21 agosto 2024

antonin artaud / eu, artaud

 
 
Eu, Artaud,
esforçado,
a livrar-me do mal,
 
mas por não saber quando isto terminará.
 
Não posso saber o farei amanhã,
não o quero saber,
mas quero saber que o mal terminará de imediato.
Não, também nunca terminará.
Então.
Sou o senhor dos elementos
e dos acontecimentos.
Já não quero ser tocado,
                   invadido
como sou invadido pelos outros,
já não quero ser adormecido por outros,
o sono é uma ilusão em que se continua a viver.
 
Não quero mais estas angústias mortais.
 
Não quero mais dormir.
 
Não quero morrer.
 
Não quero mais sonhar.
 
 
 
antonin artaud
para acabar de vez com o juízo de deus
e outros textos finais (1946-1948)
trad. pedro eiras
flop
2019



 

20 agosto 2024

charles bukowski / uma para o caminho

 
 
 
não é triste pensar em Sócrates
a tomar cicuta;
naqueles dias era uma escolha simples:
dentro ou fora.
nos nossos tempos, dentro desta superestrutura
confusa,
imagino-o como qualquer outro
velho bêbado sentado no bar
num sábado à tarde,
muito mais interessante que a maioria
claro
mas igualmente desamparado
ao confrontar-se com a sabedoria
acumulada dos
séculos.
provavelmente iria sair e tentar
comer alguém
e como todos nós
tentaria sobreviver à
noite
seguinte.
 
 
 
charles bukowsky
os cães ladram facas
trad. rosalina marshall
alfaguara
2018
 



19 agosto 2024

ovídio / metamorfoses

 
 
 
“Porque me proibis a água? O uso da água é comum a todos.
Nem a natureza produziu um sol privado, nem o próprio ar,
nem a fluida água. É um bem público aquilo a que venho.
Porém, rogo-vos, suplicante, que ma deixeis beber. Eu não
me aprestava a lavar aqui os membros ou o corpo exausto,
mas a aliviar a sede. Ao falar-vos, a minha boca está seca,
a garganta ressequida, e por ela a custo a voz consegue sair.
Um golo de água será para mim néctar, e para sempre direi
que recebi com ele a vida: na água ter-me-eis dado a vida.
E condoei-vos também destes, que do nosso colo estendem
os bracinhos’ (e, por acaso, as crianças estendiam os braços).
Quem não se comoveria com as doces palavras da deusa?
Eles, porém, teimam em proibi-la, mesmo com as súplicas,
e juntam ameaças se não partir e, ainda por cima, injúrias.
E isto não lhes bastou. Agitaram o lago com os pés e as mãos,
e, saltando de um lado para o outro por maldade,
desataram a remexer o lodo mole do fundo do lago.
A cólera dela adiou a sua sede. De facto, já a filha de Ceo
não suplica mais àqueles seres indignos, nem suporta falar
abaixo da condição de deusa. Erguendo as mãos aos astros,
‘Que vivais neste lago para todo o sempre!’, exclamou.
 
 
 
ovídio
metamorfoses
livro VI
tradução paulo farmhouse alberto
livros cotovia
2018
 



18 agosto 2024

daniel francoy / meninos em férias

 
 
As pipas que planam livres e serenas.
Montá-las exige a perícia de Dédalo
e mantê-las no ar, a audácia de Ícaro.
Mas as crianças ignoram os deuses
e pouco importa que as ruas da cidade
sejam o labirinto onde vive o minotauro.
O que os meninos desejam é o céu
e, se uma pipa adeja sem dono e vadia,
uma multidão de pequenos a persegue
ainda que ela se misture ao sol:
pouco importa a queda de Ícaro
se a infância é o mais duradouro mito.
 
 
 
daniel francoy
identidade
editora urutau
2016
 



17 agosto 2024

joão rebocho / anjos caídos



 

 
anjos caídos com olhos de seda
a família morta no livro do Capote,
serpente no frasco de álcool
jornal aberto no balcão
as más notícias e
o hino de San Sebastian;
 
não notícias, hoje,
não anjos caídos janelas fora,
nem a sorte de ter asas;
hoje, a família ressuscitada
a serpente ébria,
e o jornal, resguardado o chão
clareado o chão,
antes ecoarem asas
 
 
 
joão rebocho
altas temperaturas
fernando dos santos
2024
 




 

16 agosto 2024

e e cummings / xix poemas




 

[xiii]
 
platão disse-
 
-lhe: ele não podia
acreditar(jesus
 
disse-lhe;ele
não queria acreditar
nisso)lao
 
tsé
certamente disse-
-lhe,e o general
(sim
 
senhora)
sherman;
e até
(acredite
ou
 
não)você
lhe disse:eu disse-
-lhe;nós dissemos-lhe
(ele não acreditou, não
 
senhor)foi preciso
um pedaço niponizado do
antigo viaduto da
 
6.ª
avenida;no cimo da cabeça:para dizer-
 
-lhe
 
 
 
e. e. cummings
xix poemas
trad. jorge fazenda lourenço
assírio & alvim
1998
 




 

