04 junho 2025

diana v. almeida / firenze

 



 

 
Assaltam-me os anjos
renascentistas súbitos
infantes zelosos lúcidos
pálidos andróginos esguios
fina cabeleira em cascata
asa em riste pena matizada
descem em esquadria
dos altares laterais
aureo
lado
s.
 
 
 
diana v. almeida
cosmos e casas
editora urutau
2021







03 junho 2025

ilka brunhilde laurito / lamentação de natércia

 
 
 
VIII
 
Amor é fogo? ou é candente lágrima?
Pois eu naufrago em um mar de labaredas
que lambem o sangue e a flor da pele acendem
quando o rubor me vem à tona d’água.
 
E como arde, ai, como arde, Amor,
quando a ferida dói porque se sente,
e o mover dos meus olhos sob a casca
vê muito vem o que devia não ver.
 
Solitária andarei e descontente?
Mas como posso andar, Amor, com as gentes,
se teus braços de ausência é que me estreitam?
 
Pois se dois corpos só acharão lugar
no mesmo exacto e mensurado espaço,
em solidão tão larga eu já não caibo.
 
São Paulo, 1984
 
 
 
ilka brunhilde laurito
colóquio letras nr. 90
março 1986
fundação calouste gulbenkian
1986
 



02 junho 2025

cesário verde / num bairro moderno

 
 
 
Dez horas da manhã; os transparentes
Matizam uma casa apalaçada;
Pelos jardins estacam-se as nascentes,
E fere a vista, com brancuras quentes,
A larga rua macadamizada.
 
Rez-de-chaussée repousam sossegados,
Abriram-se, nalguns, as persianas,
E dum ou doutro, em quartos estucados,
Ou entre a rama dos papéis pintados,
Reluzem, num almoço, as porcelanas.
 
Como é saudável ter o seu aconchego,
E a sua vida fácil! Eu descia,
Sem muita pressa, para o meu emprego,
Aonde eu agora quase sempre chego
Com as tonturas d’uma apoplexia.
 
E rota, pequenina, azafamada,
Notei de costas uma rapariga,
Que no xadrez marmóreo d’uma escada,
Como um retalho de horta aglomerada,
Pousara, ajoelhando, a sua giga.
 
E eu, apesar do sol, examinei-a:
Pôs-se de pé; ressoam-lhe os tamancos;
E abre-se-lhe o algodão azul da meia,
Se ela se curva, esguedelhada, feia,
E pendurando os seus bracinhos brancos.
 
Do patamar responde-lhe um criado:
«Se te convém, despacha; não converses.
Eu não dou mais.» E muito descansado,
Atira um cobre lívido, oxidado,
Que vem bater nas faces d’uns alperces.
 
Subitamente - que visão de artista! -
Se eu transformasse os simples vegetais,
À luz do Sol, o intenso colorista,
Num ser humano que se mova e exista
Cheio de belas proporções carnais?!
 
Boiam aromas, fumos de cozinha;
Com o cabaz às costas, e vergando,
Sobem padeiros, claros de farinha;
E às portas, uma ou outra campainha
Toca, frenética, de vez em quando.
 
E eu recompunha, por anatomia,
Um novo corpo orgânico, aos bocados.
Achava os tons e as formas. Descobria
Uma cabeça numa melancia,
E nuns repolhos seios injectados.
 
As azeitonas, que nos dão o azeite,
Negras e unidas, entre verdes folhos,
São tranças dum belo cabelo que se ajeite;
E os nabos - ossos nus, da cor do leite,
E os cachos d’uvas - os rosários d’olhos.
 
Há colos, ombros, bocas, um semblante
Nas posições de certos frutos. E entre
As hortaliças, túmido, fragrante,
Como d’alguém que tudo aquilo jante,
Surge um melão, que me lembrou um ventre.
 
