11 maio 2015

fernando luís / num café de bolonha


2
Desceu a ponte
e caminhou pela fria margem.
As infiguráveis alegrias
da sua vida, os amigos,
a amargura.
A cruel sedução dos corpos
roubara-lhe repouso
e juventude.

Ao sorriso seguiu-se
o esgar: à esperança
o trajecto

entre o café, a cama
e a afeiçoada ponte do jardim.


fernando luís
num café de bolonha
as escadas não têm degraus 3
livros cotovia
março 1990



10 maio 2015

antónio franco alexandre / todos os pecados hoje, nenhum falta



todos os pecados hoje, nenhum falta
ao seu orgulho de água e alavanca. assim
é fácil sob a cortina
o ouvido confessional;

paisagens tão marítimas que um dia
será tarde e nunca os automóveis
passam sem o leve
assobio dos pinhais;

vantagens conseguidas palmo a palmo,
vinhas, o trigo, lã, comércio
de pimentas absortas,

e não obedecer. assim desejo
o seu olhar retido nas imagens,
a sua fonte de lazer, pecados.

  
antónio franco alexandre
poemas
assírio & alvim
1996



09 maio 2015

miguel de unamuno / portugal



Do mar Atlântico na margem pura
se senta uma matrona desgrenhada
ao pé da serrania coroada
de triste pinheiral. Nos joelhos dura

os cotovelos pousa, e o rosto na mão,
e crava ansiosos olhos de leoa
no sol poente, e o mar em frente entoa
de maravilhas a fatal canção.

Diz-lhe de longes terras e de azares,
enquanto ela os pés banha nas espumas,
sonhando absorta o trágico império

que se abismou nos tenebrosos mares,
e fita que entre as agoureiras brumas
se alça D. Sebastião, rei do mistério.




miguel de unamuno
poesia do século XX
(de thomas hardy a c.v. cattaneo)
tradução de jorge de sena
editorial inova
1978




08 maio 2015

carlos de oliveira / visão de josé gomes ferreira no vanderman



Nos cimos,
Onde a água esperava o momento de vir lavar os homens,
Você viu
por um súbito rasgão da insónia
os animais miúdos comidos pelos maiores, os maiores comidos pelos homens,
          os homens roídos pela antropofagia e pelos dentes amarelos das estrelas.
Desde então,
o seu remorso brota de cada gota-recordação do Vanderman
e o tempo, devorando as estrelas, engorda mais com as grandes patas fulvas
          atoladas em nossos corações,
essa lama de sangue.



carlos de oliveira
edoi lelia doura
antologia das vozes comunicantes da poesia moderna portuguesa
organizada por herberto helder
assírio & alvim
1985





07 maio 2015

fernando pessoa / o amor é que é essencial



O amor é que é essencial.
O sexo é só um acidente.
Pode ser igual
Ou diferente.
O homem não é um animal:
É uma carne inteligente,
Embora às vezes doente.
  


fernando pessoa



06 maio 2015

györgy somlyó / jogo, gato 7



Põe o mesmo ardor para brincar
com o rato e com a folha de prata
e quer com a folha quer com o rato
o seu combate é caso de vida ou morte
trata das suas necessidades
e da sua limpeza em busca de vitaminas
segundo o mesmo ritual exacto
do mesmo modo faz cair da mesa
com leves toques o maço de cigarros
não executa nada que não seja importante
e nada que não constitua um prazer
nada que não seja necessário
e nada que não seja belo
ele é o felix catus ludens
que faz desaparecer pela sua simples essência
o grande dilema
da história da cultura e da genética
desde há centenas de milénios
é brincando que ele reproduz
as regras estritas do seu jogo existencial.


