07 fevereiro 2022

cesare pavese / e então nós os vis

 
 
E então nós os vis
que amávamos a noite
rumorosa, as casa,
os percursos no rio,
as luzes vermelho sujo
desses lugares, a dor
mansa e calada –
arrancámos as mãos
de cadeia viva
e calámo-nos, mas o sangue
fez estremecer o coração,
e não houve mais doçura
nem mais abandono
aos passeios no rio –
não mais servos, soubemos
que estávamos sós e vivos.
 
                         23 de Novembro de 1945
 
 
 
cesare pavese
a terra e a morte
virá a morte e terá os teus olhos
trad. rui caeiro
edições do saguão
2021




 

06 fevereiro 2022

hugo carvalheira neves / por mim, digo…

 
 
por mim, digo, não é que tenha pressa alguma nisto
não há é tempo nenhum
e das estações que falam e onde aterram
janeiro, março,
março, maio,
julho
(e isto só dos nós altos que fazem da mão injusta)
para não estarem nos meus últimos
a perder os de igual frio primeiros
(ou de não lhes serem agosto todos)
e mais grave que tudo
os cabelos soltos e como em três tempos os apanham
aí sim, outono inverno
de não se poder com a desatenção feroz
que te devolve ao chão de quando era no ar.
 
 
 
hugo carvalheira neves
certa parentela
do lado esquerdo
2019




05 fevereiro 2022

tomás sottomayor / quando era ainda

 
 
Quando era ainda
possível um verso puro
O dobrar dum sino na
época da festividade
Medrou a melancolia
no sopro que animou
o meu coração.
Consumou-se o exílio
Nos cantos à fertilidade
da terra
Nas vozes frias e brancas
das crianças.
 
 
 
tomás sottomayor
auberge ravoux
língua morta
2021




 

04 fevereiro 2022

nuno júdice / fevereiro

 
 
A fotografia obscurece o fundo;
nenhum dos sinais do princípio me traz
o conforto de ser, nem
abre a última porta, por
onde passaram os exércitos da noite.
Mas vejo melhor: e
descubro-te, a um canto,
debruçada da varanda – como
se espreitasses o mar verde da memória,
ou procurasses a própria definição
da água, entre o azul
e o negro.
É, de facto, a cor
dos teus olhos,
como a lembro. Encostavas-te
à parede branca, contra
o sol; e a luz não te atravessava
os cabelos com que protegias
o rosto.
 
Desse fundo de minúsculas
particularidades, a tua presença é
a mais evidente. Deixo que
a sombra desapareça de toda a parte,
da parede até ao próprio horizonte; e
é como se saísses de dentro
do tempo, e nos entrássemos,
por instantes, sob um céu de nuvens esburacadas
como as tábuas comidas
pelo sal.
 
 
 
nuno júdice
a fonte da vida
quetzal
1997




 

03 fevereiro 2022

sebastião alba / os escribas

 
 
 
Que augúrio se lhes venda no cabelo?
Que vento neles, venenoso, seca a mais arbórea
esperança de agasalho?
O que, luminescente, acode
à superfície do papel, não o revelam:
de cócoras, foram
por demais jovens para as solenes advertências,
e invisíveis como sombras sem orla.
Dum golpe, a noite
invade as ruínas da luz.
 
 
 
sebastião alba
a noite dividida
assírio & alvim
1996




 

02 fevereiro 2022

maurício de sousa / libações de água e sal

 
 
 
12
 
No inverno
as gaivotas  trazem-nos o mar
:
a terra foge
 
 
 
maurício de sousa
libações de água e sal
eufeme
2020




01 fevereiro 2022

josé carlos barros / os anos

 
 
À janela verás um rosto
de criança
e nem um sorriso terás
no fundo do bolso
para caiar a sua infância
pequena
e sem cuidados.
 
Talvez um pássaro te poise então
no fundo dos cabelos.
 
Mas quando estenderes a mão
 
não haverá um brilho na tarde
e a criança há-de ser
um esqueleto de sombras
a rilhar o riso
com quatro dentes castanhos
sobre uma tábua
onde caíram os anos
fartos de voar.
 
 
 
josé carlos barros
estação
on y va
2020




 

31 janeiro 2022

miguel cardoso / se desci a poços

 
 
Se desci a poços
 
foi por não saber
fazer palas sobre os olhos
nem outros truques de visionário e abat-jour
 
Porque largar a infância
era ir na direcção inversa
dos túneis vastos que me deixara na vista
 
Era arranque em bruto para o alarme
das idades que descem
 
cruzando-me com rimbaud em sentido contrário
deixando cair lâminas de barbear pelos bordos
e levando às cavalitas poetas gastos
nortes de áfrica de hugo pratt
a cores tatuados nas costas da mão
para o caso de se cansar de cadernos e delúgios
 
Se subi a postes
foi pela mesma razão exacta
 
porque o chão era extenso
 
e que viesse depois a gravidade
dizer-me onde estava que ano era
 
e onde aplicar as ligaduras
 
 
 
miguel cardoso
fruta feia
douda correria
2014




30 janeiro 2022

fernando namora / nós e as coisas

 
 
 
Fechou-se este olhar sobre o mundo
deixámos de perscrutar os sussurros interiores
as veias das coisas estão vazias
ao nosso impuro tacto
é preciso o cataclismo para que as neves brilhem
no coração absorto
lá onde a montanha tem a imobilidade das criaturas
                                                          [fulminadas
os enigmas abriram-se como sortilégios
extintos de um brinquedo quebrado
de flor em flor o insecto em vão semeia
a perenidade do testemunho
nem os esfíngicos embustes da natureza
nos fazem tremer de dúvidas iradas
os ventos calaram-se mesmo se bravios
sentámo-nos no átrio onde o sonho é um mural
esfumado e os relógios pararam
 
somos máscaras com o pranto seco
somos espectros.
 