E, como um feto, enfim, que se dilate,
Vi nos legumes carnes tentadoras,
Sangue na ginja vívida, escarlate,
Bons corações pulsando no tomate
E dedos hirtos, rubros, nas cenouras.
 
O sol dourava o céu. E a regateira,
Como vendera a sua fresca alface
E dera o ramo de hortelã que cheira,
Voltando-se, gritou-me, prazenteira:
«Não passa mais ninguém!... Se me ajudasse?!...»
 
Eu acerquei-me d’ela, sem desprezo;
E, pelas duas asas a quebrar,
Nós levantámos todo aquele peso
Que ao chão de pedra resistia preso,
Com um enorme esforço muscular.
 
«Muito obrigada! Deus lhe dê saúde!»
E recebi, naquela despedida,
As forças, a alegria, a plenitude,
Que brotam d’um excesso de virtude
Ou d’uma digestão desconhecida.
 
E enquanto sigo para o lado oposto,
E ao longe rodam umas carruagens,
A pobre afasta-se, ao calor de agosto,
Descolorida nas maçãs do rosto,
E sem quadris na saia de ramagens.
 
Um pequerrucho rega a trepadeira
D’uma janela azul; e, com o ralo
Do regador, parece que joeira
Ou que borrifa estrelas; e a poeira
Que eleva nuvens alvas a incensá-lo.
 
Chegam do gigo emanações sadias,
Oiço um canário - que infantil chilrada! -
Lidam ménages entre as gelosias,
E o sol estende, pelas frontarias,
Seus raios de laranja destilada.
 
E pitoresca e audaz, na sua chita,
O peito erguido, os pulsos nas ilhargas,
D’uma desgraça alegre que me incita,
Ela apregoa, magra, enfezadita,
As suas couves repolhudas, largas.
 
E, como grossas pernas d’um gigante,
Sem tronco, mas atléticas, inteiras,
Carregam sobre a pobre caminhante,
Sobre a verdura rústica, abundante,
Duas frugais abóboras carneiras.
 
 
 
cesário verde
o livro de cesário verde e outros poemas
penguin clássicos
2024
 



01 junho 2025

eugénio de andrade / aos inimigos

 
 
 
Falta ainda trazer a estas páginas, nem que seja obliquamente, esses que engordam com o ódio. Vêm ao anoitecer, no rastro lento da melancolia, a enxúndia a reluzir de satisfação. Alguns amaram-me tanto quando eram jovens que seria mesquinho negar-lhes agora um copo de vinho ou um lugar ao lume para aquecerem as mãos. Novembro já chegou, e o frio desculpa de certo modo a promiscuidade.
 
20.3.86
 
 
 
eugénio de andrade
vertentes do olhar
poesia
fundação eugénio de andrade
2000



 

31 maio 2025

italo calvino / as cidades e a memória

 
 
1.
 
Partindo-se dali e andando três dias para Levante o homem encontra-se em Diomira, cidade com sessenta cúpulas de prata, estátuas de bronze de todos os deuses, ruas pavimentadas a estanho, um teatro de cristal e um galo de ouro que canta no alto de uma torre todas as manhãs. Todas estas belezas o viajante já as conhece por tê-las visto também noutras cidades. Mas a propriedade desta é que quem lá chegar numa noite de Setembro, quando os dias já diminuem e as lâmpadas multicores se acendem todas ao mesmo tempo por cima das portas das lojas de peixe frito, e de um terraço uma voz de mulher grita: uh!, lhe apetece invejar os que agora pensam que já viveram uma noite igual a esta e que então foram felizes.
 
 
italo calvino
as cidades invisíveis
trad. josé colaço barreiros
teorema
1999




30 maio 2025

primo levi / canto dos mortos em vão

 
 
