Não é
necessário fugir, perder-se em qualquer sítio
debaixo de uma
identidade que não é a minha?
Ao longo desta
madrugada estive a ver a passagem das nuvens
e tenho os olhos
cheios da minha própria cinza.
No écran do
céu, por cima desta cidade abstracta,
acossadas pelas
sirenes e pelo tráfico das auto-estradas
vi-as lá no
alto a serem pasto do frio,
porventura símbolos
de domínios alheios, mensagens de uma íntima irrealidade.
Certas ocasiões
tinham forma de fronteira como folhas que voam
de um mistério
para não sabemos onde, noutras eram o rosto
mutável dos
sonhos ou pareciam planetas desertos,
grandes
rochedos cósmicos, objectos esquecidos
nos limites de
uma tragédia que estava prestes a chegar.
Soube que as
suas metamorfoses me falavam
de qual era o
destino dos homens
e decidi
renuncia à sua beleza.
Debaixo da sua
fragilidade, debaixo da sua enganadora doçura,
debaixo da sua
aparência humilde e quase introvertida
são um lugar de
ninguém, como o Génesis.
E o seu cheiro
a terra húmida, as gotas
com que às
vezes caíam nos meus gerânios
apenas
assinalavam o caminho do pouco que sou, do meu abandono.
Por isso
pergunto se não é preciso fugir.
ser outra vez
um grão de areia na poeira de outro tempo.
Embora saiba
que há-de levar-me a este mesmo lugar, embora ali me esperem
estas mesmas
alamedas brilhantes e sonâmbulas como uma furgonete de distribuição,
estes mesmos
pombos pensativos criados com a combustão
dos motores e
com flocos achocolatados de cereais,
embora me
esperem este mesmo vento e estas mesmas folhas secas
que se arrastam
ao pé de dias igualmente escuros e fugazes.
Ao longo desta
madrugada estive a ver a passagem das nuvens
sem consolo,
como um homem perdido,
enquanto elas
reflectiam pouco a pouco nos vidros
da minha casa
as coisas que perdi, o meu desamparo.
Nuvens que eram
tempo e que passavam mudas, nuvens
que eram restos
de mim e cuja passagem não deixava qualquer marca
sobre a
geografia desta cidade, só um punhado de sombras,
quase nada,
perplexidades e desvarios no meu coração.
Vi-as descer à
minha pele e encheram-me o rosto
de silêncio, do
silêncio que vem dos bairros adormecidos,
do silêncio que
vem do outro lado das coisas,
de um
insuportável desdém.
Vi-as arrastar
a gordura dos seus ventres
pelo que esta
cidade oferece:
sexo,
laboratórios de condutas do prazer,
fábricas de
tratamento de resíduos afectivos, cruzamentos ferroviários
onde convergem
diferentes nostalgias,
áreas de oração
para estimular o consumo
e a obesidade
sentimental.
Quando senti a
ferrugem dos seus nervos
nos nervos dos
meus olhos, quando senti que elas
eram eu
próprio, só um punhado de cinza,
o
tele-predicante do novo dia gritava de um estúdio de televisão:
– Sai daqui,
desaparece, que ninguém te conheça.
Deixa atrás de
ti os passos da tua fuga.
Corre, os
países hão-de passar um após outro,
os diferentes
estados de consciência.
Apenas necessitas
da mecânica dos teus pulmões
para receberes
umas migalhas de misericórdia. Por seres homem.
Por veres que
tudo se acelera. A velocidade cardíaca,
os pensamentos,
a elevada temperatura da tua espinha dorsal.
Toda a tua
miséria. Os rumos do teu exílio à margem,
sempre à margem
das coisas.
diego doncel
em nenhum paraíso
trad. joaquim
manuel magalhães
averno
2007