
 
atrás das estrelas; e os amantes, incomodados
com a exiguidade dos quartos, foram fazer amor
nos balneários frios da praia e acordaram nas vozes
um do outro. Já não sei o que disse e o que disseste:
 
o verão desarruma os sentimentos.
 
 
 
maria do rosário pedreira
o canto do vento nos ciprestes
gótica
2001





 

30 agosto 2025

marta cristina de araújo / hexagrama kan, depois de finisterra

  
 
TRONO SOBRE TRONO
 
 
O perigo é companhia para o soberano
que instalou seu trono sobre a dinastia
seu projecto (recto) vem do longe donde
se ameaçam o riso e o corpo o movimento
o segredo  (segrego) a fala o linguajar
do dia anterior continuadamente.
Nem todos são os súbditos, quem o conduziu
ao trabalho do quotidiano (ano) inquieto
entre o sono iniciado tarde nas manhãs?
 
Breve é o receio de (o meio) deslocar-se
da paisagem mar apreendida extensa
entre o fio a fio assíduo da janela.
O momento é pouco para olhar as tintas e a criança
acode à chamada urgente (gente) dos vizinhos
Surpreende (prende) o plano do levantamento
apropriado à sede (sede de melancolia)
no curso das leis seu código fechado
em área de confusos (usos) dos lugares.
 
Não é de desistência ainda o tempo
de há muito em sua mão a rédea de colares:
eu estou aqui segura e cúmplice
nada pretendo (entendo) além do encadeado
de anéis colhidos (escolhidos) devagar.
Talvez seja amor o medo da assistência
talvez seja amor a culpa d enão ter
o objecto (o ente) predilecto que refaz
solene esta alegoria do frágil (ágil) vidro
e nos separa (pára) à margem do poder.
 
 
 
marta cristina de araújo
os poemas da minha vida
miguel veiga
público
2004
 




29 agosto 2025

maria velho da costa / dois poemas

  
1.
Nem sei estimar das vestes sem costura
o fito e alba
ou louvar da tala dos instantes
um só vermelho.
Pelas moradas ledas e subtis
à passagem dos castos e escolhidos
                                                        sustenidos
dos lidos
nada soube
que mais que o sáurio verde não prossiga.
Nem escolhido é o signo por lavrado
entre a testa e o chão
no húmido verdor dalguma víscera.
Se casas são plantadas com perícia
e arrematados autos lautos
louvados por tão cautos
seja a lhaneza desta a palha da debulha
o verde devolvido em amarelo.
É que não sei dos nomes com firmeza
mais que o início quedo e boçal talo
nem companhia posso ou artefactos
que o langor da lagarta não assista
que não consinta e emergir dos cactos.
 
 
2.
No entretanto do tempo é que o verde resiste
o interstício manso     a prova do contínuo
que quebra o passo e mais que o acrescenta
o assegura; se a roda começou
e do metal a terra é estreita     diminui
e de redonda à recta se afeiçoa
pelo verde o sabemos     no intervalo
dum ponto a outro ponto
do recado
da boca a outra boca     da fissura
entre o nome e o feito vertical.
 
No caule o facto osso e a semente
no espaço a obra de metal e a folha crua.
 
                                    In Capital, 20.1.71



maria velho da costa
desescrita
afrontamento
1972

28 agosto 2025

maria amélia neto / o areal

  
 
Só há areia
E um céu demasiado lúcido.
A transparência intacta feriu o nosso cérebro,
Mutilou os nossos pensamentos,
Fez nascer violetas de fogo no silêncio.
Arrastados pelas torrentes de luz,
Alagamos de solidão os nossos olhos.
 