 
Sentai-vos e negociai
À vossa vontade, velhas raposas grisalhas.
Iremos amuralhar-vos num palácio esplêndido
Com comida, vinho, boas camas e bom fogo.
Para que possais negociar e chegar a bom termo sobre
A vida dos nossos filhos e dos vossos.
Que toda a sabedoria da criação
Convirja para bendizer as vossas mentes
E vos guie no labirinto.
Mas lá fora ao frio, nós iremos esperar-vos,
O exército dos mortos em vão,
Nós os de Marne e de Montecassino,
De Treblinka, de Dresden e de Hiroshima:
E estarão connosco
Os leprosos e os tracomatosos,
Os desaparecidos de Buenos Aires,
Os mortos do Cambodja e os moribundos da Etiópia,
Os pactuadores de Praga,
Os exangues de Cálcuta,
Os inocentes massacrados em Bolonha.
Ai de vós se saís sem acordo:
Sereis cingidos ao nosso abraço.
Somos invencíveis porque somos os vencidos.
Invulneráveis porque já mortos:
Nós rimo-nos dos vossos mísseis.
Sentai-vos e negociai
Até que se vos seque a língua:
Se a ruína e a vergonha durarem
Iremos afogar-vos na nossa podridão.
 
14 de Janeiro, 1985
 
 
 
primo levi
a uma hora incerta
trad. rui miguel ribeiro
edições do saguão
2024
 



29 maio 2025

pier paolo pasolini / à bandeira vermelha

 
 
 
 
Para quem só conhece a tua cor, bandeira
                                                     vermelha,
tu deves realmente existir para que ele exista:
quem se cobria de crostas cobre-se de chagas,
o trabalhador torna-se mendigo,
o napolitano calabrês, o calabrês africano,
o analfabeto um búfalo ou um cão.
Quem mal conhecia a tua cor, bandeira
                                                     vermelha,
está prestes a deixar de te conhecer, até com
                                                  os sentidos:
tu que já te gabas de tantas glórias burguesas
                                                  e operárias,
torna-te de novo trapo, e que o mais pobre te
                                                     desfralde.
 
 
 
pier paolo pasolini
a poesia é uma mercadoria inconsumível
poemas e recensões
trad. joão coles
sr teste edições
2022




28 maio 2025

cesare pavese / eles estiveram lá

 
 
 
Lua terna e geada nos campos ao dealbar do dia
assassinam o trigo.
 
                            No plaino abandonado
aqui e ali putrefacto (é preciso tempo
para que o sol e a chuva sepultem os mortos),
era mesmo assim um prazer acordar e ver
se também a geada os cobria. A lua
inundava tudo, e alguns pensavam na manhã
em que a erva brotaria ainda mais verde.
 
Aos aldeãos que olham choram-lhes os olhos.
Este ano, quando o sol voltar, se voltar,
Só haverá folhinhas queimadas para segar.
Lua tenebrosa – só sabe comer as brumas,
e, em noites claras, as geadas são como dentada de serpente
que da verdura faz tanto estrume. Eles estrumaram
a terra; agora também o trigo ficará feito em estrume,
e não vale a pena olhar, e estará tudo ardido,
putrefacto. É uma manhã que deita abaixo um homem,
só de acordar e percorrer com os vivos
todos aqueles campos.
 
                                 Verão despontar mais tarde
algum tímido verdor na planura deserta,
sobre o túmulo do trigo, e terão de lutar
para o reduzir também a estrume pelo fogo.
Porque o sol e a chuva protegem só as ervas daninhas
e a geada, depois de queimar o trigo, não volta mais.
 
 
 
cesare pavese
antepassados
trabalhar cansa
trad.carlos leite
cotovia
1997




 

27 maio 2025

fiama hasse pais brandão / do muro

 
 
 
Este muro avança com a estrada,
caminha para o cume e para o vale.
Se eu parasse junto dele, dir-me-ia:
aceito e recuso o movimento,
vou e não vou por vários horizontes,
sou e não sou infindamente.
 
