29 junho 2006

post it / m. f. s.

candelabros



candelabros minha flor de laranjeira

sussurrava o sussurrante ao ouvido esquecido

candelabros ofuscantes na paisagem futurista dos teus sonhos

entre leitos alvos espalhados na planície

luzes incolores nos olhos das crianças adormecidas

candelabros meu amor de fim de mundo



m.f.s.


22 junho 2006

um poema de: juan gelman

chuva


hoje chove muito, muito,
dir-se-ia que estão a lavar o mundo.
o meu vizinho do lado vê a chuva
e pensa em escrever uma carta de amor /
uma carta à mulher com quem vive
e lhe faz a comida e lava a roupa e faz amor com ele
e se parece com a sua sombra /
o meu vizinho nunca diz palavras de amor à mulher /
entra em casa pela janela e não pela porta /
por uma porta entra-se em muitos sítios /
no trabalho, no quartel, na prisão,
em todos os edifícios do mundo /
mas não no mundo /
nem numa mulher / nem na alma /
quer dizer / nessa caixa ou nave ou chuva que chamamos assim /
como hoje / que chove muito /
e me custa escrever a palavra amor /
porque o amor é uma coisa e a palavra amor é outra coisa /
e só a alma sabe onde as duas se encontram /
e quando / e como /
mas que pode a alma explicar /

por isso o meu vizinho tem tempestades na boca /
palavras que naufragam /
palavras que não sabem que há sol porque nascem e morrem na
mesma noite em que ele amou /
e deixam cartas no pensamento que ele nunca escreverá /
como o silêncio que existe entre duas rosas /
ou como eu / que escrevo palavras para regressar
ao meu vizinho que vê a chuva /
e à chuva /
ao meu coração desterrado /



juan gelman
“no avesso do mundo”
trad. colectiva da casa de mateus
revista por ana luísa amaral
quetzal
1998




20 junho 2006

citações

“Quinta, 22 de Novembro

(...) Fui jantar com o Roger [ Fitzroy Street] e encontrei-me com o Clive. Sentámo-nos à volta da mesa quadrada e baixa, coberta com uma bandana, e comemos de travessas, cada uma com uma espécie diferente de feijão ou alface: comida deliciosa, para variar. Bebemos vinho, e a terminar comemos um queijo branco e macio, com açúcar. Depois, pairando esplendidamente acima de personalidades, falou-se de literatura e de estética.
“Sabe, Clive, descobri um pouco mais acerca do que é essencial a qualquer arte: sabe, a arte é representativa. Diz-se a palavra árvore e vê-se uma árvore. Muito bem. Ora todas as palavras têm uma aura. A poesia combina as diversas auras numa sequência…” Foi mais ou menos assim. Eu disse que se pode, e é o que se faz realmente, escrever com frases, e não apenas com palavras; o que não fez avançar muito a discussão. O Roger perguntou-me se eu baseava a minha escrita numa textura ou numa estrutura; associei estrutura com enredo e portanto disse: “textura”. Depois discutimos o significado de estrutura e de textura na pintura e na literatura. Depois discutimos Shakespeare, e o Roger disse que a ele Giotto o entusiasmava precisamente da mesma maneira. Isto continuou até que me forcei a sair, precisamente às dez. E discutiu-se também poesia chinesa; o Clive disse que era demasiado longínqua para se poder compreender. O Roger comparou a poesia com as pinturas. Gostei muito de tudo aquilo (isto é, gostei da conversa). Há sem dúvida muita coisa que é perfeitamente vaga, e que não é para se levar a sério, mas esta atmosfera faz urna pessoa ter ideias e, em vez de se ter de as abreviar ou de as desenvolver em muitíssimas palavras, pode-se simplesmente dizê-las que há logo quem as entenda - ou melhor, quem discorde. O nosso velho Roger tem uma visão deprimente, não da nossa vida, mas do futuro do mundo; mas creio ter detectado a influência de Trotter e das massas, de modo que não lhe dei crédito . Mas quando saí para Charlotte Street, onde se deu o crime do Bloomsbury há uma ou duas semanas, e vi uma multidão atropelando-se na estrada e ouvi mulheres a insultarem-se e outras que, atraídas pelo barulho, acorriam, deliciadas — toda esta sordidez me fez pensar que ele era bem capaz de ter razão.
Hoje o dia tem estado perfeitamente quente e muito sereno, e nós só tivemos tempo, depois de acabar de imprimir uma página, de chegar até ao rio e ver tudo reflectido perfeitamente a direito na água. O telhado vermelho de uma casa tinha a sua nuvenzinha de vermelho no rio – as luzes acesas da ponte desenhavam longas listas em amarelo – muito tranquilo, e como se fosse o coração do Inverno. “


