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09 janeiro 2023

joão pedro rosado / um pé em três mundos

 



 
Não tenho certezas. Enigmas, não sei resolvê-los. Mas reconheço que a matéria é sobrenatural e o número tem uma qualidade que ignoro: a minha memória é parcial. O que mais simbólico tenho a dizer refere-se ao passado e aos sonhos. Misturador de ideias e mitos, só a fantasia e o delírio me apaziguaram com a doença. Umas vezes estou no limiar da realidade, outras naufrago. Mas aprecio os enigmas – por isso Deus também me seduziu. Deus, que em sonhos é como um vídeo, apareceu-me um dia envolto em neblina ocre apontando para um bando de pássaros, para um juiz barbudo e de chapéu que identifiquei – um mago que na minha infância despertara sentimentos de terror e devoção –, e para um livro donde vi sair anjos afrodisíacos que inspiravam a insurreição do corpo. (Com esses anjos atravessei uma cidade cheia de vestígios de morte e, entre sombras elementares e artifícios sangrentos, vi no horizonte da memória o ossuário mental onde flutuavam rolhões de nafta, trapos, corpos automáticos, manchas de óleo e os peixes que a imprensa e a t.v. fizeram tão lendários como os aborígenes da Austrália.)
 
Não tenho certezas mas tão-somente um pé em três mundos. E tudo me surpreende.
 
 
 
joão pedro rosado
sião
organização e notas de
al berto, paulo da costa domingos e rui baião
lisboa
1987