28 julho 2023

alexandre sarrazola / café mounir

 
 
em torno da praça e de seu solitário cedro em círculos cegos
          caminhavam os velhos
a sineta de um mendigo e a obstinada fuga à palavra (seus
          eufemismos todos);
na mesa do Café Mounir, hoje à chuva, o lugar-comum do meu chá
          por beber
um engulho no telefonema breve: a voz do teu filho a dizer-me que
          quiseste ficar
no lugar em que a terra se te encostou ao peito largo de cedros faias
          e aveleiras
 
 
coxeavam em círculos ainda assustados, sempre de mãos dadas, pela
          praça do minarete
engalanada com reclames luminosos em línguas nazarenas; um cão
          cego à minha beira
submergiam do aquário índigo das ruas (olhos ao alto) e cegos
          jamais se perdiam
– sob as luzentes águas da montanha – de mãos dadas andavam;
          um cão à tua beira
 
 
eu pousava o auscultador e o fumo subia da minha boca para um
          retrato de Hayworth
pendurado em frente ao pórtico da esplanada, por detrás da
          teleboutique e das revistas:
e tu com ele para o canídeo dorso do céu – só esta noite – órfão
          de estrelas
 
 
 
alexandre sarrazola
resumo, a poesia em 2013
assírio & alvim
2014
 




27 julho 2023

ricardo gil soeiro / visita nocturna



 
Às vezes, em navegáveis noites de
luar, acordo dentro dos teus sonhos.
E se assim te invado, sem desculpa,
nem pudor, a intimidade violada,
é para dizer-te num sussurro que
sou bem real, não essa imagem
gasta de boneco alado, viajando
em imperceptíveis caudas de cometas.
Com passos de veludo, para não ser grande
o sobressalto, percorro em câmara lenta
os corredores da tua alma adormecida,
plantando a semente de promessas adiadas.
De tudo me sirvo: deixo postais de viagem,
triviais fotografias e até ridículas cartas de amor.
Em vão procuro convencer-te de que existo,
à margem silenciosa da história dos humanos.
Terminada, porém, a noctívaga expedição,
a verdade é que tudo fica na mesma:
e já que assim te esqueces de mim,
apressar-me-ei a apagar sem remorsos
os vestígios da breve passagem sonâmbula.
Quando, esquecido, regressares das estrelas
mais tardias, reconhecerás, afinal, que terei
sido sempre eu a fiel morada que buscavas.
Então, e só então, perdurarei eu, mortal e
imperfeito, no rasto de cinza que deixares.
 
 
 
ricardo gil soeiro
voo rasante
antologia de poesia contemporânea
mariposa azual
2015
 


 

26 julho 2023

robert pinsky / exílio

 
 
Ao fim de pouco tempo mudas-te
De uma cidade para outra
Como se tivesses de encenar este ritual.
Quadros para pendurar e mobília,
 
Caixotes de livros para arrumar –
E aqui, embrulhados no jornal,
Os símbolos mortais da memória, tesouro
De uma vida desenterrada:
 
Nuvem melíflua, espasmos
De desespero, e paixão,
Boas ou más noites,
Dias de vitórias menores e cicatrizes
 
Sabendo a prata ou ferro,
Tacto, perda, gritos, artes,
Gestos, sussurros,
A violência desesperada de sensações
 
Como chuva fustigando uma janela –
Depois o estrépito do relâmpago, o corpo cego
Por restituição ou desastre,
O que não te é dado saber,
 
Depurado por lágrimas e trovão.
Agora começas. Por um momento
Tudo te confirma
Que o longo exílio acabou.
 
 
 
robert pinsky
rosa do mundo
2001 poemas para o futuro
tradução de josé alberto oliveira
assírio & alvim
2001
 



25 julho 2023

zetho cunha gonçalves / no meu ombro

 
 
Repousa
no meu ombro
a tua insónia:
 
– A noite
é o grande poema.
 
E vai
até de madrugada.
 
 
 
zetho cunha gonçalves
noite vertical
poemas reunidos 1979-2021
maldoror
2021




 

24 julho 2023

luís veiga leitão / prisioneiro

 



 

O prisioneiro é como navio
preso ao cais. Amarras de desterro
com ferrugem de noites a fio
e redes de ferro.
Do casco que um vento negro impele
caiu-lhe a pintura, o próprio nome.
Mas o mar está dentro dele
e não há força que o dome.
 
