07 março 2022

dick davis / o mensageiro

 
 
Foi há anos que estiveste
Insistente à minha porta,
Falavas com olhos mudos
Dessa calma e muda costa –
 
Foi há anos, eu ergui-me,
Ao teu apelo entreguei-me,
Com as mãos te saudei
Alheio ao vulto do muro
 
Entre os mortos e os vivos –
Qual se também ir pudesse
Onde o escuro compusesse
O pesar intolerável.
 
E agora que neste ocaso
Regressaste, levantado
Leio de novo o silêncio
Dum escuro olhar lembrado.
 
 
 
dick davis
trinta e dois poemas
trad. joaquim manuel magalhães
as escadas não têm degraus – 2
livros cotovia
1990




06 março 2022

justo jorge padrón / no último encontro

 
 
Ele sabia
que a vida é um curvo
caminho que termina em qualquer parte.
E por sabê-lo costumava ver
os dias e as coisas
como num lento adeus definitivo.
Amava com a dócil
nostalgia daquele que já nada possui
e parece nu, solitário.
 
Para trás iam-lhe ficando
os já apagados rostos,
as ruas soalheiras
onde ardeu a sua vida,
aquele estranho amor ensimesmado
pelas serenas árvores.
 
Tudo o que no seu fluir inevitável
foi amando desde criança
queria decifrá-lo
agora que o seu olhar sem recordações
partia como ar do crepúsculo,
agora que o seu sorriso descansava
no último encontro.
 
 
 
justo jorge padrón
os obscuros fogos (1971)
obra poética (1966-1996)
tertúlia
1998
 



05 março 2022

josé bento / silabário

 
 
55
 
    Este é um dos lugares (ou parte alguma?)
que nunca esperei ocupar ou ver sequer,
alheio em tudo, igual a tantos outros
que breves soube e de que nada guardo.
Um só espaço em verdade me pertence,
– meu berço, meu texto, meu legado:
a casa que é a mãe e viverá
enquanto eu não abdique do seu sangue.
Lá estou e serei: sou as paredes,
a escuridão que a procura e adormece,
sublimando-a tanto como a luz,
trave do seu lar frio e seu apelo,
pelas janelas vendadas defendida.
Batei à porta, chamai do seu jardim
devastado até não me ser senão lembrança:
lá dentro, responderei, embora aqui,
desde sempre à espera de ninguém.
 
 
 
josé bento
silabário
relógio d´água
1992
 
 


04 março 2022

konstandinos kavafis / muitas vezes verifiquei…

 
 
 
Muitas vezes verifiquei que os homens dão pouca importância às palavras. Vou explicar-me. Uma pessoa banal (com banal não quero eu dizer que seja tola, apenas alguém que não é relevante) tem uma ideia qualquer que é de censura a uma instituição ou a uma opinião generalizada; sabe que a grande maioria pensa o contrário e por tal razão cala-se, pensa que não lhe convém falar e argumenta que a discussão não altera nada. É um grande erro. Eu actuo de outra maneira. Censuro, por exemplo, a pena de morte. Quando a ocasião se proporciona declaro-o, não porque esteja convencido de que os Estados vão fazer a sua abolição no dia seguinte, mas por estar convencido de que vou contribuir para o triunfo da minha opinião. É indiferente que ninguém esteja de acordo. As minhas palavras não caem em saco roto. Talvez alguém chegue a repeti-las, e possam ir ter a ouvidos que as oiçam e apoiem. Pode ser que alguém, entre os que não concordam agora, no futuro vá recordá-las em circunstância favorável e, havendo o concurso de outras circunstâncias, se convença ou ponha em dúvida a sua convicção, que lhe é contrária. E o mesmo se passa com outros problemas sociais, e outras coisas em que é sobretudo necessário haver Acção. Reconheço que sou um cobarde e não posso actuar. Limito-me, por isso, a falar. Embora não acredite que as minhas palavras sejam supérfluas. Outro existirá que vai actuar. E as minhas palavras – palavras de um cobarde – vão facilitar-lhe a actuação. Prepara-lhe o terreno.
 
