16 outubro 2024

victor oliveira mateus / viagem

  
 
acolho a primeira palavra
as primeiras frases
os verbos irregulares
 
desperto-te para as traições
para as esperanças
tantas vezes misturadas
 
ouço-te as dúvidas os recomeços
dou-te instrumentos
para o resto do caminho
 
e invoco por fim
o tudo que m’envolve
ó sopro ordenador do mundo
– energia que sempre permaneces –
podes levar-me quando quiseres
estou pronto
 
 
 
victor oliveira mateus
uma casa no outro lado do mundo
labirinto
2021




15 outubro 2024

pedro de queirós tavares / comparsas

 
 
Comparsas, lá teremos de nos conformar a esta dimensão.
Importa que nos lembremos do pacto: também deste lado da
sarjeta não cobiçaremos as cerejeiras. Além de cerejas, muitas dão
granadas. Algumas com a cavilha encravada – nos dirão – mas
todas prontíssimas para nos rebentarem na boca.
 
Aqui, tal como de onde viemos, rebentam-nos com a boca para
que nos doa falar.
 
 
pedro de queirós tavares
se tens fósforos
fresca / poetria
2023





14 outubro 2024

tomás sottomayor / do seio da noite arqueada

 
 
 
Do seio da noite arqueada
Taciturno sorvo o leite negro
De tudo o que se perdeu.
Ajoelho-me sob o peso da tua mão
E aguardo o sinal para que a minha
Se mova sem hesitação
Para arquear um novo céu.
Tenho um desejo insular
Por mundos invisíveis.
 
 
 
tomás sottomayor
auberge ravoux
língua morta
2021
 



13 outubro 2024

luís filipe parrado / a chuva, os trabalhos, os dias

 
 
 
Foi tudo o que aprendi: límpida e generosa é a chuva.
Molha a delicada cambraia dos senhores e os andrajos do camponês,
inunda os lábios gretados dos amantes,
lava as mãos impunes dos cobardes,
a folha caduca da perene não distingue.
Poupa ao lavrador o trabalho e a despesa de regar os pomares.
Com um pouco de sorte e de espanto
também este ano
abundarão as sacas de laranjas e de romãs
na tua arrecadação.
 
 
 
luís filipe parrado
roma não perdoa a traidores
língua morta
2021
 




12 outubro 2024

klaus merz / a minha aposta

 
 
não coloco as minhas esperanças
no vermelho luminoso
do zarcão.
os pintores
são para mim demasiado buliçosos,
as suas cores demasiado escandalosas.
 
eu confio
nos valores eternos,
ponho as minhas esperanças na ferrugem
que actua subterraneamente,
no seu vermelho terroso e quente,
na sua substância granulada
que certamente
nos sobreviverá.
 
 
 
klaus merz
descida brusca de temperatura
alguma poesia suíça
tradução de luís filipe parrado
contracapa
2021
 
 


11 outubro 2024

louise glück / campainhas-de-inverno

  
 
Sabes o que eu era, como vivia? Conheces
o desespero; então
o Inverno há-de fazer-te sentido.
 
Nunca esperei sobreviver
com a terra a sufocar-me. Não esperei nunca
tornar a acordar, sentir
na terra húmida o meu corpo
capaz de reagir de novo, de se lembrar
depois de tanto tempo como abrir-se
de novo à luz fria
da mais primeira Primavera –
 
com medo, sim, mas de novo entre vós
chorando sim arriscando a alegria
 
ao vento agreste e nu do mundo novo.
 
 
 
louise glück
a íris selvagem
tradução de ana luísa amaral
relógio d´água
2020





10 outubro 2024

eunice de souza / encontro numa festa em londres

 
 
 
Durante um minuto permanecemos desconcertadamente juntos.
Perguntas a ti mesmo em que língua hás-de falar-me,
ofereces, antes, uma cebola avinagrada num palito.
És jovem e talvez te esqueças
de que o Império vive
apenas nos sons puros das vogais que te ofereço
acima do ruído.
 
 
 
eunice de souza
a rosa do mundo 2001 poemas para o futuro
trad. cecília rego pinheiro
assírio & alvim
2001





 

09 outubro 2024

antonia pozzi / náufragos

 
 
 
Náufragos sobre os escolhos,
cada um conta
a si mesmo – a história de uma doce casa
perdida,
a si mesmo ouve
falar alto
sobre o deserto pranto
do mar –
 
Triste jardim abandonado, a alma
rodeia-se de selvagens sebes
de amores:
morrer é este
cobrir-se de silvas
nascidas em nós.
 
 
 
antonia pozzi
morte de uma estação
trad. inês dias
averno
2019
 
 



08 outubro 2024

pier paolo pasolini / fim da tempestade

  
 
Tomba a árvore ao vento,
as casas voltaram
aos seus lugares, após longa
viagem, e sonham de olhos abertos.
Mesta a alma se encaminha
para os sonhos; vago fica
o quarto: estou longe.
 
 
 
pier paolo pasolini
a poesia é uma mercadoria inconsumível
poemas e recensões
trad. joão coles
sr teste edições
2022




07 outubro 2024

lawrence ferlinghetti / doce e variegada a cotovia-arbótrea

 
 
 
13
 
               doce e variegada a cotovia-arbórea
                              cantando ao portão que não se pode comprar
          e todavia quantas
                                     feras bravas
                                                   quanta criatura insana
               nas matas civilizadas
 
                                                  Hölderlin
                                                                      na sua torre de pedra
ou na casinha do amável carpinteiro
                                                     em Tübingen
               ou então Rimbaud
                                         com o seu «pesadelo e lógica»
          um sofisma da loucura
     Mas também nós temos exemplos mais recentes
                                      que também pressupuseram fatalmente
existir de facto
                  uma certa ligação directa entre
     linguagem e realidade
                                      palavra e mundo
          o que é hilariante
                                 caso me perguntem
     Também eu já bebi e vi
                                       a aranha
 
 
 
lawrence ferlinghetti
poemas de pictures of the gone world (1955)
uma coney Island da mente
tradução margarida vale de gato
antígona
2024

06 outubro 2024

leopoldo maría panero / diário do manicômio de mondragón

 



 

 

20 de abril
 
Entro no bar dos enfermos. Ele está repleto de folhas secas e amarelas que lembram pessoas velhas. Caminhando na direção do balcão, piso em algumas delas, que se parecem com álbuns ou lembrancinhas. O garçon apoia os cotovelos no balcão do bar, próximo à sua cabeça há uma Coca-Cola. Ele me conta de um crime que cometeu há muito, muito tempo. Então esfrega um pano de prato em sua testa e sussurra: oh, minha cabeça, minha pobre cabeça!
 
 
 
leopoldo maría panero
poemas do manicômio de mondragón
trad. ayrton a. badriah, pedro spigolon e tiago rendelli
editora urutau
2024
 
 



05 outubro 2024

miguel bonneville / livro do daniel

 



 
LXX.
 
é certo que há uma tristeza latente.
é certo que os corpos se despediram da paixão
e ali ficam –
suspensos.
 
pode não ser nada.
 
pode ser também que seja só o inverno.
 
 
 
miguel bonneville
livro do daniel e outros textos
editora urutau
2024