Virgínia Woolf,
Diário primeiro volume 1915-1926, trad. Maria José Jorge, Bertrand Editora, 1985



19 junho 2006

pictures at an exibition / peter blume

Photobucket - Video and Image Hosting

Peter Blume
(American, born Russia, 1906–1992)
South of Scranton
1931

George A. Hearn Fund, 1942 (42.155)


15 junho 2006

estações

8)


“Duas horas da manhã. Os ratos procuram nos caixotes os restos do dia morto: a cidade pertence aos fantasmas, aos assassinos, aos sonâmbulos. Onde estás tu, em que leito, em que sonho? Se te encontrasse, tu passarias sem me ver pois não somos vistos pelos nossos sonhos. Não tenho fome: esta noite não consigo digerir a minha vida. Estou cansada: caminhei toda a noite para semear a tua recordação. Não tenho sono: nem sequer tenho apetite da morte. Sentada num banco, embrutecida apesar de tudo pela aproximação da manhã, deixo de me lembrar que te procuro esquecer. Fecho os olhos... os ladrões não querem senão os nossos anéis, os amantes a carne, os pregadores as nossas almas, os assassinos a vida. Podem tirar-me a minha: desafio-os a nada lhe mudar. Inclino a cabeça para ouvir por cima de mim o remexer das folhas... Estou num bosque, num campo... É a hora em que o Tempo se disfarça de varredor e Deus talvez em trapeiro. Ele avarento, ele teimoso, ele que não consente que se perca uma pérola nos montes de cascas de ostras às portas das tabernas. Pai nosso que estais no céu... Verei alguma vez vir sentar-se a meu lado um velho de sobretudo castanho, com os pés enlameados por ter tido, para me alcançar, de atravessar sabe Deus que rio? Ele deixar-se-ia cair no banco, tendo na mão fechada um presente muito precioso que seria o bastante para tudo mudar. Abriria os dedos lentamente, um após outro, muito prudentemente, por que aquilo foge... Que seguraria ele? Uma ave, um germe, uma faca, uma chave para abrir a lata de conserva do coração?”

Marguerite Yourcenar, fogos, trad. Maria da Graça Morais Sarmento, Difel, 1995

08 junho 2006

post it / oswaldo roses


DOS POEMAS HEREJES


"Sólo la dulzura puede estar en la herejía,
en la rebeldía del amor frente a todo"

O. Roses




I

De este polvo que te ofrezco habrá un antes y un después,
irremediablemente tú dirás "antes" y, luego, "después",
¿no crees?;
porque el amor ha nacido en la carne
y para ella sencillamente

(si sufres, sufre ella y no Dios;
si mueres, muere ella y no Dios;
si se condena, es condenada ella y no Dios),

¡nada hay más sagrado que la carne que ama!




II

Te quiero un poco sí del cielo,
te quiero más palabra perdidamente profunda -más-,
te quiero con una cierta valentía del crepúsculo atronador,
te quiero niña,
te quiero a las cinco del invierno,
te quiero por cara entierraprejuicios,
te quiero ante los guerreros de tus pezones,
te quiero a silbos que te mecen,
te quiero perra y flor,
te quiero un poco azul y canibalesco.







oswaldo roses



06 junho 2006

post it / anderson henrique de sousa


o caminho do bem



Tantas estradas retas
que vão dar no céu
e o caminho sinuoso
é o que me chama,
com seus buracos, pedras
e ausência de cruzes.

Estradas que não se cruzam
nem se sobrepõem.

Se sigo o caminho pior
que só faz mal a mim
e a mais ninguém
sou cobrado pela boca do mundo
que me fez chorar
me fez querer
roubou minha vida
meus sonhos retém
e que me aponta a estrada reta...
o caminho do bem.




anderson henrique de sousa



31 maio 2006

pictures at an exibition / j. m. w. turner

Photobucket - Video and Image Hosting


J.M.W. Turner
Sunrise with Sea Monsters
c. 1845
oil on canvas
91.5 x 122 cm.
Tate Gallery, London

29 maio 2006

post it / l. maltez




o dia chegou puro.
os olhares falavam num silêncio
onde as palavras tinham todas um nome
e a eternidade se fechava sobre um corpo
parado nas águas, entre os espaços
para assistirem ao nascimento das árvores

o grito do verão ressoava entre formas mudas,
delicadas, impregnadas de delírios imaginários.
alguém parte o silêncio e o transforma
em sons vergados, sensíveis às palavras vivas,
atrás fica uma vida, remexida desabaladamente
numa leveza, estrangulada entre dedos

olhares bailam enfeitiçados sobre as áscuas...

