18 julho 2022

josé carlos llop / modus vivendi

 
 
Cruzar de caleche estas terras
esquecidas pelo homem.
Viver um regime antigo
Caçar de madrugada. Cuidar das cartas
para os amigos, do quintal
junto dos muros da casa
– a doçura da tâmara
a sombra da figueira –.
Pôr ordem num pequeno jardim
onde ler ao sol no inverno,
e no verão atrás da gelosia,
toda enlaçada pelas heras
e pelos jasmins. Estar só;
contemplar como se cumprem
os ciclos da natureza,
como crescem os teus filhos.
Escrever ao cair da tarde.
Passear debaixo das estrelas
e o ladrar dos cães
ao longe. Dormir pouco.
Atiçar o fogo na noite,
enquanto os pavões reais
pousam na copa de azinheiras
e tu te submerges nos tomos
daqueles velhos mestres
que já não existem.
 
 
 
josé carlos llop
poesia espanhola de agora volume I
trad. de joaquim manuel magalhães
relógio d´água
1997



 

17 julho 2022

gonçalo m. tavares / envelhecer

 
 
O Perigo não tem lugares fixos, como se sabe.
          Nem todos podem morrer de frente
ou com um tiro na nuca,
                    por vezes o assunto último
          é manuseado com tiques mesquinhos,
dedos como bicadas de galinhas imbecis
          a bicar o inútil, o impossível e a pedra.
Morres mas não morres de vez como os animais.
Apodreces, sim, como as plantas (quando envelheces)
          como uma rosa disputada à força por dez mulheres,
ou como um deus imortal atingido cem vezes.
          Talvez eu preferisse ver a erva
como os ratos vêem,
olhando em frente com os olhos minúsculos.
          Mas não.
 
 
 
gonçalo m. tavares
1 poesia
relógio d´água
2004
 



16 julho 2022

armando silva carvalho / agrário e agreste

 
 
                           ao António Rego Chaves
 

 
Sobre as árvores encolhidas que gastavam
a ternura de tudo; severo,
o céu desajeitado avolumou-se.
Na testa do silêncio ao pé dos montes
as pedras adoecem entre o sangue
derrota que se imprime por palavras
se imite diminuta nos alqueives.
Sob a capa da terra e no alcance
dos dedos de fora inesperados
a rotura simples dum soluço
ferindo o estrume em breves plantas novas.
Ao longe o grito do abraço em pé
com as vergonhas cobertas de papel
os prumos os cabos o pão um ovo
o vinho deitado, aqui ao pé do choro.



armando silva carvalho
lírica consumível 1965
o que foi passado a limpo, obra poética
assírio & alvim
2007




 

15 julho 2022

rené char / folhas de hipno

 
 
132
Parece que a imaginação, que em graus diversos assombra o espírito de cada criatura, é constrangida a separar-se dela quando não lhe propõe menos do que o «impossível» e o «inacessível» por missão extrema. Há que admitir que a poesia não é soberana em toda a parte.
 
 
         
rené char
furor e mistério
folhas de hipno (1943-1944)
trad. margarida vale de gato
relógio d’ água
2000




14 julho 2022

antónio franco alexandre / corto viaggio sentimentale, capriccio italiano

 
 
3
 
os olhos da amizade não necessitam de perfil.
A presença das tuas mãos
acorda-me, a meio
da tarde e do lume,
no horizonte da planície.
E entretanto pequenos animais transmitem
o som interior do vento
ao teu ouvido sério e distraído.
 
 
 
antónio franco alexandre
quatro caprichos
assírio & alvim
1999
 



13 julho 2022

albano martins / quase marinha

 
 
 
Desta luz, mais branca
do que o branco – ou
do que o leite, como diria Safo –,
o que pode dizer-se
é isto: um dia
o céu
acordou sem nuvens e a linha
do horizonte, de tão fresca
e tão nítida
e tão próxima, era o parapeito
onde a infância vivia
debruçada. E era
ali que o voo
das gaivotas começava.
 
 
 
albano martins
por ti eu daria
castália e outros poemas (2001)
glaciar
2021




 

12 julho 2022

wislawa szymborska / uma gente

 
 
Uma gente em fuga de outra gente,
num país debaixo do sol
e de algumas nuvens.
 
Deixam para trás um tal seu tudo,
campos semeados, umas galinhas, cães,
espelhos, justamente nos quais o fogo se mira.
 
Levam às costas os cântaros e as trouxas,
quanto mais vazios mais pesados com o passar dos dias.
 
É em silêncio que alguém desfalece,
é na algazarra que alguém arranca o pão de alguém
e alguém sacode o filho morto.
 
Nunca é pela estrada que têm à frente,
nem é esta ponte
sob a qual passa um rio estranhamente avermelhado.
Em redor, disparos, ora longínquos ora próximos,
ao alto, um avião errante rodopia.
 
Oportuna seria a invisibilidade,
uma parda rochosidade,
ou ainda melhor a inexistência
durante um pouquinho ou por mais tempo.
 
Mais ainda está por acontecer, apenas onde e o quê.
Alguém lhes sairá ao caminho, apenas quando e quem,
de que forma e com que intenções.
Se puder escolher,
talvez não queira ser inimigo
e os deixe com alguma vida.
 
 
 
wislawa szymborska
instante
trad. elzbieta milewska e sérgio neves
relógio d'água
2006
 




11 julho 2022

louise glück / a janela aberta

 
 
Um velho escritor ganhara o hábito de escrever a palavra FIM num papel antes de começar as suas histórias, posto o que juntava uma resma de folhas, normalmente fina no Inverno quando a luz do dia era breve, e espessa, por comparação, no Verão quando o seu pensamento se tornava outra vez solto e associativo, expansivo como o pensamento de um jovem. Independentemente da quantidade, colocava essas folhas em branco sobre a última, escondendo-a de tal forma. Só então é que lhe vinha a história, casta e refinada no Inverno, mais livre no Verão. Com este método tornara-se um mestre reconhecido.
 
