08 janeiro 2023

bernardo soares / o relógio que está para trás, na casa deserta,

 



L. do D.
 
O relógio que está para trás, na casa deserta, porque todos dormem, deixa cair lentamente o quádruplo som claro das quatro horas de quando é noite. Não dormi ainda, nem espero dormir. Sem que nada me detenha a atenção, e assim não durma, ou me pese no corpo, e por isso não sossegue, jaz na sombra, que o luar vago dos candeeiros da rua torna ainda mais desacompanhada, o silêncio amortecido do meu corpo estranho. Nem sei pensar, do sono que tenho; nem sei sentir, do sono que não consigo ter.
 
Tudo em meu torno é o universo nu, abstracto, feito de negações nocturnas. Divido-me em cansado e inquieto, e chego a tocar com a sensação do corpo um conhecimento metafísico do mistério das coisas. Por vezes amolece-se-me a alma, e então os pormenores sem forma da vida quotidiana boiam-se-me à superfície da consciência, e estou fazendo lançamentos à tona de não poder dormir. Outras vezes, acordo de dentro do meio-sono em que estagnei, e imagens vagas, de um colorido poético e involuntário, deixam escorrer pela minha desatenção o seu espectáculo sem ruídos. Não tenho os olhos inteiramente cerrados. Orla-me a vista frouxa uma luz que vem de longe; são os candeeiros públicos acesos lá em baixo, nos confins abandonados da rua.
 
Cessar, dormir, substituir esta consciência intervalada por melhores coisas melancólicas ditas em segredo ao que me desconhecesse!... Cessar, passar fluido e ribeirinho, fluxo e refluxo de um mar vasto, em costas visíveis na noite em que verdadeiramente se dormisse!... Cessar, ser incógnito e externo, movimento de ramos em áleas afastadas, ténue cair de folhas, conhecido no som mais que na queda, mar alto fino dos repuxos ao longe, e todo o indefinido dos parques na noite, perdidos entre emaranhamentos contínuos, labirintos naturais da treva!... Cessar, acabar finalmente, mas com uma sobrevivência translata, ser a página de um livro, a madeixa de um cabelo solto, o oscilar da trepadeira ao pé da janela entreaberta, os passos sem importância no cascalho fino da curva, o último fumo alto da aldeia que adormece, o esquecimento do chicote do carroceiro à beira matutina do caminho... O absurdo, a confusão, o apagamento — tudo que não fosse a vida...
 
E durmo, a meu modo, sem sono nem repouso, esta vida vegetativa da suposição, e sob as minhas pálpebras sem sossego paira, como a espuma quieta de um mar sujo, o reflexo longínquo dos candeeiros mudos da rua.
 
Durmo e desdurmo.
 
Do outro lado de mim, lá para trás de onde jazo, o silêncio da casa toca no infinito. Oiço cair o tempo, gota a gota, e nenhuma gota que cai se ouve cair. Oprime-me fisicamente o coração físico a memória, reduzida a nada, de tudo quanto foi ou fui. Sinto a cabeça materialmente colocada na almofada em que a tenho fazendo vale. A pele da fronha tem com a minha pele um contacto de gente na sombra. A própria orelha, sobre a qual me encosto, grava-se-me matematicamente contra o cérebro. Pestanejo de cansaço, e as minhas pestanas fazem um som pequeníssimo, inaudível, na brancura sensível da almofada erguida. Respiro, suspirando, e a minha respiração acontece — não é minha. Sofro sem sentir nem pensar. O relógio da casa, lugar certo lá ao fundo das coisas, soa a meia hora seca e nula. Tudo é tanto, tudo é tão fundo, tudo é tão negro e tão frio!
 
Passo tempos, passo silêncios, mundos sem forma passam por mim.
 
Subitamente, como uma criança do Mistério, um galo canta sem saber da noite. Posso dormir, porque é manhã em mim. E sinto a minha boca sorrir, deslocando levemente as pregas moles da fronha que me prende o rosto. Posso deixar-me a vida, posso dormir, posso ignorar-me... E, através do sono novo que me escurece, ou lembro o galo que cantou, ou é ele, de veras, que canta segunda vez.
 
