25 novembro 2024

elio pecora / a lua surgiu, redonda

 
 
 
A Lua surgiu, redonda, e distraiu-nos
(na janela sobre a magnólia),
estava quase a dizer: “Não és tu o amor.
Eu só quero agarrar-te, ter-te
por uma eternidade que não meço”.
Correram os dias, a Lua surgiu de novo
(no vento leve, sobre a magnólia)
e disseste-me: “Parto amanhã.”,
com a voz de quem não quer ferir,
enquanto afunda no ventre uma faca.
 
 
elio pecora
poemas escolhidos
recinto de amor (1992)
tradução de simoneta neto
quasi
2008
 



24 novembro 2024

joan margarit / idade vermelha

 
 
 
Tanto tempo para aprender que chegas tarde
ao grande amor. Que nunca terás vivido
uma idade de ouro. As rosas de Ronsard
nunca serão perfume nos teus olhos,
e o Outono não desfolhará
tantas pétalas nos braços de ninguém.
cobriste com o esquecimento todos os espelhos
como faziam nas casas dos defuntos.
Não regressam as mulheres com as quais,
por um instante efémero de ternura,
trocavas anos de solidão.
Porque a vida no Outono é ardente,
nas horas de angústia não poderás
amar nem a mulher que já perdeste.
 
 
 
joan margarit
misteriosamente feliz
trad. miguel filipe mochila
flâneur / língua morta
2020



23 novembro 2024

juan luis panero / e de súbito anoitece

 
  
                                            Ed é súbito sera.
 
                                      Salvatore Quasimodo
 
 
 
Viver é ver morrer, envelhecer é isso,
enjoativo, tenaz, cheiro da morte,
enquanto repetes, inutilmente, umas palavras,
cascas secas, vidro partido.
Ver morrer aos outros, àqueles,
poucos, a quem verdadeiramente amaste,
desmoronados, desfeitos, como o fim deste cigarro,
rostos e gestos, imagens queimadas, enrugado papel.
E ver-te morrer a ti também,
remexendo frias cinzas, apagados perfis,
disformes sonhos, turva memória.
Viver é ver morrer e é frágil a matéria
e tudo se sabia e não havia engano,
mas carne e sangue, misterioso fluir,
querem preservar, afirmar o impossível.
Copo vazio, trémulo pulso, cinzeiro sujo,
na luz nublada do entardecer.
Viver é ver morrer, nada se aprende,
tudo é um desapiedado sentimento,
anos, palavras, peles, despedaçada ternura,
calor gelado da morte.
Viver é ver morrer, nada nos protege,
nada teve o seu ontem, nada o seu amanhã,
e de súbito anoitece.
 
 
 
juan luis panero
poemas
trad. joaquim manuel magalhães
relógio d´água
2003
 



22 novembro 2024

emanuel jorge botelho / duas regras para cada véspera




 

 
rasgar cada dia com um lenho de espelho
se possível, afiar cada hora numa pedra de linho.
 
guardar o tempo dentro da alma.
se possível, não morrer.
 
 
 
emanuel jorge botelho
sombras e outros disfarces
averno
2022
 



 

21 novembro 2024

antónio franco alexandre / corto viaggio sentimentale, capriccio italiano

 
 
 
5
 
segredava-te, do tempo o vão aspecto;
existias de noite como a letra
de todo o movimento, e das estrelas
o céu pintado ao fundo;
e distraído, às vezes, confessava
amar a tua pele como quem
quer dizer-te: não morras nunca mais.
 
 
 
antónio franco alexandre
quatro caprichos
assírio & alvim
1999
 




20 novembro 2024

pedro tamen / poema para todos os dias

 




 

 
I dia
 
 
                                        Un trozo azul tiene mayor
                                        Intensidad que todo el cielo.
 
                                        Alfonso Cortés

 
 
 
Fresco era o dia, plantado na chuva,
jovens os relógios tocando Mozart...
Os carros corriam, os passos passavam
e os velhos sentados dormiam no tempo
regressos perdidos de todas as sombras.
Pássaro poisado na alma da tarde,
era todo o sol natural inverno...
O mar estava perto nos olhos da gente,
um barco chegava em cada minuto
e o segredo bailava nas mãos da criança.
 