(19-10-1902)
 
 
 
konstandinos kavafis
kavafis páginas íntimas
trad. joão carlos chainho
hiena editora
1994




03 março 2022

joaquim cardoso dias / o preço das casas

 
 
não foi ao mesmo tempo
uma viagem o mesmo ar entre o teu sorriso
ou esta navegação política da idade
 
mas eu acreditei em tudo
desde a primeira vez em que estivemos juntos
eu dava meia volta e a lua
lá estava durante o sono
no meu espelho de atravessar os mares
iludindo a vontade de chorar
até a temperatura se tornar insuportável
na interpretação quase televisiva do mundo
 
de repente pouco sabíamos um do outro
e a sensibilidade ficou assombrosamente maior
por denunciar a minha barba cada vez mais insistente
 
agora só o teu corpo consegue despir-me
agora posso sonhar até deixar de ter
e teremos perdido tudo por engano amor
e durmo contigo sem ninguém ver
esta rosa do fundo da minha cabeça
dormirei contigo esta noite aqui devagar
onde atiro pedras a todos os sentidos
 
apago a luz e espero o sono
as pálpebras limpam este desejo no movimento da respiração
já não tenho comprimidos para te esquecer
 
 
 
joaquim cardoso dias
o preço das casas
de uma porta à outra
gótica
2002




 

02 março 2022

jean-philippe toussaint / o banho

 
 
33)
Há duas maneiras de ver cair a chuva quando se está em casa e por detrás de um vidro. A primeira, é manter o olhar fixo num ponto qualquer do espaço e observar a sucessão da chuva no lugar escolhido; esse modo, repousante para o espírito não dá qualquer ideia da finalidade do movimento. A segunda, que exige muito mais ligeireza do olhar, consiste em seguir com os olhos a queda de uma única gota de cada vez, desde a sua entrada no campo de visão até à dispersão da água no solo. Desse modo é possível representar-se-nos que o movimento, por mais fulgurante que seja na aparência, tende essencialmente para a imobilidade e que em consequência, de tão lento que às vezes pode parecer, arrasta continuamente os corpos para a morte, que é imobilidade. Olé.
 
 
 
jean-philippe toussaint
o banho
trad. luís nogueira
fenda
1990




01 março 2022

ingeborg bachmann / estrelas de março

 
 
Longe vem ainda a sementeira. Surgem
os primeiros campos à chuva e estrelas de Março.
O universo ajusta-se à fórmula
de pensamentos estéreis, a exemplo
da luz que não toca na neve.
 
Haverá também pó sob a neve
e o que não se desfez servirá depois
de alimento ao pó. Oh vento a erguer-se!
Arados rasgam de novo as trevas.
Os dias querem alongar-se.
 
Nos dias longos semeiam-nos sem nos perguntar
aqueles sulcos tortos e direitos,
e as estrelas retiram-se. Nos campos
crescemos ou morremos ao Deus dará,
obedientes à chuva e por fim também à luz.
 
 
 
ingeborg bachmann
o tempo aprazado
trad. judite berkemeier e joão barrento
assírio & alvim
1992




28 fevereiro 2022

paul éluard / diálogo

 
 
 
Belo invento coberto de vergonha
Memória de oiro enrolada no chumbo
Amor glorioso posto fora do leito
Natureza nobre manchada por anões
 
Vinde ver o sangue nas ruas
 
Somos muitos a recusar
Que seja o sol uma faca
Que seja o mar um veneno
Somos muitos a querer viver
 
Nada nem mesmo a vitória
Encherá o terrível vazio do sangue:
Nada, nem o mar, nem os passos
Do saibro e do tempo
Nem o gerânio ardendo
Por sobre a sepultura.
 
Muitos de nós perderam a vida
Na esperança de um mundo melhor
Inocentes seguros dos seus direitos
Eu lhes sorrio e me sorriem
 
 
 
paul éluard
poemas políticos
trad. carlos grifo
editorial presença
1971



27 fevereiro 2022

j. h. santos barros / visões da ilha

 
1.
Iniciei a contemplação do sol
e vi Cassius Clay mudar de nome: pura ave da arábia
ali lia o alcorão. Os operadores da TV
suaram a operação plástica.
Nem um murro nem um gemido.
Sequer um vagido dos filhos da mãe-áfrica
demove estes americanos do norte do consumo.
Disparo o flash e arrumo-o nas impenetráveis regiões
da mente, inacessíveis à tecnologia da eficiente
polícia militar estranha.
 
Contemplei Clay no écran, duro
e só como uma ilha.
 
 
2.
Dispensei-me alguns retoques no verso
confiado à amplidão do horizonte, confinado
aos limites da ilha. Margarida alegrava-me
– essa ave nórdica arribada a esta parte
larga do mar. Amei-a no local onde
a rota é traçada pelas baixas descobertas
à passagem da maré baixa.
 
