V
Não falo do indivíduo, do ardor
sensual e sentimental…
outros vícios terá, outro é o nome
e a fatalidade do seu pecado…
Mas há nele tantos outros vícios comuns,
de antes de ter nascido, e um tão grande
pecado objectivo! Os actos
nele ou fora dele nascidos, que o fazem
despertar para a vida, não escapam a uma só
das religiões que na vida existem,
hipotecas de morte, instituídas
para enganar a luz, iluminar o engano.
Se os seus restos se destinam a ser
sepultados no Verano, é católica
a sua luta com eles: jesuíticas
as manias a que habitua o coração;
e ainda mais intimamente: na sua consciência
há astúcias bíblicas… e um irónico ardor
liberal… e a tosca luz, entre náuseas
de dandy provinciano, de uma saúde
provinciana… Até aos ínfimos detalhes
em que se esfumam, num fundo animal,
a Autoridade e a Anarquia… Bem protegido
da virtude impura e da embriaguez do pecado,
defendendo uma ingenuidade de obcecado,
e com quanta consciência!, assim vive o eu: assim
vivo, iludindo a vida, tendo no peito
o sentimento de uma vida que seria esquecimento
dolorido, violento… Ah como
compreendo, mudo neste húmido rumor
do vento, aqui onde Roma é silêncio,
por entre os ciprestes cansadamente revolvidos,
junto de ti, a alma a quem uma inscrição chama
Shelley… Como compreendo o
turbilhão
dos sentimentos, o capricho (grego
no coração do patrício, visitante
nórdico) que o engoliu no ofuscante
azul do mar Tirreno; a alegria
carnal da aventura, feita de beleza
e de infância: enquanto a Itália, prostrada
como no ventre de uma cigarra
enorme, escancara brancos litorais,
salpicados, no Lácio, por velados bosques
de pinheiros, barrocos, amareladas
clareiras de eruca, onde dorme
com o membro túrgido envolto nos andrajos, num sonho
goethiano, o rapazinho de Ciociaria…
Sombreados, na Maremma, por rastos deslumbrantes
de sagitários onde se destaca a mancha clara
das avelaneiras, nos carreiros que um pastor
enche, sem saber, da sua juventude.
De uma fragrância alucinante nas enxutas
curvas da Versilia, que para o mar,
emaranhado, cego, volta os estuques claros,
e os leves embutidos dos seus campos
pascais totalmente humanos,
sombrios em todo o Cinquale,
nítidos no sopé das tórridas Apuanas,
vítreos azuis sobre o cor-de-rosa… Semeados de rochedos,
escombros, revolvidos, como por um pânico
de fragrância, na Riviera, húmida,
escarpada, onde o sol luta com a brisa
para dar suprema suavidade aos óleos
do mar… E em redor zumbe de alegria
o interminável instrumento de percussão
do sexo e da luz: tão habituada
está Itália que não treme, como
se estivesse morta em vida: gritam, calorosos,
em centenas de portas, o nome
do amigo jovens de tez morena e
radiosa, por entre a gente
da terra, junto dos campos de cardos,
em sórdidas e minúscula praias…
Irás pedir-me, tu morto austero,
para renunciar a esta desesperada
paixão de estar no mundo?
pier paolo pasolini
le ceneri di gramsci
poemas
trad. maria jorge vilar de figueiredo
assírio & alvim
2005