Recordo uma paz sob as gabardinas,
recordo humidade nas rodas dos carros...
(Tão solta no ar corria a memória
que as folhas tão verdes marcavam os anos.)
A chuva nascia da terra para o ar
e ria na cara da gente perpétua
– cada riso dela era a rua inteira
e era o cão vadio cheirando esta terra
gerada no vento pelo grande gesto.
Rua colocada por amor das formigas,
pequeno brinquedo achado no bosque,
eras mão aberta para todos os sons,
para cada assobio de vapor de água,
para a bela frescura da brisa salgada.
Ligeiros, os céus brincavam escondidos
com a tarde criança presente no ar,
jogavam às pedras ao pé dos passeios
e corriam juntos fugindo ao vento...
Passavam pessoas de faces vermelhas,
de um sonho pequeno agora acordadas,
seus passos miúdos de nada sabiam
– nada estava feito e tinham dez anos.
A branca neblina sentada no sol
sorria de perto a tudo o que era
e tudo saltava na sua presença.
 
Escorregavam horas do berço dos ramos
ficando caladas, respirando fumo...
E, leves, cheirosas, perpassavam as mãos,
tão estreitas e fortes do primeiro mundo.
 
Algo se esperava, algo estava perto,
algo era preciso, faltava a resposta,
o rio que fosse a cama da chuva,
a sombra final para o sol se deitar,
a torre perfeita com todos os olhos,
a mão que apertasse as coisas dispersas...
E eis que o rio vem, a sombra e a torre,
e se estendem dedos com a tua chegada.
 
Saltaram coelhos de todas as tocas
e a fonte da serra sorriu-se no musgo.
Manaram os beijos no ar respirado
e as malas abertas mostraram o fundo.
Fugiram cavalos de pernas de espuma
levando no pêlo notícias em branco.
E o vento corria em busca da lua
e a tarde e os céus calavam os gritos…
Silêncio se fez, e a erva cresceu
mais verde e mais fresca, segura certeza.
Espreitaram os sinos, riram-se as escadas
tudo estava pronto e de novo erguido.
 
Tão bela que vinhas como que de infância,
tão pura e tão simples, tão gesto benigno,
tão nova palavra rasgada no mar...
Menina dos anos, dos anos perdidos,
sombra de outras noites, noiva de outros dias,
perfeita miragem, pele das próprias mãos,
eis que então chegavas e eis que eu te via,
e as horas sorriam, felizes, completas.
 
Teu rosto era a concha dos quatro oceanos,
teu corpo era a praia de areia molhada,
teus olhos erguiam o toldo do céu
e enchiam os mastros de verdes bandeiras.
Tu eras o vento, tu eras a força,
dançavam secretas tuas mãos de aragem...
 
Nasceste presença na tarde de bronze
e agora já nada seria indeciso.
Agora tu eras a essência dos nomes,
os galos cantavam, era bom respirar.
Os prados distantes ficavam tranquilos,
esperando os teus pés, berlindes pequenos.
A chuva e a brisa, a jovem frescura,
guardavam certeza, seguras estavam
– morena lembrança, segundo natal.
 
Nunca mais a noite mordida no escuro,
nunca mais o dia manchado de cuspo,
nunca mais o véu tapando-me tudo,
nunca mais os dedos procurando flores...
A estátua plantada na nudez do largo
devolvia a calma aos olhos fechados
e enchia de sombra as pedras queimadas.
Agora eu sabia que em cada manhã
nasceria o sol atrás dos teus ombros.
 
 
 
pedro tamen
poema para todos os dias (1956)
tábua da matérias
poesia 1956/1991
círculo de leitores
1995
 




19 novembro 2024

ruy belo / regresso

 
 
 
Não não mereço esta hora
eu que todo o dia fui habitado por tantas vozes
que exerci o comércio num mercado de palavras
Não mereço este frio este cheiro tudo isto
tão antigo como os meus olhos
talvez mesmo mais antigo que os meus olhos
 
 
ruy belo
todos os poemas I
tempo
assírio & alvim
2004




18 novembro 2024

carlos de oliveira / porta

 
 
 
A porta que se fecha
inesperadamente na distância
e assusta o romancista
que descreve o seu quarto de criança
(é difícil dizer
se os velhos arquitectos
que punham tanto amor
na construção do quarto
teriam ponderado com rigor
a escala deste som
e o espaço coagulado
ao fundo do corredor)
a porta que se fecha no passado
sobressaltando a escrita e o escritor.
 
 
 
carlos de oliveira
sobre o lado esquerdo
trabalho poético
livraria sá da costa editora
1982




17 novembro 2024

álvaro de campos / poema de canção sobre a esperança

 
 
 
               I
  
Dá-me lírios, lírios,
E rosas também.
Mas se não tens lírios
Nem rosas a dar-me,
Tem vontade ao menos
De me dar os lírios
E também as rosas.
Basta-me a vontade,
Que tens, se a tiveres,
De me dar os lírios
E as rosas também,
E terei os lírios —
Os melhores lírios —
E as melhores rosas
Sem receber nada.
A não ser a prenda
Da tua vontade
De me dares lírios
E rosas também.
 
