Não tenho certezas. Enigmas, não sei resolvê-los. Mas
reconheço que a matéria é sobrenatural e o número tem uma qualidade que ignoro:
a minha memória é parcial. O que mais simbólico tenho a dizer refere-se ao
passado e aos sonhos. Misturador de ideias e mitos, só a fantasia e o delírio
me apaziguaram com a doença. Umas vezes estou no limiar da realidade, outras
naufrago. Mas aprecio os enigmas – por isso Deus também me seduziu. Deus, que
em sonhos é como um vídeo, apareceu-me um dia envolto em neblina ocre apontando
para um bando de pássaros, para um juiz barbudo e de chapéu que identifiquei –
um mago que na minha infância despertara sentimentos de terror e devoção –, e
para um livro donde vi sair anjos afrodisíacos que inspiravam a insurreição do
corpo. (Com esses anjos atravessei uma cidade cheia de vestígios de morte e,
entre sombras elementares e artifícios sangrentos, vi no horizonte da memória o
ossuário mental onde flutuavam rolhões de nafta, trapos, corpos automáticos,
manchas de óleo e os peixes que a imprensa e a t.v. fizeram tão lendários como
os aborígenes da Austrália.)
Não tenho certezas mas tão-somente um pé em três
mundos. E tudo me surpreende.
joão pedro
rosado
sião
organização e notas de
al berto, paulo da costa domingos e rui baião
lisboa
1987
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