Nem silvados, nem pauis,
Nem o pulsar do álamo.
É necessário continuar,
Mas quem descobre o rumo da areia?
Escutei vozes e nem uma conhecia o caminho.
Inventei vultos para me fazerem companhia,
E todos mantiveram os olhos cerrados.
Se eram cegos, porque me sorriam?
E porque havia nos seus dedos
A sugestão da cítara?
E porque me apontou um deles
Um flamingo, um cipreste, um lago,
Que os seus olhos não viam
E que os meus tinham começado a imaginar?
 
 
 
maria amélia neto
cicuta em março (1964)
antologia da novíssima poesia portuguesa
m. alberta menéres, e. m. de mello e castro
moraes editora
1971
 



27 agosto 2025

isabel meyreles / o livro do tigre

  
 
                      XXX
 
          POST HANC DIEM
 
De mãos vazias
sem nada nas algibeiras
sem tigre no chapéu
sem pomba na manga
o poeta atravessa o palco
sobre a corda bamba das palavras
de mãos vazias
sem nada nas algibeiras
sem tigre na manga
sem pombas no chapéu
a sala está às escuras
as cadeiras vazias
os músicos partiram
o poeta está sobre a corda bamba
e as palavras foram-se como sempre.
O espectáculo terminou.
Cai o pano.
 
 
 
isabel meyreles
poesia
o livro do tigre 1976
tradução de isabel meyreles
quasi
2004




 

26 agosto 2025

ana hatherly / tipo h

  
 I O PÉ NA CABEÇA
II O INTERREGNO
 
 
I
 
e estava na praia vejo aquele
formoso rapaz correndo admirável
depois correndo como um pássaro
sobre a água asas abertas os in-
divíduos que encolhem diante de
certas pessoas querendo emitir
este deus correndo artrópode
desespera cai na água sopra
longe pé na cabeça quando regresso
cada vez mais insignifica depois
de vestido perdeu cerca de 20 cm
no seu estado de não companhia que
tem apenas conotações abjectas
e é querub
 
 
 
ana hatherly
poesia
1958-1978

moraes editores
1980




 

25 agosto 2025

ana luísa amaral / da solidão da luz

  
A casa em ruínas que vejo daqui
salta da janela, entra nesta sala,
mas não tem janelas que a façam brilhar,
as molduras rotas carregadas de ar,
as portas cobertas da hera mais pura,
as telhas brilhantes de ausência de cor,
e um buraco imenso onde o coração
devia luzir, se as ruínas não –
 
Morre devagar, como o universo,
galáxias e mares de estrelas e sóis:
política rara sem reis nem senhores,
mas tenso equilíbrio de forças sem luz.
 
Morrem devagar o tempo e os livros,
as estantes todas que habitam a sala:
pobre microcosmo do Bem e do Mal,
e do que nem isso, que é o mais vulgar.
 
Lembra-me, escarlate, só pela memória,
um livro maior de forças a sério:
o claro e o escuro de um igual terror
 
À casa em ruínas salvam-na essas asas
que vejo daqui, saltam da janela
e entram nesta sala. Não são as do anjo,
mas têm nas penas um sistema hidráulico
que as faz oscilar e rasar os ventos.
 
Olham-me, sombrias, dentro de um futuro
liso e sem ruínas – só de um chão mais puro
onde a casa houve, de janelas rasas
carregadas de ar. Só ele é comum
ao anjo e a elas, elas cheias dele,
ele, transportando e oscilando em paz.
 
Quando for sem ser? Só um limpo instante
de equalizador: ruínas e ventos,
janelas e anjo, heras e senhores
em mudas frequências, enxutos os sons?
 
E um poço vazio onde o coração
foi visto bater: partícula igual
ao pó de um cometa que um dia rompeu,
devorando o ar. E a casa em ruínas
abrandada em tempo, vogando no branco
de resplandecentes seis sílabas. Sós.
 
