29 outubro 2021

pier paolo pasolini / who is me, poeta das cinzas

 
 
[…]
 
Vivi <…>
aquela página de romance, a única da minha vida:
quanto ao resto, <o que querem,>
tenho vivido dentro de uma lírica, como todos os atormentados.
Tinha entre os meus manuscritos também o meu primeiro
                                                                             [romance:
eram os tempos de «Ladrões de Bicicletas»
e os literatos descobriam a Itália.
(Eu agora já não sou um literato,
evito os outros, não tenho nada a ver
com os seus prémios e as suas publicações.)
Chegámos a Roma,
ajudados por um doce tio meu,
que me deu um pouco do seu sangue:
eu vivia como pode viver um condenado à morte
sempre com aquele pensamento como uma coisa atrás de mim,
– desonra, desocupação, miséria.
A minha mãe reduziu-se durante algum tempo ao trabalho
                                                                      [de servir.
E eu não me curarei jamais desta doença.
Porque sou um pequeno-burguês, e não sei sorrir…
como Mozart…
Num filme – a que chamei «Passarinhos e Passarões» –
Tentei, é verdade, a ópera buffa, ambição suprema de um escritor,
– mas só em parte o consegui,
porque sou um pequeno-burguês,
e tendo a dramatizar tudo..
 
[…]
 
 
pier paolo pasolini
who is me
poeta das cinzas
trad. de ana isabel soares
barco bêbado
2021






28 outubro 2021

tomás sottomayor / um osso

 
 
Um Osso
Apenas
Pode falar de todas
As histórias de Amor
De todos os momentos
Perdidos no Jardim
 
Da tua Graça
Enquanto tomas banho
Num delírio de Satie
 
 
 
tomás sottomayor
auberge ravoux
língua morta
2021

 




 

27 outubro 2021

arnau pons / agarras-te à voz

 



 
AGARRAS-TE à voz, luz de destempo
que faz encaminhar a vida;
ninguém
se cala, todos querem escrever as trevas;
em direcção a ti, aquilo: empalidece
com lepra e neve a mão coberta,
as unhas com arcos de promessa;
 
rastos: que esboçam?
portas: que abraçam?
real uma só paisagem: os mudos.
arteriais, dragões alados de Medeia;
cosidas letras
estrias do céu;
 
sob a pele,
ficam os cadáveres das palavras;
 
uma poça de sangue abafa no escuro
um grito;
subitamente ergues os olhos
para a escória.
 
 
 
arnau pons
tradução de yvette centeno
eufeme 21 outubro/dezembro 2021
magazine de poesia
edições eufeme
2021






 


26 outubro 2021

daniel faria / e desço à verdura das tuas mãos

 
 
E desço à verdura das tuas mãos
Como as manadas que buscam as minas
 
Faltam-me apenas os pés feridos dos que peregrinam
Faltam-me no chão duro das promessas
Os joelhos
 
Queria tanto andar em redor, rodear-te, se soubesse como
Queria amar-te tanto
 
O que sei da unidade é a túnica
Tirada à sorte. O que sei da morte e da vida
É o livro escrito por dentro e por fora
Silêncio escrito por dentro
Palavra escrita a toda a volta da história
 
O que sei do céu
É a mão com que sossegas os ventos
 
Desço à escritura como os veados aos salmos
 
 
 
daniel faria
dos líquidos
do inesgotável
quasi
2003





 

25 outubro 2021

fernando alves dos santos / uma palavra

 
 
A palavra é a pujante árvore das coisas
qual inverno num pingo de água,
momento temporal num poço muito fundo,
taça de sabedoria
que tudo abrevia.
Beijo de esperança que se empenha na inocência
apenas tentando a inocência das coisas
que permanece sedenta das grandes claridades,
sem tempo e sem modo permanece
na poesia do desejo.
 
Uma gota, uma criança, a forma,
uma ponte entre o futuro e a lembrança.
O grito que congestiona o orgulho dos roteiros
e abre estuários no mundo abundante da seiva
onde a gota nasce e desliza
no calcário do pensamento.
A criança é o centro da multidão que constitui a alma
– à porta das arestas colhendo os frutos,
á porta dos frutos o deserto de uma gota.
E a forma desperta nos meus cabelos brancos,
vinhas que plantei no meio dos torrões da planície
perscrutador e atento
às ciosas palavras das pessoas.
 