murmuram ao longe, frases ríspidas e frias
o vento arrasta soprando as vozes em pedaços,
agarrando a vida, que deseja invencível
lento, leve e moroso deixa respirar o dia.
mergulha na alegria suplicante da voz
onde ardem, na alma, chamas de desejo
assumido num jogo de amor único

escapa-se o pensamento, afunda-se
dentro da paixão voraz,
espelhada no sorriso dum peito aberto
o fio liga a veia, no abraço da morte
triunfante, a festa tornou-se imortal,
sufoca de júbilo,
entre palavras que passam a correr

o momento, amadurece na terra
cativo do nome que persegue...




l. maltez

24 maio 2006

estações

7)


Alice Loureiro, 2001




em acrílico forte


não sei
a que cidade cheguei

lembro-me de ter vinte anos
e cegar

perdi
o que nenhum homem sabia perder

e alguém me disse:
- desenha a tua morte

e eu peguei nos meus olhos
e fiz este silêncio negro

porque os meus olhos
eram negros

e neles é que eu guardava
a vida e a morte


foi há muito tempo
pois sou um homem muito velho

sou tão velho
como a distância do caminho que percorri

lembro-me que fui
que fui, como o sangue vai numa veia

até ao coração
do nada

até sofrer a eternidade
como uma pedra ou um planeta

fui na gota de mim
ao oceano de mim

e agora cheguei
sem saber onde cheguei


estou no mais abstracto
de um ser

estou na minha alma
ou no meu sonho

estou na essência
do que faz enlouquecer

sinto-o na cor forte
que me devolve os olhos

no estranho calor
que me concede humanidade

não sei
a que mundo cheguei

sou um velho
que ensaia o seu olhar

e há esta cidade estranha
onde não corre o vento

onde nenhum céu vigia
nenhum horizonte define


estou sentado
num prado de aço

e nenhuma estrada
foi escrita

nenhum rio
foi pintado

nenhum ser
foi dito


sou um velho
e ensaio o meu olhar

exerço-o no invisível
que precede as coisas

que está antes do objecto
antes do ser

e tenho nas mãos
a ciência dos gestos

tenho a Arte
sou o talento da vida

por isso
gota a gota

dou-me
um mar

dou-me
os homens e as mulheres

e dou-me em cada um
a voz

todas as vozes
até ao esplendor do grito


e nesse rumor
nesse quase cantar

é que oiço o nome
do que me chama

não sei
que cidade me espera

sou um velho
sou um pássaro cego

que voa adormecido
os seus vinte anos






gil t. sousa
poemas
2001



20 maio 2006

um poema de: mário cesariny



do capítulo da devolução



Hoje venho dizer-te que morreste e que velo o teu corpo no meu
leito, um corpo estranho e surdo um corpo incompreensível

aquele desespero que deixou de ter forças para erguer os portais do
outro reino tristeza de menino a quem tiraram tudo, até
a tinta e as flores e o prazer de gritar

esse (foi visto) deve subsistir porque é a tua maneira de tomar banho
no cosmos, olhar o cosmos como os que ainda podem
interrogar as ondas e morrer

mas tu ainda não sabes a que ponto morreste; vais até à janela, aspiras
com cuidado o oxigénio que o espaço te oferece, apontas
rindo a meiga criatura que pela rua arrasta a sua condição
de animal fulminado

depois olhas para mim, olhas as tuas mãos, e elas ambas, tão claras,
tão seguras, são as mãos de um soldado a arder em febre,
aves a percorrer o seu novo deserto

mas tu sabes, tu vistes, e mais do que eu; a mão do homem é doce e
iluminada como a noite como um rasto de fumo sobre
os hospitais

tivemos uma história mas a história foi-se, em fileiras angélicas e
gratas, a fazer a manhã de outras paragens; outra sombra,
outros olhos semelhantes

noutro leito nas nuvens deito os teus cabelos, o teu cansaço e a
minha miséria, os teus braços e os meus, altos como
cidades, altos como flores

parou o automóvel, lá em baixo, e eu não tenho mais que descer as
escadas, fechar ainda a porta do teu quarto, atravessar de
um pulo a minha própria vida

agora posso sonhar até deixar de te ver

belo rio sem lágrimas




mário cesariny
pena capital
assírio & alvim
1982