 
 
fiama hasse pais brandão
as fábulas
quasi
2002




26 maio 2025

josé agostinho baptista / encontro

 



 

 
está sentado
ligeiramente inclinado para sul
e o olhar detém-se ao alto        à direita
nas amarelas planícies de van gogh       pintor
que muito o impressionara na sua agitada juventude.
 
continua sentado
ligeiramente inclinado para sul
adormecido nos pomares abundantes nas chuvas que
desde o outono passado humedecem a ilha
o rosto calmo
de uma serenidade permeável e consentida
e dorme ainda.
 
 
 
josé agostinho baptista
biografia
assírio & alvim
2000
 



25 maio 2025

alexandre o'neill / amigos pensados: manuel

 
 
 
Manuel sai de amador às quatro para a pesca,
passa-me à porta, faz com a tosse o ponto e vírgula,
escarra como se fosse no país.
 
Com duzentos anzóis há quase sempre um peixe,
que nós conversamos quando, regressado,
Manuel abre a oficina e recomeça a mesa
que talvez acabe para mim.
 
 
 
alexandre o´neill
feira cabisbaixa 1965
poesias completas
assírio & alvim
2000
 




24 maio 2025

fernando assis pacheco / cuidar dos vivos

 
 
 
Como as ordens de Sebastião José
de Carvalho e Melo no terramoto
«cuidar dos vivos, enterrar os mortos»,
digo deste amor que tive
pior que terra sacudindo-se,
 
em que morri, matei, enchi a noite
de gemidos agudos sob as pedras
(onde era a rua, gente, Alfama, pombos),
Eugénio dos Santos para riscar Lisboa.
 
Porque é preciso agora cuidar dos vivos,
pôr os mortos no seu lugar:
que não tomem o lugar dos vivos.
Abrir as janelas ao sol de Maio,
beber o sol, beber Maio e a vida.
 
Moveu-se a terra, caíram casas, largou-se
o rio Teo por Lisboa dentro.
Ó amor sepultei-te, quero um amor
mais firme do que a terra, mais veloz que o vento
uma cidade nova nos meus olhos.
 
 
 
fernando assis pacheco
cuidar dos vivos (1963)
a musa irregular
tinta-da-china
2019




 

23 maio 2025

fernando luís sampaio / mínimo de existência



 
I
 
Chega a primavera com as folhas
Desavindas, o céu desatrelado invade
Trincheiras e monturos, aqui tu não vens,
Fechas os olhos para impedir
O peso do horizonte, o odor
Dos corpos que já não cantam,
Das mãos que pacíficas ainda
Trazem um pequeno lume, mas tu
Não vês, são pedaços reluzentes,
Montículos de mica sem boca e rosto.
Quando tudo terminar, mas nada termina
De verdade, sob
O silêncio destas ruas ficarão
Os nossos sonhos – e não voltes a falar
Do mar, nem das nuvens harmoniosas,
Porque a morte não é um vago vocábulo.
 
 
II
 
O teu corpo assim-sim
É uma galáxia compacta, sem saída
Ou entrada, uma espécie
De paisagem do que ficou,
Do que vai ficando
Do clamor das matinas.
És inteiro em partes iguais,
Como quem parte e reparte
E perde a melhor parte, e remendas
O erro com outro erro,
O teu mínimo de existência.
 
 
III
 
O que resta dos dias pardos
Vem bater à tua porta,
Qual mão espectral do destino.
A copiosa escuridão mete-se
A caminho, importuna a clareza do verso.
 
Sob o detrito da língua
Faísca o fio da espada.
 
 
IV
 
Um coração fechado só abre feridas.
Afinal do que falas?
O que dizes p’lo que fica
Por dizer?
Éramos muito jovens e a vida
Ainda nos desejava
Com muitas madrugadas e
A floração do desejo nas crinas
Marítimas – uma constelação inteira
A colapsar sobre nós.
Nenhuma memória é residência fiável.
Afinal, do que falas então?
 
 
 
fernando luís sampaio
nervo/24
colectivo de poesia
maio/agosto 2025