19 janeiro 2023

marianne moore / poesia

 



 
Eu cá também não gosto: há outras coisas importantes além deste
                                                                             desconchavo.
     Quando, porém, a lemos, desdenhando-a por completo.
                                                                   achamos, apesar de
     tudo, nela um lugar genuíno.
          Mãos prestes a agarrar, olhos
          prestes a dilatar, cabelo prestes a eriçar,
               se for o caso, são coisas importantes não por via
 
de uma interpretação sonante que as possa moldar mas por via de
                                                                                       serem
     úteis. Quando se tornam tão derivativas que ficam
                                                                              ininteligíveis,
     o mesmo se aplica a todos nós, que
          não admiramos o que
          não podemos entender; o morcego
               que se sustém de cabeça para baixo ou que procura algo que
 
comer, os elefantes a querer passar, um ginete a rebolar, um lobo
                                                                                        incansável
     debaixo de uma árvore, o crítico impassível a crispar a pele
                                     como um cavalo mordido por pulga, o adepto
     de baseball, o estatístico –
          e não vale
               discriminar contra “documentos empresariais e
 
manuais escolares”; são todos fenómenos importantes. Há que
                                                                                          distinguir
     porém: quando enaltecidos pelos semi-poetas, o resultado não é
                                                                                             poesia;
     será só quando os poetas entre nós puderem ser
          “literalistas da
          imaginação” – sobre
               a insolência e a trivialidade, só quando puderem apresentar,
     a exame, jardins imaginários com sapos de verdade, é que ela será
          nossa. Entretanto, quando se exige, por um lado,
          a matéria-prima da poesia em
               bruto, a cru e,
               por outro, aquilo que é
                    genuíno, então é porque sempre interessa a poesia.
 
 
 
marianne moore
o pangolim e outros poemas
trad. margarida vale de gato
relógio d´água
2018


18 janeiro 2023

robert rius / um dia renitente chega ao fim

 
 
Um dia renitente chega ao fim
depois de assassinado há uma semana
morre sobre o mesmo telhado
e nesse lugar jaz
enquanto dura a sombra duma agonia
como o corpo duma amante desejada
que o feixe genealógico da árvore ilumina
todas as noites sobrecarregada de mais um braço
pois assim pode prestar-lhe homenagem
através da sua própria história
que o deixa destilar o suspiro da montanha
deitando-se do lado oposto
à memória dum moribundo
 
 
 
robert rius
sonhador definitivo e perpétua insónia
uma antologia de poemas
surrealistas escritos em língua francesa
trad. regina guimarães
contracapa
2021




 
 

17 janeiro 2023

jorge de sousa braga / plano para salvar veneza

 



 
O meu século não chegou a andar de gatas. Com oito anos já se arrastava pelas minas de carvão, pouco tempo depois combatia nas trincheiras. E as únicas lágrimas que lhe vi chorar foram as dos gases lacrimogéneos.
 
Picasso morreu antes que pudesse levar a cabo o seu sonho, um único fresco que ocupasse não a abóbada da Capela Sixtina mas a abóbada celeste.
 
Fernando Pessoa morrera muitos anos antes numa clínica lisboeta completamente ignorado, depois de ter colocado um padrão com a cruz das quinas num dos areais de areia mais fina do universo.
 
Talvez o meu século seja uma comédia banal, embora filmada por homens de talento, onde algumas estrelas se passeiam com tanto à vontade como se fosse na Via Láctea e de que a generalidade dos participantes desconhece o argumento.
 
 
 
jorge de sousa braga
o poeta nu
fenda
1991
 



16 janeiro 2023

herberto helder / teoria sentada

 
III
 
A minha idade é assim – verde, sentada.
Tocando para baixo as raízes da eternidade.
Um grande número de meses sem muitas saídas,
soando
estreitos sinos, mudando em cores mergulhadas.
A minha idade espera, enquanto abre
os seus candeeiros. Idade
de uma voracidade masculina.
Cega.
Parada.
Algumas mãos fixam-se à sua volta.
 
Idade que ainda canta com a boca
dobrada. As semanas caminham para diante
com um espírito dentro.
Mergulham na sua solidão, e aparecem
batendo contra a luz.
É uma idade com sangue prendendo
as folhas. Terrível. Mexendo
no lugar do silêncio.
Idade sem amor bloqueada pelo êxtase
do tempo. Fria.
Com a cor imensa de um símbolo.
 
