08 outubro 2025

artur do cruzeiro seixas / ao longo dos muros

 



 

 
Ao longo dos muros
a cal confirmava
que desceria uma ave
ao mais profundo de ti
e daí
incendiada no teu sangue
de todas as cores
a todas as palavras
enfim
daria asas.
 
Áfricas, 58
 
 
cruzeiro seixas
viagem sem regresso
tiragem limitada
2001
 



07 outubro 2025

antonio gamoneda / pássaros

  
 
Pássaros. Atravessam chuvas e países no erro dos
ímanes e dos ventos, pássaros que voavam entre a ira
e a luz.
 
Voltam incompreensíveis sob leis de vertigem e de
esquecimento.
 
 
 
antonio gamoneda
livro do frio
trad. de josé bento
assírio & alvim
1999
 



06 outubro 2025

alberto pimenta / balada de gaudência

 




 
paciência
gaudência
nem sempre
o céu
tem clemência
e se a
violência
da cheia
levou a aldeia
lembra-te
de pompeia
e escuta
a melopeia
das ondas
batendo
na areia
 
e de futuro
seja escuro
ou haja
lua-cheia
vai com o
nascituro
para o monturo
celebrar
a última ceia
e cantar
com a sereia:
 


  
alberto pimenta
obra quase incompleta
fenda
1990





05 outubro 2025

fernando echevarría / o outono

  
 
O outono é, sobretudo, esse limite
que, esquecido do corpo dos seus frutos,
e até da luz, retém somente o timbre
que do palato deduziu o uso
da inteligência. A fim de
ficar um travo a reformar o luto
e a analisá-lo. Para instituir-se
luz dessa luz. ou sapiência, culto
de estações a mover-se. Nunca tristes,
mas transparências a irisar-se ao fundo.
O outono aí, declina sempre. Insiste
na inteligência desse timbre arguto.
 
 
 
fernando echevarría 
geórgicas
afrontamento
1998





04 outubro 2025

gonçalo m. tavares / esconderijo

  
 
Do teu esconderijo vê, e no teu esconderijo constrói,
sai dele apenas quando puderes dar algo aos outros.
Antes, é cedo demais, muito depois, é excessivo egoísmo.
Mas mesmo esta convicção não ajuda, não sei
Como viver, não sei o que é mais moral, mais ético,
Onde intervir, para onde olhar, ouvir o quê?
Há tantas coisas que falam ao mesmo tempo.
 
 
 
gonçalo m. tavares
1 poesia
relógio d´água
2004
 



03 outubro 2025

pedro tamen / os dias

  
1
 
Não há mais céu
se ele não cai
humilde acaso
no seu lugar.
Não há melhor
nem som mais puro
que o natural
dos nossos olhos.
Não vale a pena
fazer brinquedos
se as nossas mãos
são de criança.
 
 
 
pedro tamen
os dias
tábua das matérias
poesia 1956/1991
círculo de leitores
1995






02 outubro 2025

eugénio de andrade / as mãos e os frutos

  
 
X GREEN GOD
 
Trazia consigo a graça
das fontes quando anoitece.
Era o corpo como um rio
em sereno desafio
com as margens quando desce.
 
Andava como quem passa
sem ter tempo de parar.
Ervas nasciam dos passos
cresciam troncos dos braços
quando os erguia no ar.
 
Sorria como quem dança.
E desfolhava ao dançar
o corpo, que lhe tremia
num ritmo que ele sabia
que os deuses devem usar.
 
E seguia o seu caminho,
porque era um deus que passava.
Alheio a tudo o que via,
enleado na melodia
duma flauta que tocava.



eugénio de andrade
as mãos e os frutos
poesia
fundação eugénio de andrade
2000
 



01 outubro 2025

antónio franco alexandre / dos jogos de inverno

  
 