 
 
luís veiga leitão
ciclo de pedras
portugália
1964
 




23 julho 2023

antónio franco alexandre / cartão-postal

 




 
um moço, em Olinda, amava a palavra «ter»;
«eu acho bonito, ter». Como não tinha nada,
era livre de dar às palavras;
 
nalgumas não-bocas a palavra «ser»
dá vontade de morrer, já disseram.
Só essa
 
é a força formal das palavras.
esta não é a estória de um encontro.
foi a laboriosa a tarde, no ruído
 
de passos e gritos, e o som
de exactos motores. através dos dedos escorre
a relva, como a ignorância de um sonho;
 
o teu corpo deitado tem
um sabor raro a coisas certas
vê: a terra arada cheia de
 
guerra, uma coisa eu odeio mesmo
é a guerra, falou:
escrever deus ensina mas voz
 
homem só inventou.
 
 
 
antónio franco alexandre
cartão-postal
poemas
assírio & alvim
1996
 



22 julho 2023

harry martison / a impotência

 
 
Certa vez encontrei um machado cravado na terra
até ao ferro.
Era como se alguém tivesse querido cortar o mundo
inteiro em dois
bocados de um só golpe.
A vontade não tinha faltado, mas tinha-se partido o cabo.
 
       Gräsen i Thule, 1958



harry martison
o destino da árvore é
transformar-se em papel
antologia de poesia sueca
poemas vertidos para português por
amadeu baptista
contracapa
2021





 
 
 

21 julho 2023

daniel faria / zaqueu

 



 
A árvore foi a forma de te ver
E desci para abrir a casa.
De me teres visitado e avistado
Entre os ramos
Fizeste-me passagem
Da folha ao voo do pássaro
Do sol à doçura do fruto.
Para me encontrares me deste
A pequenez.
 
 
 
daniel faria
poesia
se fores pelo centro de ti mesmo
quasi
2003
 




20 julho 2023

josé gomes ferreira / melodia

 



 

IV
De súbito, acordei
perto das coisas distantes
com a vaga tentação
de dar um salto na sombra
até chegar ao coração da Morte.
 
Mas fiquei de olhos fechados
a cair dentro de mim
noutra sombra ainda mais densa
– onde dorme à minha espera,
tão ignorante de abismos,
a minha morte, só minha,
que nunca apagou estrelas
nem adormeceu raízes…
 
 
 
josé gomes ferreira
melodia 1932
poesia I
portugália
1972



19 julho 2023

miguel serras pereira / da insónia

 
 
Perdem-se todos os caminhos dessa casa
que não pára ao longe de fechar-se à tua espera
e de novo o cavalo do sono cai exausto
nas areias onde o tempo foi vencido
e as aves de passagem se esquecem de voltar
 
 
 
miguel serras pereira
á tona do vazio & reprise
cinquenta anos de poesia de miguel serras pereira 1969-2019
corça 1982
barricada de livros
2022
 





18 julho 2023

yvette k. centeno / primeiro tempo

 
 
 
Os amantes têm de ser terrivelmente inconscientes.
Porque se conhecem o mistério perde-se o sentido e o amor
e apesar de amantes ficam absurdos e cansados.
Assim se diluíram num beijo, momento sem limite dentro deles.
Assim ficaram longas horas estendidos um no outro.
Assim deixaram que os outros, os alheios, corressem de amanhã em amanhã
e só eles ficaram imóveis no passado.
Assim se esqueceram de si próprios, como um relógio muito velho
sem despertador.
Os ponteiros andavam ao contrário e não ultrapassavam nunca a Hora.
 
 
 
yvette k. centeno
opus 1
entre silêncios
poesia 1961-2018
glaciar
2019
 



17 julho 2023

sophia de mello breyner andresen / espera

 
 
Deito-me tarde
Espero por uma espécie de silêncio
Que nunca chega cedo
Espero a atenção a concentração da hora tardia
Ardente e nua
É então que os espelhos acendem o seu segundo brilho
É então que se vê o desenho do vazio
É então que se vê subitamente
A nossa própria mão poisada sobre a mesa
 
É então que se vê o passar do silêncio
 
Navegação antiquíssima e solene
 
 
 
sophia de mello breyner andresen
a noite e a casa
obra poética
assírio & alvim
2015
 

16 julho 2023

mário de sá-carneiro / esta inconstância de mim próprio

 



 
Esta inconstância de mim próprio em vibração
É que me há-de transpor às zonas intermédias,
E seguirei entre cristais de inquietação,
A retinir, a ondular… Soltas as rédeas,
Meus sonhos, leões de fogo e pasmo domados a tirar
A torre de oiro que era o carro da minha Alma,
Transviarão pelo deserto, moribundos de Luar –
E eu só me lembrarei num baloiçar de palma…
Nos oásis depois hão-de se abismar gumes,
A atmosfera há-de ser outra, noutros planos;
As rãs hão-de coaxar-me em roucos tons humanos
Vomitando a minha carne que comeram entre estrumes…
 
 
 
mário de sá-carneiro
edoi lelia doura
antologia das vozes comunicantes da
poesia moderna portuguesa
organizada por Herberto helder
assírio & alvim
1985