györgy somlyó
poemas
tradução de egito gonçalves 



05 maio 2015

carla diacov / amanhã alguém morre no samba



significar o osso da coisa queridinha
os enfeites da casa gritam comigo
ombreiras esquadrias agulhas gatinhos da china
decoram as margens do meu amor
o osso
me afundo na tua reminiscência
o osso e as antenas
gritam
como se tudo fosse o grande do tempo
as esquadrias dos óculos gatinhos da china
omoplatas de prata queridinha
o bafo da trilha
a carne da coisa
tão necessária insignificante
na estrutura superfície da aberração amor



carla diacov
amanhã alguém morre no samba
douda correria
2015



04 maio 2015

michális ganas / perplexidade



Passas junto aos outros,
Medes-te às ocultas,
Dão-te por cima da tola.
Onde escondem eles
o corpo ajoelhado?
Na mala de couro
ou na alma de palha?

Disparam baixo as metralhadoras
ou te esquivas ou levantas voo.


michális ganas
(n. 1943)
«akáthistos deipnos»
atenas, 1985
tradução de manuel  resende




03 maio 2015

hugh macdiarmid / vejam! nasceu uma criança



Pensei numa casa em que as pedras pareciam de súbito mudadas,
Tornando-se prenhes de esperança, uma esperança tão sólida como elas,
E a atmosfera, quente desse amoroso calor,
O calor da ternura e de almas que anseiam, a sorridente ansiedade
Que rege uma casa onde uma criança estás prestes a nascer.
As paredes estavam cheias de ouvidos. Todos falavam em voz baixa.
Só a mãe tinha o direito de gemer ou de queixar-se.
Então pensei no mundo inteiro. Quem cuida das suas dores
E procura abraçá-las em igual carinho e paz?
O que há é o fragor monstruoso dos estéreis, que em nada contribuem
Para o grande fim em vista, e o futuro tacteia,
Um mau parto, não como a criança nessa grácil casa,
Ouvida na quietude a virar-se no útero da mãe,
Feita já um espírito estratégico, em busca do melhor modo
De se apresentar à vida, e por fim, resoluto,
Saltando para a história a tremer como um peixe,
Caindo no mundo como um fruto maduro em tempo certo. ─
Mas onde está o Passado, a quem o Tempo, por entre lágrimas sorrindo
Ao filho recém-nascido, se dirige e diz: “amo-te”?



hugh macdiarmid
leituras, poemas do inglês
tradução de joão ferreira duarte
relógio de água
1993




02 maio 2015

paul verlaine /lucien létinois – V



Tenho o furor de amar. Meu coração é louco.
O quando e o onde, e a quem, importa pouco.
Que um clarão de beleza, virtude, ou pujança
Brilhe, e ele se precipita, e voa, e se lança.
E, enquanto a posse dura, de mil beijos cobre
O objecto ou o ser que o seu entusiasmo dobre
De um valor que não tem. Quando a ilusão se encolhe,
Regressa triste e só, mas fiel, como quem escolhe
Deixar de si aos outros, ele, alguma cousa
De sangue ou carne. Mas não morre, nem repousa,
E o tédio o faz partir para a terra das Quimeras,
De onde nada trará, só lágrimas severas
Que saboreará. Desesperos de um instante,
E logo se reembarca. Teimoso segue avante,
Sem sequer se dar conta que na infinidade,
Navegador casmurro, há sempre um escolho que há-de
Fazê-lo naufragar antes que aporte à margem
A que apontara o rumo da perdida viagem.
Mas trampolim ele faz do escolho, e logo nada
Para a praia. Lá está. Mas estranha vezada
Será que avidamente não corra e percorra,
Desde que o sol é nado até que o poente morra,
De lés a lés o promontório inteiro.
E nada! Árvore ou erva ou fonte no braseiro,
Mas fome só, e a sede, e o sol como metal,
E nem vestígio humano, um coração igual!
A ele não - jamais há-de encontrar alguém -
Mas coração humano, um coração também,
Que esteja vivo, ainda que falso, palpitante!
E espera, sem perder a força latejante
Que a febre lhe sustenta, e que o amor lhe ganhe,
Que um barco o mastro erecto ao longe lhe desenhe,
A que faça sinais, e venha, e que o recolha:
Assim ele raciocina. E quem se fia? Olha!...
Apóstolo tão estranho, um dia há-de acabar.
Se a morte o deixa sempre, aos outros quer matar.
Os mortos, os seus mortos, mais morto ele está!
Uma fibra qualquer, sempre nas tumbas há,
Do seu fogoso ser, que aí vive docemente.
Aos mortos ama como uma ave o ninho quente.
Lembrá-los - almofada em que adormece e vai
Sonhar com eles, vê-los e falar-lhes. Sai,
Ainda embebido deles, pra uma aventura horrenda.
Tenho o furor de amar. E então? Não tenho emenda.