Eu trabalho nas luzes antigas, em frente
das ondas da noite. Bato a pedra
dentro do meu coração. Penso, ameaçado pela morte.
E uma raiz séca, canta-se
no calor. É uma idade cor de salsa.
Amarga. Imagino
dentro de mim. Trabalho de encontro à noite.
Procuro uma imagem dura.
 
Estou sentado, e falo da ironia de onde
uma rosa se levanta pelo ar.
A idade é uma vileza espalhada
no léxico. Em sua densidade se quebram
os dedos. Está sentada.
Os poentes ciclistas passam sem barulho.
Passam animais de púrpura.
Passam pedregulhos de treva.
É para a frente que as águas escorregam.
 
Idade que a candura da vida sufoca,
idade agachada, atenta
à sua ciência. Que imita por um lado
as nações celestes. Que imita por um lado
as nações celestes. Que imita
por um lado a terra
quente.
Trabalhando, nua, diante da noite.
 
 
 
herberto helder
poesia toda
teoria sentada
assírio & alvim
1996





15 janeiro 2023

bernardo soares / o governo do mundo começa em nós mesmos.

 



 

O governo do mundo começa em nós mesmos. Não são os sinceros que governam o mundo, mas também não são os insinceros. São os que fabricam em si uma sinceridade real por meios artificiais e automáticos; essa sinceridade constitui a sua força, e é ela que irradia para a sinceridade menos falsa dos outros. Saber iludir-se bem é a primeira qualidade do estadista. Só aos poetas e aos filósofos compete a visão prática do mundo, porque só a esses é dado não ter ilusões. Ver claro é não agir.
 
s.d.
 
 
 
fernando pessoa
livro do desassossego por bernardo soares. vol.II
ática
1982




14 janeiro 2023

samuel beckett / dieppe

 



 

*
viva morte minha única estação
lírios brancos crisântemos
ninhos vivos abandonados
lama das folhas de abril
dias felizes pardos de geada
 
1947
 
 
 
samuel beckett
trad. manuel portela
relâmpago nr.13
10/2003 alexandre o’neill
revista de poesia
fundação luís miguel nava
2003





13 janeiro 2023

helder macedo / 3 poemas de viagem de inverno

 



I
 
Tantos
tão desarticuladamente tantos
passos fundos na estrada congelada.
 
Na estação que passou
também passei.
 
Mas foi já noutro tempo
mas foi noutro país
quando o gelo chegou antes do frio.
 
 
II
 
Olhei
e só vi nada
se nos passos que vi
perdi quem me seguia
ou seguiria
enquanto não olhasse
a sombra indecifrada
desta não sei se selva
ou estrada
ou talvez praia.
 
 
III
 
Encruzilhado
me vejo reunido
restituído ao corpo que prevejo
despedido
na bifurcada ausência
do rumo sem regresso
em que transgrido
a transparência nua
da pele em que te teço
ou reconheço
nessa rasgada lua
nesse mar vão de sangue renovado.
 
 
 
helder macedo
hífen 4 abr/ set 89
cadernos semestrais de poesia
viagens
1989







12 janeiro 2023

mar becker / à pouca voz

 
 
estou recolhida há semanas. crisálida, noviciada. sinto que agora
posso cantar a vida das coisas inorgânicas, de longa duração. o
sono das pedras, intacto; as árvores retorcidas
 
posso ver que o centro do fogo é intransponível. estagiar em
todos os corpos minha expatriação. posso menstruar
um sangue claro
 
sonhar também – com o instante em que eu e o mar ainda
éramos um mesmo projeto: o ir e o vir, o inspirar e o expirar, os
batimentos, que gradativamente se lentificam e cessam. dizem
que é um estado semelhante ao sono, à eternidade do sono. para
mim, tem algo de resgate: amar o tempo que nas coisas antecede
o tempo. amá-las e crer que antes houve dias e noites
quando só o rumor habitava as pias batismais
 
 
 
mar becker
wladimir vaz (fotografia)
a mulher submersa
urutau
2021




11 janeiro 2023

mikhális katsarós / o meu testamento

 
 
Resisti
ao que ergue uma casinha
          e diz: estou aqui bem.
Resisti ao que volta para casa
          e diz: Deus seja louvado.
Resisti
ao tapete persa das casas aos andares
ao homenzinho do escritório
à firma de importação-exportação
à educação do Estado
ao imposto
e até a mim que vos narro.
 