Com que luxúria (...) e transcendente eu, às vezes, passeando de noite nas ruas da cidade, e fitando, de dentro da alma, as linhas dos edifícios, as diferenças das construções, as minuciosidades da sua arquitectura, a luz em algumas janelas, os vasos com plantas jazendo enjauladas nas sacadas — contemplando tudo isto, dizia, com que gozo de intuição que subia aos lábios da consciência este grito de redenção: mas nada disto é real!
 
s.d.
 
 
 
fernando pessoa
livro do desassossego por bernardo soares. vol.I
ática
1982
 



07 janeiro 2023

daniel faria / como doem as árvores

 



 
Como doem as árvores
Quando vem a Primavera
 
E os amigos que ainda estão de pé
 
 
 
daniel faria
explicação das árvores e de outros animais
fundação manuel leão
1998




 


06 janeiro 2023

ángel rupérez / quando me cansava

 



 

Dantes, quando me cansava, quando era velho,
via nos arvoredos oásis bem-aventurados
para morrer e sonhava chegar até eles
ainda que estivesse longe a meio da vida.
Agora já não me lembro dessas longas esperas
no deserto daquela velhice já esquecida.
Já cheguei ao arvoredo da minha juventude,
aí, junto da ponte, ao lado da corrente
do rio, e decidi apenas olhar e descansar.
Vejo o mesmo que via porque nada mudou.
O tempo não passou, tal como alguém disse
naquela tarde: «Não passará o tempo; não te preocupes».
E foi verdade aquele vaticínio. Nada mudou
e nem sequer o meu tempo, a idade estropiada,
a vida consumida em canseiras, todas as minhas viagens
e o meu profundo exílio, a minha eterna distância, me desgastaram.
Por isso sou jovem agora que já não tenho
idade para lembrar e por isso já não espero
no deserto como fazia antes, sem esperança.
 
 
 
ángel rupérez
poesia espanhola de agora I
trad. joaquim manuel magalhães
relógio d´água
1997
 
 


 


05 janeiro 2023

luis alberto de cuenca / só o silêncio salva

 



 
Só o silêncio salva, companheiro.
Só o silêncio salva. Se tiveste
uma noite gloriosa em que Afrodite
te sorriu e Baco te foi enchendo
o copo sem cessar, pensa que em breve,
quando se desvanecer o escuro,
os teus amigos forem para casa
e amanhecer de novo, só o silêncio
te há-de salvar, rapaz. Tem isso em conta.
 
 
 
luis alberto de cuenca
a vida em chamas
uma antologia
trad. miguel filipe mochila
língua morta
2018





04 janeiro 2023

reinaldo ferreira / eu, rosie, eu se falasse

 



 
Eu, Rosie, eu se falasse, eu dir-te-ia
Que partout, everywhere, em toda a parte,
A vida égale, idêntica, the same,
É sempre um esforço inútil,
Um voo cego a nada.
Mas dancemos; dancemos
Já que temos
A valsa começada
E o Nada
Deve acabar-se também,
Como todas as coisas.
Tu pensas
Nas vantagens imensas
Dum par
Que paga sem falar;
Eu, nauseado e grogue,
Eu penso, vê lá bem,
Em Arles e na orelha de Van Gogh…
E assim entre o que eu penso e o que tu sentes
A ponte que nos une – é estar ausentes.
 
 
 
reinaldo ferreira
um voo cego a nada (Livro I)
poemas
vega
1998





 


03 janeiro 2023

philip larkin / esquecer o que

 



 
Parar o diário
Foi aturdir a memória,
Foi um começo em branco,
 
Começo que já não cicatriza
Com tais palavras, tais acções,
Que tornaram inóspito o acordar.
 
Queria-as terminadas,
Despachadas para enterro
E rememoradas
 
Como as guerras e os invernos
Que faltavam para lá das janelas
De uma infância opaca.
 
E as páginas vazias?
Se vierem a preencher-se,
Que seja com a observação
 
De recorrências celestes,
O dia em que vêm as flores,
E quando partem as aves.
 