paul verlaine
poesia de 26 séculos, segundo volume
de bashô a nietzsche
antologia, tradução de jorge de sena
editorial inova
1972




01 maio 2015

henry thoreau / fumo



Ligeiro fumo alado! Ó ave de Ícaro,
Fundindo as asas na ascensão da fuga,
Pássaro mudo, anúncio da alvorada,
Sobre as aldeias como em torno a um ninho;
Ou sonho a despedir-se, impura forma
De nocturna visão, erguendo a túnica;
Pela noite, as estrelas encobrindo,
E pelo dia denegrindo o sol;
Vai tu, incenso meu, suplica aos deuses
Que nos perdoem tão formosa chama.


henry thoreau
poesia de 26 séculos, segundo volume
de bashô a nietzsche
antologia, tradução de jorge de sena
editorial inova
1972




30 abril 2015

lawrence ferlinghetti / não dormi com a beleza toda a vida



Não dormi com a beleza toda a vida
fazendo inconfidências a mim próprio
dos seus encantos planturosos

Não, não dormi com a beleza toda a vida
mas com ela menti
fazendo confidências a mim próprio
de como ela nunca morre
mas jaz à parte
no meio dos aborígenes
da arte
e paira por cima dos campos de batalha
do amor

Está acima de tudo isso
muito acima
Está sentada no mais selecto dos assentos
da Igreja
lá em cima onde os administradores da arte marcam encontros
para escolherem o que há-de ficar para a eternidade
Eles, sim, dormiram com a beleza
durante toda a vida
Eles, sim, alimentaram-se da ambrósia
e beberam o vinho do Paraíso
e por isso sabem exactamente como é que
uma coisa bela é uma alegria
para sempre e para sempre
e como é que ela nunca nunca
pode inteiramente desvanecer-se
num nada que leve à bancarrota

Oh não, nunca dormi
em Regaços de Beleza como esses
receando levantar-me de noite
com medo de perder nesses segundos
qualquer belo movimento que ela esboçasse
E contudo dormi com a beleza
à minha estranha maneira
e fiz uma ou duas cenas terríveis
com a beleza na minha cama
de onde transbordou um poema ou dois
de onde transbordou um poema ou dois
para este mundo tão parecido com o de Bosch



lawrence ferlinghetti
a coney island of the mind
trad. josé palla e carmo
cadernos de poesia
dom quixote
1972





29 abril 2015

herberto helder / descobrimento


(...)

Dizem que Ghoete escreveu e rescreveu os seus poemas.
Leonardo era mortalmente paciente diante das cores.
E que sabemos dos outros, os mais antigos?
Tudo é eternamente recomeçado. Não se sabe
o que acharam. Acharam alguma coisa - os antigos, os modernos?

O que esse homem procurava e achou não é exemplo.
E embora toda a poesia seja uma proposta ou solução moral,
nós, os desta nação, mal podemos imaginar as alegrias
e dores do homem estrangeiro, ao frio e à névoa,
na grande solidão dessa rua circular que talvez não exista em Antuérpia
nem noutra qualquer cidade de um tão grande, tão grande mundo.

Mas quem pode confiar em nós, que somos desta terra,
e por isso tão pouco a conhecemos?

(...)


herberto helder
os passos em volta