 
                II
 
Usas um vestido
Que é uma lembrança
Para o meu coração.
Usou-o outrora
Alguém que me ficou
Lembrada sem vista.
Tudo na vida
Se faz por recordações.
Ama-se por memória.
Certa mulher faz-nos ternura
Por um gesto que lembra a nossa mãe.
Certa rapariga faz-nos alegria
Por falar como a nossa irmã.
Certa criança arranca-nos da desatenção
Porque amámos uma mulher parecida com ela
Quando éramos jovens e não lhe falávamos.
Tudo é assim, mais ou menos,
O coração anda aos trambulhões.
Viver é desencontrar-se consigo mesmo.
No fim de tudo, se tiver sono, dormirei.
Mas gostava de te encontrar e que falássemos.
Estou certo que simpatizaríamos um com o outro.
Mas se não nos encontrarmos, guardarei o momento
Em que pensei que nos poderíamos encontrar.
Guardo tudo,
(Guardo as cartas que me escrevem,
Guardo até as cartas que não me escrevem —
Santo Deus, a gente guarda tudo mesmo que não queira,
E o teu vestido azulinho, meu Deus, se eu te pudesse atrair
Através dele até mim!
Enfim, tudo pode ser...
És tão nova — tão jovem, como diria o Ricardo Reis —
E a minha visão de ti explode literariamente,
E deito-me para trás na praia e rio como um elemental inferior,
Arre, sentir cansa, e a vida é quente quando o sol está alto.
Boa noite na Austrália!
 
17-6-1929
 
 
álvaro de campos
livro de versos,
fernando pessoa
estampa
1993





16 novembro 2024

ricardo reis / uma após uma as ondas apressadas

 
 
 
Uma após uma as ondas apressadas
Enrolam o seu verde movimento
E chiam a alva espuma
No moreno das praias.
Uma após uma as nuvens vagarosas
Rasgam o seu redondo movimento
E o sol aquece o espaço
Do ar entre as nuvens escassas.
Indiferente a mim e eu a ela,
A natureza deste dia calmo
Furta pouco ao meu senso
De se esvair o tempo.
Só uma vaga pena inconsequente
Pára um momento à porta da minha alma
E após fitar-me um pouco
Passa, a sorrir de nada.
 
23-11-1918
 
 
 
fernando pessoa
odes de ricardo reis
ática
1946




15 novembro 2024

zbigniew herbert / o seixo




 

 
o seixo é um ser
perfeito
 
igual a si mesmo
zela pelas suas fronteiras
 
inteiramente cheio
do sentido de ser pedra
 
tem um cheiro que nada lembra
não afugenta não desperta desejo
 
o seu entusiasmo e frieza
são justos e cheios de dignidade
 
sinto grande censura
quando o seguro na mão
e o seu corpo nobre
absorve um falso calor
 
                – Os seixos não se deixam domesticar
                hão-de observar-nos até ao fim
                com um olhar tranquilo e muito claro
 
 
 
zbigniew herbert 
poesia quase toda
tradução de teresa fernandes swiatkiewicz
cavalo de ferro
2024
 



 

14 novembro 2024

josé carlos ary dos santos / nona sinfonia

 
 
É por dentro de um homem que se ouve
o som mais alto que tiver a vida
a glória de cantar que tudo move
a força de viver enraivecida.
 
Num palácio de sons erguem-se as traves
que seguram o tecto da alegria
pedras que são ao mesmo tempo as aves
mais livres que voaram na poesia.
 
Para o alto se voltam as volutas
hieráticas     sagradas     impolutas
dos sons que surgem     rangem e se somem.
 
Mas de baixo é que irrompem absolutas
as humanas palavras resolutas.
Por deus não basta. É mais preciso o Homem.
 
 
 
ary dos santos
sonetos de amor e luta (1997)
ary, obra poética
edições avante!
2017
 



13 novembro 2024

nuno júdice / epigrama

 
 
 
A loucura é a grandeza dos simples:
assim são eles mais do que eles,
colhendo flores brancas e reles.
 
Os doidos, de olhos arregalados,
crescem devagar como as árvores:
só não dão folhas nem frutos.
 
Amo as suas frases sem sentido:
dobram nelas os sinos abstractos
de um campanário sem janelas.
 
Dai-me, ó loucos, a vossa razão
– esses remos de subir o tempo
até à fonte de um deus obsceno e nu.
 
 
 
nuno júdice
50 anos de poesia
antologia pessoal (1972-2022)
dom quixote
2024