Resisti
ao que saúda da tribuna horas
          sem fim os desfiles
à beata que reparte
imagens de santos incenso e mirra
e até a mim que vos narro.
 
Resisti ainda a todos aqueles a quem chamam grandes
ao presidente do Supremo resisti
às públicas músicas às paradas
a todos os congressos que falabaratam
bebem cafés congressistas conselheiros
a todos os que escrevem arrazoados sobre a época ao borralho do
          Inverno
aos votos de adulação às imensas vénias
aos escribas servis para os seus sábios chefes.
 
Resisti aos serviços de estrangeiros e passaportes
às horríveis bandeiras dos Estados e à diplomacia
às fábricas de material de guerra
aos que chamam lirismo às palavras bonitas aos cantos marciais
às canções delicodoces com os prantos
à assistência
ao vento
a todos os indiferentes e aos sábios
aos demais que fazem de vossos amigos
a até a mim, mesmo a mim que vos narro
          resisti.
Poderemos então talvez seguros seguir para a
          Liberdade.
 
 
de Contra os Saduceus, 1971
 
 
 
mikhális katsarós
a grécia de que falas …
antologia de poetas gregos modernos
trad. manuel resende
língua morta
2021




 

10 janeiro 2023

adonis / ararat



 
Ararat – poeiras otomanas espalham-se todos os dias sob os
          teus pés
Diz sim à luz esse nobre profeta que brota das tuas entranhas
          para iluminar as trevas da História.
 
                                      *

Tempo suspenso sinos e chocalhos no pescoço dos ventos
Um sino diz: mata as tuas recordações antes que elas te matem
Um outro diz: não retenhas a memória senão para a transfor-
          mar em fontes
Inventando o teu presente tu inventas o caminho para o que
          irá acontecer
 
 
 
adonis
arco-íris do instante
antologia poética
tradução de nuno júdice
dom quixote
2016




 

09 janeiro 2023

joão pedro rosado / um pé em três mundos

 



 
Não tenho certezas. Enigmas, não sei resolvê-los. Mas reconheço que a matéria é sobrenatural e o número tem uma qualidade que ignoro: a minha memória é parcial. O que mais simbólico tenho a dizer refere-se ao passado e aos sonhos. Misturador de ideias e mitos, só a fantasia e o delírio me apaziguaram com a doença. Umas vezes estou no limiar da realidade, outras naufrago. Mas aprecio os enigmas – por isso Deus também me seduziu. Deus, que em sonhos é como um vídeo, apareceu-me um dia envolto em neblina ocre apontando para um bando de pássaros, para um juiz barbudo e de chapéu que identifiquei – um mago que na minha infância despertara sentimentos de terror e devoção –, e para um livro donde vi sair anjos afrodisíacos que inspiravam a insurreição do corpo. (Com esses anjos atravessei uma cidade cheia de vestígios de morte e, entre sombras elementares e artifícios sangrentos, vi no horizonte da memória o ossuário mental onde flutuavam rolhões de nafta, trapos, corpos automáticos, manchas de óleo e os peixes que a imprensa e a t.v. fizeram tão lendários como os aborígenes da Austrália.)
 
Não tenho certezas mas tão-somente um pé em três mundos. E tudo me surpreende.
 
 
 
joão pedro rosado
sião
organização e notas de
al berto, paulo da costa domingos e rui baião
lisboa
1987





08 janeiro 2023

bernardo soares / o relógio que está para trás, na casa deserta,

 



L. do D.
 
O relógio que está para trás, na casa deserta, porque todos dormem, deixa cair lentamente o quádruplo som claro das quatro horas de quando é noite. Não dormi ainda, nem espero dormir. Sem que nada me detenha a atenção, e assim não durma, ou me pese no corpo, e por isso não sossegue, jaz na sombra, que o luar vago dos candeeiros da rua torna ainda mais desacompanhada, o silêncio amortecido do meu corpo estranho. Nem sei pensar, do sono que tenho; nem sei sentir, do sono que não consigo ter.
 