 
 
fernando namora
nome para uma casa
livraria bertrand
1984




 
 
 

29 janeiro 2022

tereza balté / os idílios

 
 
1
Eis o meu demónio
o nosso encontro
o sílex a lareira
a primeira caverna
que voltei
a habitar
 
 
de novo a paixão ou o delírio
o rio à espera
e no fim do tempo o anjo veio
lavrar a pedra
 
 
 
tereza balté
horizontes portáteis
editorial inova
1977




28 janeiro 2022

louise glück / caminhando à noite

 
 
Agora que é velha,
os homens não metem conversa com ela,
por isso as noites estão livres,
as ruas que ao crepúsculo eram tão perigosas
são agora tão seguras quanto o prado.
 
À meia-noite, a povoação está serena.
Os muros de pedra reflectem o luar;
nos passeios, é possível escutar os ruídos nervosos
dos homens estugando o passo para casa, para as suas mulheres e
   mães; a esta hora tardia,
todas as portas estão trancadas, as janelas às escuras.
 
Quando eles passam, não reparam nela.
É como uma folha de erva seca num campo de gramíneas.
Por isso, os seus olhos, habituados a não descolarem do chão,
são agora livres para passear onde quiserem.
 
Quando faz bom tempo e está cansada das ruas, caminha
pelos campos que demarcam o fim da povoação.
Às vezes, quando é Verão, chega a ir até ao rio.
 
Os jovens costumam encontrar-se não muito longe daí,
mas agora o rio está raso por falta de chuva, por isso
a margem está deserta –
 
Na altura, faziam-se piqueniques.
Os rapazes e as raparigas acabavam por formar pares;
Passado algum tempo, metiam-se pelos recessos dos bosques
que o crepúsculo sempre visita –
 
Agora, não se veria vivalma nos bosques –
tendo os corpos nus encontrado outros lugares para se esconder.
 
No rio, a água é só suficiente para que céu nocturno
desenhe padrões nas pedras cinzentas. A Lua brilha,
uma pedra entre muitas outras. E o vento levanta-se;
sopra as pequenas árvores que crescem à beira do rio.
 
Quando olhamos para um corpo, vemos uma história.
Assim que esse corpo deixa de ser observado,
a história que tentava contar acaba por se perder –
 
Em noites como esta, ela chega a caminhar até à ponte
antes de voltar para trás.
O cheiro do Verão persiste em todas as coisas.
E o corpo dela começa a parecer outra vez o corpo que fora o seu
   em jovem,
reluzindo sob as roupas ligeiras de Verão.
 
 
 
louise glück
uma vida de aldeia
tradução de frederico pedreira
relógio d´água
2021




27 janeiro 2022

anna akhmatova / acordar de madrugada

 
 
Acordar de madrugada
Pois a alegria sufoca,
E olhar pela vigia
Para as vagas de cor verde,
Ou no convés com mau tempo
Gasalhada em brandas peles,
Ouvir o bater da máquina,
E não pensar em nada,
Mas, pressentindo o encontro
Com esse que se tornou minha estrela,
Pelas gotas salgadas e o vento
Em cada hora rejuvenescer.
 
Julho de 1917
Slepnevo
 
 
 
anna akhmatova
poemas
trad. joaquim manuel magalhães e
vadim dmitriev
relógio d´água
2003
 


26 janeiro 2022

wislawa szymborska / instante

 
 
Vou pela ladeira da colina verdejante.
Erva, florinhas na erva,
como nas gravuras para crianças.
O céu enevoado, a ficar azul.
A vista para as outras colinas propaga-se no silêncio.
 
Como se por aqui não tivesse havido nenhuns câmbricos, silúricos,
rochas rosnando umas às outras,
abismos sublevados,
nenhumas noites em chamas
nem dias em baforadas de trevas.
 
Como se por aqui não se tivessem deslocado planícies
em febris delírios
e gélidos calafrios.
 
Como se somente em outro lugar se tivessem revoltado os mares
e se rompessem as orlas dos horizontes.
 
São nove e trinta, hora local.
Tudo no seu lugar e em impecável concórdia.
No vale, a pequena ribeira na qualidade de pequena ribeira.
A vereda sob a forma de vereda desde sempre e para sempre.
 
O bosque sob o pretexto de bosque por toda a eternidade, ámen.
No alto, os pássaros no papel de pássaros em voo.
 
Até onde a vista alcança, reina o instante.
Um desses instantes terrenos
aos quais se pede que perdurem.
 
 
 
wislawa szymborska
instante
trad. elzbieta milewska e sérgio neves
relógio d'água
2006