 
 
philip larkin
janelas altas
trad. rui carvalho homem
cotovia
2004
 



02 janeiro 2023

pia tafdrup / no espelho

 



 
No espelho
o olhar desaparece
 
às vezes desalojado
no meu próprio corpo
 
às vezes
angustiado
pela angústia
que rola
para lá e para cá como destroços
na rebentação
 
raspo com um dedo
o vidro
e ouço o mundo gritar.
 
 
 
pia tafdrup
ponto de focagem do oceano
trad. colectiva
mateus, junho 2002
quetzal
2004
 



01 janeiro 2023

toon tellegen / eu podia escolher

 



 

Não tinha ideia.
Escolhi a paz.
 
A verdade e a beleza
deixei-as ir,
e também a sageza e a nostalgia –
até o amor,
que tão embevecido me olhava,
negras nuvens com ele se deslocavam.
 
Paz, era paz.
E nos recônditos da minha alma
dançavam seres
de que nunca tinha sequer ouvido!
 
E no céu pendia um outro sol.
 
 
 
toon telegen
uma migalha na saia do universo
antologia da poesia neerlandesa do século vinte
trad. fernando venâncio
assírio & alvim
1997








31 dezembro 2022

egito gonçalves / é preciso saber esperar

 



 
É preciso saber esperar, ser paciente, decifrar com correcção os sinais de sangue nas janelas. O tear trabalha lentamente, cruza os fios coloridos nas difíceis geometrias que o futuro vai vestir. No fim do sulco estará, por certo, o filão que se procura, a ponta de navalha que abrirá a concha em que o sol se refugia.
 
 
 
egito gonçalves
o esperado fim do mundo já partiu
uma antologia
língua morta
2020







30 dezembro 2022

pedro tamen / nem esquecer o que tenho

 
 
 
Nem esquecer o que tenho
nem no que vens
se esfuma:
das ilhas continentes donde venho
em cada tens
ilustrações – é uma
apenas só viagem nossa,
quer siga eu aonde eu possa
ter memória de ti,
quer venhas tu de frente,
andando simplesmente
até aqui.
 
E assim dos nossos pés se fica em brasa
o chão do corredor da nossa casa.
 
 
 
pedro tamen
princípio de sol
circulo de leitores
1982





29 dezembro 2022

ana hatherly / 463 tisanas




236
 
Os grandes erros que se cometem na vida são erros recorrentes. Sempre repetimos os mesmos erros, isto é, o mesmo erro, e é esse erro que finalmente nos define, porque não se trata de um erro mas de uma situação-limite. Mas esta terminologia é absolutamente inadequada.
 
 
ana hatherly
463 tisanas
quimera
2006





 

28 dezembro 2022

elio pecora / de poemas para a mãe



 
Eu não sabia, não, quando cantavas
– talvez em Abril, no quarto azul –
que tu eras a mãe, que eu era o filho.
 
Escutavam-te as montanhas e as planícies,
as andorinhas apaziguadas nas goteiras
e eu encantado na almofada branca.
 
No teu canto abriam-se as esperas
do confuso presente, as tristezas
de todos os improváveis futuros.
 
Compreendi então que eras a companheira
de uma viagem de agruras, de tormentos,
para lá das paredes e das portas.
 
Por muitas estações esse engano
dentro de mim criei e fingi-me aquele
que na noite anda à frente.
 
Esta noite dizes com voz de pranto
– sobe no céu a Lua de Agosto –
que andaste sozinha pelas ruas escuras.
 
 
 
elio pecora
poemas escolhidos
interlúdio (1987)
tradução de simoneta neto
quasi
2008
 


 



27 dezembro 2022

eugénio de andrade / as mãos e os frutos

 
 
IV
Somos como árvores
só quando o desejo é morto.
Só então nos lembramos
que dezembro traz em si a primavera.
Só então, belos e despidos,
ficamos longamente à sua espera.
 
 
 
eugénio de andrade
as mãos e os frutos
poesia
fundação eugénio de andrade
2000