 
 
ana luísa amaral
vozes
dom quixote
2011




 

24 agosto 2025

inês lourenço / domingo

  
Hoje é o dia dos senhores
e dos sóis em algumas línguas. Noutras
já foi ontem ou será depois, conforme
o cansaço divino sucedeu ou
não ao sétimo dia. Vária
gente irá aos templos ou ao parque
passear o cão. É dia de
visitar o lar de idosos ou de
abastecer a nossa arca
congeladora. Os pais solteiros levam
os filhos a comer pizza e outros
putativos progenitores recuperam
as horas de sono convivialmente
líquidas. O ar das ruas
é mais leve devido à pausa de
domingo. Ao menos hoje acontece
algo de bom em nome de Deus.
 
 
inês lourenço
o segundo olhar
companhia das ilhas
2015
 

23 agosto 2025

ana paula inácio / 1 família feliz

  
Vamos para a praia e levamos:
 
– 1 baralho de cartas,
subtraindo as da electricidade e da água,
ficaremos com as de paus,
por uma questão de sobrevivência,
com 4 paus fazes uma canoa,
como no poema de 2000,
e as de espadas
que é arsenal bélico
de que não se desconfia
(a precaução é relativa à aparência islâmica);
 
– 1 bola de plástico
que jogaremos entre nós
sem levantar suspeitas
ou olhares a outrem
infringindo o 3.º dever
da lista deontológica cristã.
 
Não ergueremos a voz
a um decibel prejudicial ao meio ambiente,
ninguém dirá que
– e seguindo a equação agustiniana da feliciade
é dela condição necessária e suficiente um testemunho que
     a ateste –
não somos 1 família feliz.
 
 
 
ana paula inácio
2010-2011
averno
2011



22 agosto 2025

r. lino / nove instantâneos do sul

  
.quarto.
 
talvez a nora não tenha aqui
do seu tamanho o maior.
aqui.
 
Quando a vasta terra se descobre
lá mais para o sul
na primazia do deserto,
 
há enormes cegonhas poeirentas
que debicam nas raras águas
a funda alegria dos seus poços.
 
 
 
r. lino
nove instantâneos do sul
políptico
companhia das ilhas
2016
 

21 agosto 2025

maria teresa horta / laranja

  
Rosa branda na espuma
do meio-dia
com janelas abertas nas laranjas
 
E um risco de sombra
sobre o sal
traçado devagar, como uma franja
 
Meu claustro de musgo
e de fermento
onde o ferro se perde de humidade
 
Onde o tempo se inventa
noutro tempo
feito de musgo, framboesa e carne
 
 
 
maria teresa horta
poesia reunida
educação sentimental
dom quixote
2009
 

20 agosto 2025

fernanda botelho / as coordenadas líricas

  
Desviou-se o paralelo um quase nada
e tudo escureceu:
era luz disfarçada em madrugada
a luz que me envolveu.
 
A geométrica forma de meus passos
procura um mar redondo.
Levo comigo, dentro dos meus braços,
oculto, todo o mundo.
 
Sozinha já não vou. Apenas fujo
às regras emboscadas.
Em cada esfera desenho o meu relógio
– as minhas coordenadas.
 
 
 
fernanda botelho
as coordenadas líricas  (1951)
antologia da novíssima poesia portuguesa
m. alberta menéres e e. m. de mello e castro
moraes editora
1971
 
 


19 agosto 2025

judith teixeira / a sesta



 

 

O sol em calmaria sofucante,
abrindo as grandes azas luminosas
adejou sobre a serra culminante
abrazando-lhe as faces pedregosas…
 
Subindo luminoso, mais brilhante
abrangeu as planícies argilosas
emudecendo a fonte sussurante –
sequioso, anda, a sorver as rosas!...
 
As abelhas, zumbindo nos silvados,
lembram pingos de fogo, condensados,
a refulgirem sob as suas azas…
 
E descansando á sombra dos sobreiros
o encalmado rancho dos ceifeiros
foge aos seus beijos rubros como brazas!
 
Agosto – 922
 
 
 
judith teixeira
castelo de sombras
1923