5
 
eu a morrer debaixo do sol e eles sentados
apreciando coxas e mármores pendentes
no verão seco ao fim de nenhuma tarde, eu
desalinhavado pelo vento, crescido no meio das chamas,
correndo pelas ruas paralelas e sórdidas da antiguidade clássica,
eu também eu de guia e asno e cabriola na duna encardida de sol
e a agreste sabedoria das mãos cortadas rente eu e eles
apreçando o remate
 
 
dormir dormidos nas esteiras, a corda
presa nos dentes, que surpresa quando me tomaste,
pela primeira vez era uma noite de algum vento e das
esquias chaminés subia a chuva como uma nuvem
caída na memória e para nunca mais
então acaricio-te as orelhas distraidamente como quem
está duvidoso de comprar e sabe que não deve
apressar o remate
 
 
eu a morrer como se fosse coisa nenhuma cheia de pressa
esmorecida pelo sol eu e eles sentados como se fosse
uma pressa vazia de coisas uma opressão às portas
do grande mercado demasiadamente silencioso e atento
acaricio-te as mãos bem cortadas, o reflexo do
melhor mármore antigo,
eu a morrer como se fosse o menor preço e eles
sentados com os olhos na cara a boiar!
 
 
 
antónio franco alexandre
dos jogos de inverno
poemas
assírio & alvim
1996





 

30 setembro 2025

nuno júdice / setembro

  
A poesia dá-se bem com este mês,
cuja medida se assemelha à do verso – dias
partidos ao meio, deixando a alma indecisa
numa evocação de gastos sentimentos. Mas é
no campo, ao poente, saboreando o cheiro doce
dos frutos que apodrecem na terra, como algas
mortas, que uma voz insistente chama – poe-
sia? Quem, por detrás do seu rosto sonoro e
abstracto? Memória que a noite depressa apaga…
 
 
 
nuno júdice
50 anos de poesia
antologia pessoal (1972-2022)
dom quixote
2024




 

29 setembro 2025

albano martins / solfejo

  

De algumas pedras também às vezes necessitas. Boleadas, como os seixos, são elas que dão consistência à arquitectura do poema. Porque nelas, como no solfejo das algas, resiste ainda, ou é somente o seu resíduo, a música das águas.
 
 
 
albano martins
escrito a vermelho
campo das letras
1999




 

28 setembro 2025

al berto / doze moradas de silêncio

  
 
6
 
hoje é o sexto dia,
sexta morada de silêncio
 
anotar os nomes das flores e
suas significações emblemáticas
     absintio / amargura, tristeza
     asfódelo / coração abandonado
     cinerária / dor de coração
     glicínia / ternura
     junquilho / melancolia
     silindra / recordações
anotar os nomes das areias e das argilas mais profundas
os nomes dos insectos e dos minerais
as marcas discretas das coisas cortantes
e recopiar algumas palavras de Amers:
 
          … Tol que j'ai vu dormir dans ma tièdeur de
          femme, comme un nomade roulé dans son étroite
          laine, qu'il te souvienne, ô mon amant, de toutes
          chambres ouvertes sur la mer où nous avons aimé.
 
manter a imobilidade absoluta dos rochedos
recear as falésias onde a lua abriu um sulco
tactear teu rosto disperso pelos ventos
recolher a dor na penumbra do entardecer
 
anunciar a noite com a ponta dum punhal de veludo
espiar o frémito súbito das estrelas… reler tudo
mantendo o corpo em surdina
 
 
al berto
doze moradas de silêncio 1978/1979
o medo
assírio & alvim
1997




 

27 setembro 2025

amadeu baptista / prisão


 

Recebo a mão sobre o ombro que aqui me vem
prender como a mão de um amigo.
Seque a figueira e o fruto prometido,
estaque o vento para todo o sempre,
não seja nunca mais o mar o mar.
Recebo a mão sobre o ombro que aqui me vem
Prender como a mão de um amigo.
 
 
 
amadeu baptista
paixão 2003
caudal de relâmpagos
antologia pessoal 1982-2017
edições esgotadas
2017



 

26 setembro 2025

anna akhmatova / para a poesia

  
 
Tu guiaste-nos através do inexplorado
como uma estrela cadente na escuridão.
Foste a amargura e a mentira.
Nunca o consolo.

 
*
 
A fama nadou como um cisne
através da neblina dourada
e tu, meu amor, foste sempre
o meu desespero.
 
 
 
anna akhmatova
é por isso que a alegria é mais alta
poemas russos dos séculos vinte e vinte um
versões de luís filipe parrado
contracapa
2022