15 agosto 2024

gil t. sousa / tempo

 
 
tudo se repete
de maneira desigual
e lenta
 
cavalos como nuvens
sobre a areia lisa
 
invisíveis e negros
senhores dos meus olhos
e dos meus sonhos
 
deserto e silêncio
como se a solidão
quisesse ficar
e quisesse partir



gil t.sousa





 

14 agosto 2024

roberto juarroz / nem sequer temos um reino

 
 
Nem sequer temos um reino.
E o pouco que temos
não é deste mundo.
Mas tão-pouco é do outro.
 
Órfãos de ambos os mundos,
com o pouco que temos
resta-nos apenas
fazer outro mundo.
 
 
 
roberto juarroz
a árvore derrubada pelos frutos
trad. rui caeiro, duarte pereira e diogo vaz pinto
língua morta
2018



13 agosto 2024

tiago araújo / as planícies extrovertidas

 



 

 
esta rua é o começo do mundo (todos os
lugares são o início do infinito que se estende em volta).
abrimos o universo fechado do corpo
em planícies extrovertidas
de onde se prolongam os caminhos
que nos levam aos móveis, à tinta branca das paredes,
à linha divisória entre a escuridão e a luz do sol
de alcântara, à rua onde passam os eléctricos,
e à última paragem, de onde tudo se estende de
forma concêntrica, como de todos os lugares,
os órgãos realizam a fotossíntese com a luz indirecta do rio
e chove sobre a pele
 
 
 
tiago araújo
fórmulas
quasi
2004



12 agosto 2024

fátima maldonado / meu pobre amante

 
 
 
Meu pobre amante
que te não fascina
mas se me falta
e se não o vejo
a saliva me seca
e me restringe a boca
e oculta na papila
o áfono cimento da recusa.
 
Se ao longe o lobrigo
e lhe sinto o desenho
e suspeito a boca
na cara se fixa
como se vela fosse num canto de sacada
ali logo me trunco
e me cindo em planos;
um só que continua
em direcção ao mar,
o outro que apodrece
 
e resta desprezado
e fica
coroa de tentáculos nas pedras recozidas
ao sol deste verão
entre portas abertas
e soleiras de escadas
circundadas por lousas
e azulejos vivos.
 
 
 
fátima maldonado
os presságios
os encontros
editorial presença
1983




 

11 agosto 2024

florbela espanca / para quê?!

 



 
Tudo é vaidade neste mundo vão ...
Tudo é tristeza, tudo é pó, é nada!
E mal desponta em nós a madrugada,
Vem logo a noite encher o coração!
 
Até o amor nos mente, essa canção
Que o nosso peito ri à gargalhada,
Flor que é nascida e logo desfolhada,
Pétalas que se pisam pelo chão! ...
 
Beijos de amor! Pra quê?! ... Tristes vaidades!
Sonhos que logo são realidades,
Que nos deixam a alma como morta!
 
Só neles acredita quem é louca!
Beijos de amor que vão de boca em boca,
Como pobres que vão de porta em porta! ...
 
 
 
florbela espanca
sonetos
livraria bertrand
1981



10 agosto 2024

maria teresa horta / universo

 
 
É nos olhos
que fracassamos
o céu
 
Doentes de poeira
por cada onda
repousamos as mãos
 
Proibidos de estarmos
em cada dorso – vidro
é olfacto o conteúdo
dos cardos
 
Cansados de universo
 
Claros totalmente claros
e descobertos
 
 
 
maria teresa horta
poesia reunida
cidadelas submersas
dom quixote
2009





 

09 agosto 2024

john updike / no princípio

 



 

 

No princípio, a Cultura ilude-nos, mas a Natureza
acaba por nos apanhar. A minha pele, noto,
agora que tenho setenta e cinco anos,
pende, enrugada como essas dunas em Marte
que nos dizem que a vida lá devia ter existido –
lama monocelular em charcos estagnados.
Em Tucson, no final do filme, um homem no
espelho dos lavabos avançou para mim,
 
olhos desvairados e pequenos, cabelo branco,
pescoço hirto – que podia ser, tão hostil e estranho,
tão pronto para o lixo, como um saco de pipocas
nojento no seu revestimento de gordura velha?
Onde o rapaz de sardas que costumava espreitar
pelo espelho da frente, à saída para a escola?
 
 
 
john updike
ponto último e outros poemas
trad. ana luísa amaral
civilização editora
2009