Tudo em meu torno é o universo nu, abstracto, feito de negações nocturnas. Divido-me em cansado e inquieto, e chego a tocar com a sensação do corpo um conhecimento metafísico do mistério das coisas. Por vezes amolece-se-me a alma, e então os pormenores sem forma da vida quotidiana boiam-se-me à superfície da consciência, e estou fazendo lançamentos à tona de não poder dormir. Outras vezes, acordo de dentro do meio-sono em que estagnei, e imagens vagas, de um colorido poético e involuntário, deixam escorrer pela minha desatenção o seu espectáculo sem ruídos. Não tenho os olhos inteiramente cerrados. Orla-me a vista frouxa uma luz que vem de longe; são os candeeiros públicos acesos lá em baixo, nos confins abandonados da rua.
 
Cessar, dormir, substituir esta consciência intervalada por melhores coisas melancólicas ditas em segredo ao que me desconhecesse!... Cessar, passar fluido e ribeirinho, fluxo e refluxo de um mar vasto, em costas visíveis na noite em que verdadeiramente se dormisse!... Cessar, ser incógnito e externo, movimento de ramos em áleas afastadas, ténue cair de folhas, conhecido no som mais que na queda, mar alto fino dos repuxos ao longe, e todo o indefinido dos parques na noite, perdidos entre emaranhamentos contínuos, labirintos naturais da treva!... Cessar, acabar finalmente, mas com uma sobrevivência translata, ser a página de um livro, a madeixa de um cabelo solto, o oscilar da trepadeira ao pé da janela entreaberta, os passos sem importância no cascalho fino da curva, o último fumo alto da aldeia que adormece, o esquecimento do chicote do carroceiro à beira matutina do caminho... O absurdo, a confusão, o apagamento — tudo que não fosse a vida...
 
E durmo, a meu modo, sem sono nem repouso, esta vida vegetativa da suposição, e sob as minhas pálpebras sem sossego paira, como a espuma quieta de um mar sujo, o reflexo longínquo dos candeeiros mudos da rua.
 
Durmo e desdurmo.
 
Do outro lado de mim, lá para trás de onde jazo, o silêncio da casa toca no infinito. Oiço cair o tempo, gota a gota, e nenhuma gota que cai se ouve cair. Oprime-me fisicamente o coração físico a memória, reduzida a nada, de tudo quanto foi ou fui. Sinto a cabeça materialmente colocada na almofada em que a tenho fazendo vale. A pele da fronha tem com a minha pele um contacto de gente na sombra. A própria orelha, sobre a qual me encosto, grava-se-me matematicamente contra o cérebro. Pestanejo de cansaço, e as minhas pestanas fazem um som pequeníssimo, inaudível, na brancura sensível da almofada erguida. Respiro, suspirando, e a minha respiração acontece — não é minha. Sofro sem sentir nem pensar. O relógio da casa, lugar certo lá ao fundo das coisas, soa a meia hora seca e nula. Tudo é tanto, tudo é tão fundo, tudo é tão negro e tão frio!
 
Passo tempos, passo silêncios, mundos sem forma passam por mim.
 
Subitamente, como uma criança do Mistério, um galo canta sem saber da noite. Posso dormir, porque é manhã em mim. E sinto a minha boca sorrir, deslocando levemente as pregas moles da fronha que me prende o rosto. Posso deixar-me a vida, posso dormir, posso ignorar-me... E, através do sono novo que me escurece, ou lembro o galo que cantou, ou é ele, de veras, que canta segunda vez.
 
Com que luxúria (...) e transcendente eu, às vezes, passeando de noite nas ruas da cidade, e fitando, de dentro da alma, as linhas dos edifícios, as diferenças das construções, as minuciosidades da sua arquitectura, a luz em algumas janelas, os vasos com plantas jazendo enjauladas nas sacadas — contemplando tudo isto, dizia, com que gozo de intuição que subia aos lábios da consciência este grito de redenção: mas nada disto é real!
 
s.d.
 
 
 
fernando pessoa
livro do desassossego por bernardo soares. vol.I
ática
1982
 



07 janeiro 2023

daniel faria / como doem as árvores

 



 
Como doem as árvores
Quando vem a Primavera
 
E os amigos que ainda estão de pé
 
 
 
daniel faria
explicação das árvores e de outros animais
fundação manuel leão
1998