Trabalhava de preferência numa divisão sem relógios, confiando na luz para lhe dizer quando terminava o dia. No Verão, gostava da janela aberta. Então como é que, no Verão, o vento de Inverno entrava nessa assoalhada? Pois é, gritou ele ao vento, é isto que me tem faltado, esta determinação e rispidez, esta surpresa – Oh, se o pudesse fazer, seria um deus! E deitou-se no chão frio do escritório, a ver o vento voltar os papéis, a misturar o escrito e o que estava por escrever, entre eles o fim.
 
 
 
louise glück
noite virtuosa e fiel
tradução de margarida vale de gato
relógio d´água
2021



10 julho 2022

peter levitt / uma centena de borboletas

 
 
25
Para onde tu vais
e o lugar onde ficas
é sempre a mesma coisa.
O que sempre desejaste
e o que deixaste ara trás
é tão inútil como o teu nome.
Pelo menos por uma vez, sai
para o campo e olha
para aquele imponente carvalho –
uma bolota continua a pulsar no seu coração.
 
 
 
peter levitt
uma centena de borboletas
trad. sérgio ninguém
edições eufeme
2020
 




09 julho 2022

egito gonçalves / julho

 
 
Julho abria as suas portas, preparava a armadilha, retirou da caixa o violino, os primeiros acordes prometeram o que não podiam dar, peixes de loucura que espadanam no trigo, pastéis de creme em manhãs de domingo, a cor da ternura que incendeia os gestos, anéis de esmeraldas avançando na linha do oceano. Enganador, partiu, deixando sobre a mesa alguns destroços, pedaços de caliça, o rosto da asfixia que retira o horizonte e transforma a solidão em pedra tumular. A casa arrefece, não encontro a paz, sigo a sombra dos meus pensamentos que desenha com cinza a superfície fria onde nenhum verso, nenhuma imagem ressuscita. As portas de julho já fecharam, uma visão agreste de ferrugem chove nos gonzos.
 
 
 
egito gonçalves
o esperado fim do mundo já partiu
uma antologia
língua morta
2020




08 julho 2022

joaquim manuel magalhães / um amigo

 
 
dado a crepúsculos.
À primeira falsa estrela.
Moço burguês medíocre
de olhar doce como o pez.
 
Disposto às músicas e
ao manso diálogo com mulheres.
De gestos ambíguos mas
fáceis de integrar pelos atentos.
 
Como podes suportar esses desejos
maioritários, injectado de heroína
e com o cabelo grego,
 
jovem heterossexual sensível,
 
entre cervejas, livros de poemas
e cheiros a perfumes importados?
 
 
 
joaquim manuel magalhães
descrições
os dias, pequenos charcos
editorial presença
1981




 

07 julho 2022

ilma rakusa / mala

 
 
Malas são malas
são despedidas
são couro
são vamos embora
são põe-tudo-aí-dentro
de novo
são barrigas
são casas
são nós-vamos-daqui-
para-ali
e dali para
oh sim
muito longe
 
 
 
ilma rakusa
descida brusca de temperatura
alguma poesia suíça
tradução de luís filipe parrado
contracapa
2021




 

06 julho 2022

salvador dali /novembro 1962

 
 
 
6) Entorno café sobre a minha camisa. A primeira reacção dos que não são como eu uns génios, quer dizer, os outros, é de se limparem. Eu sou completamente o contrário. Desde a infância que tenho o hábito de espiar o instante em que as criadas e os meus pais não me pudessem surpreender para, lesta e furtivamente, entornar entre a camisa e a pele, o mais viscoso resto de açúcar do meu café com leite. Além da indizível voluptuosidade que o líquido me causava, correndo gota a gota até ao umbigo, a sua secagem progressiva, e em seguida o tecido colando-se à minha pele, ofereciam-me a possibilidade de persistentes constatações periódicas. Puxando lentamente, progressivamente ou por sacudidelas esperadas durante muito tempo como delícias, eu provocava novas adesões da pele e da camisa, frutuosas em emoções e filosóficos pensamentos que duravam todo o dia. Esse prazer secreto da minha precoce inteligência atingiu o seu paroxismo quando, já um adolescente, os pelos vieram acrescentar à colagem do centro do meu peito (no mesmo sítio onde eu localizava a potencialidade da minha fé religiosa) e do tecido da camisa (invólucro litúrgico) uma nova complicação. De facto, os pelos sujos de açúcar unidos ao tecido eram, sei-o agora, aqueles que mantêm o contacto electrónico graças ao qual o sempre inconstante elemento viscoso se tornava no elemento mole de uma autêntica máquina cibernética, mística que nesta manhã de 6 de Novembro acabo de inventar, entornando por cima de mim, pela graça de Deus (e de uma maneira aparentemente involuntária), o meu café com leite muito açucarado (pelo meu inconsciente) de uma forma delirante. É uma verdadeira pasta açucarada que cola a minha mais delicada camisa aos pelos do meu peito tão cheio de fé religiosa.
 
Deveria acrescentar, sintetizando-me, que sendo um génio, poder-se-ia muito, muito bem que Dali desse simples acidente (que para muitos seria simplesmente um insignificante aborrecimento) soubesse converter todas as possibilidades numa máquina mole que me permitisse alcançar ou antes, tender para a fé que, até ao presente, não era senão uma extraordinária prerrogativa da omnipotência de Deus.
 
 
 
salvador dali
diário de um génio
tradução de josé luís luna
ulisseia
1965