3.
Faltar-te-ia ao respeito meu amor
se alindasse este pôr-de-sol único,
e o orvalho nas hortenses, as lágrimas líricas
da nossa ilha beijada por deus (por que deus)
ao pé do mar? tantos são os sinais contrários
à luta que temos de empreender de novo?
Guarda bem vivos estes sinais. O perfume deles
não cabe nos narizes envernizados dos nossos senhores
em visitação do campo. Bilhetes-postais são as mãos
e a ligeira claridade que se abre nos teus olhos.
 
 
 
j. h. santos barros
os alicates do tempo
afrontamento
1979




26 fevereiro 2022

solidariedade com a Ucrânia



                                      Somos muitos a recusar
                                      Que seja o sol uma faca
                                      Que seja o mar um veneno
                                      Somos muitos a querer viver

                                                                                  paul éluard









Mark Rothko ( 1903-1970) 
Untitled (Yellow and Blue), 1954

 

italo calvino / as cidades invisíveis

 
 
Marco Polo descreve uma ponte, pedra a pedra.
– Mas qual é a pedra que sustém a ponte? – pergunta Kublai Kan.
– A ponte não é sustida por esta ou por aquela pedra – responde Marco, - mas sim pela linha do arco que elas formam.
 
Kublai Kan permanece silencioso, reflectindo. Depois acrescenta: - Porque me falas das pedras? É só o arco que me importa.
 
Polo responde: - Sem pedras não há arco.
 
 
 
italo calvino
as cidades invisíveis
trad. josé colaço barreiros
teorema
1999




25 fevereiro 2022

isidore ducasse conde de lautréamont / cantos de maldoror

 
 
– Mas quem?... quem é então que se atreve, como um conspirador, a arrastar os anéis do seu corpo para o meu peito negro? Quem quer que sejas, excêntrica serpente, com que pretexto explicas a tua presença ridícula? Será um vasto remorso que te atormenta? Porque, estás a ouvir, jibóia, a tua selvagem majestade não tem, ao que suponho, a exorbitante pretensão de se subtrair à comparação que dela faço com os traços do criminoso. Essa baba espumosa e esbranquiçada é, para mim, o sinal da raiva. Escuta-me: sabes que os teus olhos estão longe de beberem um raio celeste? Não esqueças que, se os teus presumidos miolos me julgaram capaz de te conceder algumas palavras de consolação, isto se deve apenas a uma ignorância totalmente desprovida de conhecimentos fisiognomónicos. Durante algum tempo, que seja suficiente, é claro, dirige o clarão dos teus olhos para aquilo que eu, como qualquer outro, tenho o direito de chamar a minha face! Não vês como ela chora? Enganaste-te, basilisco. Precisas de procurar noutro sítio a triste ração de consolo de que a minha radical impotência te priva, apesar dos numerosos protestos da minha boa vontade. Oh, que força, em frases exprimíveis, te arrastou fatalmente para a tua perda? É quase impossível habituar-me à ideia de que tu não compreendes que, espalmando com um calcanhar na relva avermelhada as curvas fugidias da tua cabeça triangular, poderia amassar um molho inominável com a erva da savana e a carne esmagada.
 
(canto V, excerto)
 
 
 
isidore ducasse
conde de lautréamont
cantos de maldoror
trad. pedro tamen
fenda
1988




24 fevereiro 2022

iosif brodskii / um postal de lisboa

 
 
Monumentos a eventos que nunca se deram:
 
 
Às guerras sangrentas nunca travadas.
Às grandes tiradas engolidas ao soar
a voz de prisão. À consagrada união
do corpo nu com o pinheiro anão
que deu o São Sebastião.
Aos aviadores que subiram às nuvens
num piano alado. Ao inventor do motor
que usa como carburante
o lixo das recordações. À esposa do navegante
ensimesmado sobre um solitário ovo em omeleta.
Às Constituições desnudadas. Às independên
cias de opulento seio. Aos cometas
que à Terra passaram tangentes
(perseguindo um infinito, cujos sinais
são em parte os das nossas paisagens).
Ao coito interrompido, nas barbas do preso,
Entre a ideia de autoridade
e a vegetação. Ao achamento
da Infártica, bairro ignoto
do outro mundo. Ao cubista doidivanas
que captava nos telhados o soprano
do telégrafo. Ao suicídio do Tirano
por amor não correspondido.
Ao terramoto – sublinha um contemporâneo –
com deleite pelo povo recebido.
À mão que nunca pegou em dinheiro,
para não falar em membro viril.
Ao total de folhas verdes com direito
inato a desprezar a sua diversidade.
À felicidade. Aos sonhos que impuseram à realidade,
à custa das pessoas, a sua própria arbitrariedade.
 
 
 
iosif brodskii
paisagem com inundação
trad. de carlos leite
livros cotovia
2001