05 novembro 2023

joão habitualmente / pedras

 




 

 
Há pedras habitadas. Pássaros que não migram
só para não sofrerem a partida.
 
Esperam um ano a fio pelo regresso dos companheiros.
 
 
 
joão habitualmente
um dia tudo isto será meu
(uma antologia)
porto editora
2019


04 novembro 2023

luis cernuda / onde habite o esquecimento





 
Onde habite o esquecimento,
Nos vastos jardins sem madrugada;
Onde eu seja somente
Lembrança de uma pedra sepultada entre urtigas
Sobre a qual o vento foge à sua insónia.
 
Onde o meu nome deixe
O corpo que ele aponta entre os braços dos séculos,
Onde o desejo não exista.
 
Nessa grande região onde o mar, anjo terrível,
Não esconda como espada
A sua asa em meu peito,
Sorrindo cheio de graça etérea enquanto cresce a dor.
 
Além onde termine este anseio que exige um dono à sua imagem,
Submetendo a sua vida a outra vida.
Sem mais horizonte que outros olhos frente a frente.
 
Onde as dores e alegrias não sejam mais que nomes,
Céu e terra nativos em redor de uma lembrança;
Onde ao fim fique livre sem eu mesmo o saber,
Dissolvido em névoa, ausência,
Ausência leve como a carne de uma criança.
 
Além, além, longe;
Onde habite o esquecimento.
 
 
 
luis cernuda
antologia da poesia espanhola contemporânea
selecção e tradução de josé bento
assírio & alvim
1985
 



 

03 novembro 2023

arsenii tarkovskii / vida, vida

 




 

 

1.
 
Não acredito em pressentimentos, nem agoiros
Me assustam. Não evito a calúnia
Ou o veneno. Não há morte sobre a terra.
Todos são imortais. Tudo é imortal. Não há
Que ter medo da morte aos sete nem aos setenta. O real e a luz
Existem, mas não a morte ou a treva.
Viemos hoje à enseada,
E o cardume da imortalidade veio
Quando eu puxava as redes.
 
 
arsenii tarkovskii
8 ícones
versão de paulo da costa domingos
assírio & alvim
1987
 



02 novembro 2023

jorge de sena / suma teológica

 
 
Não vim de longe, meu amor, nem soçobraram
navios no alto mar, quando nasci.
 
Nada mudou. Continuaram as guerras;
continuou a subir o preço do pão;
continuaram os poetas, uma vez por outra,
a perguntar por ti.
 
É certo que, então, imensa gente
envelheceu instantânea e misteriosamente.
 
Mas até isso, meu amor, se não sabe ainda
se foi por minha causa,
se por causa de outros que terão nascido
ao mesmo tempo que eu.
 
 
 
jorge de sena
coroa da terra (1946)
trinta anos de poesia
editorial inova
1972



01 novembro 2023

nuno júdice / poema

 




 
Os poetas a quem a morte surpreende,
quando jovens, juntam-se algures noutra superfície.
De noite, os seus uivos atingem o celeste rebordo
da esfera; um ouvido mais atento distinguirá,
de entre os mil ruídos da terrível noite,
o seu coro de imprecação e choro.
De dia, adormecidos sob a terra, dissolvem-se
na humidade e nas raízes. Só os seus olhos,
na feroz abertura das pálpebras, ainda brilham
e mexem. No entanto, se alguma imagem da passada
vida os atormenta e obceca, tornam-se baixos
e baços. Uma escura lágrima cai em terra,
e o lodo assim formado me serve de alimento.
Os meus lábios e a minha língua adquirem
a sua consistência, e o meu rosto lamacento
volta-se para baixo, de onde surge um barulho
de mãos e de pés,
um barulho de vento nos órgãos vazios.
 
 
nuno júdice
o mecanismo romântico da fragmentação
editorial inova
1975




31 outubro 2023

josé carlos ary dos santos / a bruxa

 



 

As tetas são balofas almofadas
recheadas de esterco e de patranhas
da boca fogem bichas torturadas
pelo próprio veneno das entranhas.
 
As pernas são varizes sustentadas
pela putrefacção das bastas banhas
os olhos duas ratas esfomeadas
e as mãos peludas tal como aranhas.
 
Nasce do estrume e vive para o estrume
a língua peçonhenta larga fel
e é uma corda que ela-própria-puxa.
 
Sai-lhe da boca pus e azedume
tem pústulas espelhadas pela pele
e é filha de si própria. É uma bruxa.
 
 
 
ary dos santos
o sangue das palavras (1979)
vinte anos de poesia
círculo d eleitores
1984
 



30 outubro 2023

mário de sá-carneiro / o pajem

 




 
 
Sozinho de brancura, eu vago – Asa
De rendas que entre cardos só flutua…
– Triste de Mim, que vivo de Alma prà rua,
E nunca a poderei deixar em casa…
 
                                           Paris – novembro 1915
 
 
 
mário de sá-carneiro
poemas
biblioteca editores independentes
assírio & alvim
2007
 




29 outubro 2023

vasco graça moura / de olhos fechados

 
 
1
 
deixava-se falar, tecer
excitações sobre o mundo,
na fronteira enervada
de nunca serem horas de dormir.
 
uma presença podia ser
apenas a marca jacente,
a crispação deixada pelo peso
quente da cara na almofada.
 
num relevo de palavras ditas antes,
de olhos fechados, vibrava
o assustador, o subitamente perturbante
de uma maior nudez
 
na febril fabricação da fala
num território alucinado,
como se a luz entrecortasse, extra-
vagando, as imagens.
 
 
 
vasco graça moura
a sombra das figuras
poesia 1963/1995
quetzal editores
2007






 

28 outubro 2023

artur do cruzeiro seixas / há uma espécie de flor

 




 
Há uma espécie de flor
que vejo naquela rua.
 
Por isso por ali passo
como se isso fosse necessário
à salvação do mundo.
 
De tanto olhar a flor
um dia
soube enfim o seu nome.
 
Olhou-me
e disse:
sou o António…
 
África, 60
 
 
cruzeiro seixas
viagem sem regresso
tiragem limitada
2001
 




27 outubro 2023

herberto helder / os capítulos maiores da minha vida

 
 
os capítulos maiores da minha vida, suas músicas e palavras,
esqueci-os todos:
octagenário apenas, e a morte só de pensá-la calo,
é claro que a olhei de frente no capítulo vigésimo,
mas não nunca nem jamais agora:
agora sou olhado, e estremeço
do incrível natural de ser olhado assim poe ela
 
 
 
herberto helder
servidões
assírio & alvim
2013





26 outubro 2023

joão almeida / não há razões




 
Casal um à mesa não importa o dia
Não importa a hora
 
Falam uma língua muda
Que sai das coisas
E as leva sem vestígio
 
Ela faz pequenos barcos
Com o papel da conta do jantar
Ele queria ir ao fundo do céu
Da boca se pudesse
 
E eu que como de tudo
Não entendo tal noite
 
 
 
joão almeida
canto skin
língua morta
2019
 

 


25 outubro 2023

fátima maldonado / crepúsculo

 



 

1
 
Quando às vezes te deixo
desamparado e nu
como se magoado depusesses
teu verdento contorno
na paz de um mausoléu
e me fitas ao longe
tocando-me ao de leve
na anca recolhida,
o algodão da saia a subjuga,
com a ponta dos olhos
a baça íris uiva
da cor do figo murcho
de quem só pensa em seus próprios retábulos
ansiosas epígrafes
de infância acometida por vária derisão.
Velado de negrura
zelas por teu recato,
no deserto lampejam as pistolas
e mais não te derimo
não forço a tua mão
não ouso recusar a sede que me ofereces
e se te fosse escrava
oferta, aberta, rouca
não duvido que fosse
tua mão amputar
a língua que navega à deriva
por entre o silabar coralíneo da troça
e revulsa e agita amotinando a boca.
 
 
 
fátima maldonado
os presságios
os alicerces
editorial presença
1983



24 outubro 2023

rob schouten / alma

 
 
 
Eu queria antes uma alma de qualidade
que eu não conhecesse; não esta coisa permutável
feita de pessoas que só olhei,
e que apena funciona quando nela ponho os olhos.
 
Essa minha alma seria invisível à antiga
e estaria dentro de mim. Tudo quanto eu calasse
ou gritasse, conteria dela infinitos ecos.
Nunca me viria a ideia de ansiar por ela
 
 
Uma alma assim, que conservasse o valor no mercado.
 
 
 
rob schouten
uma migalha na saia do universo
antologia da poesia neerlandesa do século vinte
selecção de gerrit komrij
tradução de fernando venâncio
assírio & Alvim
1996