Uma palavra estilete coberta de pó,
uma palavra pássaro nas montanhas de ferro
onde envelhecem os seios da pátria,
uma palavra vento possuindo as fragas,
uma palavra mar,
uma palavra agoirenta na concha da mão
quando aí seguramos o pão grosseiro.
Uma palavra da cidade a ferros na prisão
se não solitária na doca
onde fundeamos a nau carregada de tapeçarias.
Uma palavra lírica de ruptura
a dizer de novo as pessoas,
a dizer o chão do sonho novo que pisamos
polifonia dos esporões de basalto
que se expande rebelde.
 
Uma coisa, uma palavra,
quando a noite se situa
sobre os telhados da manhã
e dá alento novo aos nossos lábios
porventura o optimismo das sementes
no ser real da palavra jubilosa
nas frescura da transumância.
 
 
  
 
fernando alves dos santos
diário flagrante [poesia]
edição perfecto e. cuadrado
assírio & alvim
2005
 




24 outubro 2021

miguel torga / plateia

 
 
Não sei quantos seremos, mas que importa?!
Um só que fosse, e já valia a pena.
Aqui, no mundo, alguém que se condena
A não ser conivente
Na farsa do presente
Posta em cena!
 
Não podemos mudar a hora da chegada,
Nem talvez a mais certa,
A da partida.
Mas podemos fazer a descoberta
Do que presta
E não presta
Nesta vida.
 
E o que não presta é isto, esta mentira
Quotidiana.
Esta comédia desumana
E triste,
Que cobre de soturna maldição
A própria indignação
Que lhe resiste.
 

 
miguel torga
câmara ardente
1962





23 outubro 2021

alberto pimenta / diálogo

  

vês aqueles pontos lá longe, disse o cego,
parando e apontando com a bengala. não, mas
vejo as pessoas lá longe, tão pequenas que
parecem pontos, disse eu. era isso que eu
queria dizer, disse o cego.
 
vês aqueles pontos lá longe, disse o cego,
parando e apontando com a bengala. não, mas
vejo os navios lá longe, tão pequenos que
parecem pontos, disse eu. era isso que eu
queria dizer, disse o cego.
 
vês aqueles pontos lá longe, disse o cego,
parando e apontando com a bengala. não, mas
vejo as casas lá longe, tão pequenas que
parecem pontos, disse eu. era isso que eu
queria dizer, disse o cego.
 
vês aqueles sinais lá longe, disse o cego,
parando e apontando com a bengala. não, mas
vejo as estrelas no céu escuro, tão peque
nas que parecem um espanto, um sinal
e um provérbio, disse eu.
 
essa mania da contradição ainda te há-de
sair cara, disse o cego, brandindo a bengala.
 
 
 
alberto pimenta
obra quase incompleta
fenda
1990






22 outubro 2021

albano martins / os muros

 



 
Os muros. Todos
os muros. Um
só muro. E toda
a sede. E todo
o sal
do mar
 
 
no peito.
 
 
 
albano martins
por ti eu daria
as vogais aliterantes (1981-1985)
glaciar
2021






21 outubro 2021

adília lopes / body art?

 
 
Com os remédios
engordo 30 Kg
o carteiro pergunta-me
para quando
é o menino
nos transportes públicos
as pessoas levantam-se
para me dar o lugar
sento-me sempre
 
Emagreço 21 Kg
as colegas
da Faculdade de Letras
perguntam-me
se é menino
ou menina
 
No metro
um rapaz
e um velho
discutem
se eu estou grávida
o rapaz quer-me
dar o lugar
 
Detesto
o sofrimento
 
 
 
 
adilia lopes
caras baratas
antologia
relógio d´água
2004




20 outubro 2021

fernando lemos / espero uma revolução

 
 
Espero uma revolução
para dormir
aguardo êsses dias de glória
para me recusar a tudo
silêncio meu
será de balas
seja noite sejam forradas as noites
de balas
 
quando caírem as grandes bombas incendiárias
farei uma leve mudança na cama
 
quero acordar com os clarões do incêndio
sair para a rua barbeado
de camisa lavada
fazer a pé por cima dos cadáveres
quentes o indiferente percurso
do falso cotidiano
preciso de uma revolução
preciso dormir
preciso não mudar de ideias
 

 
fernando lemos
poesia
porto editora
2019






19 outubro 2021

josé amaro dionísio / a sombra do sangue

 



 

                                    2
 
                Talvez as folhas não caiam  em
Outubro, visto que não se trata do mal
do vento, mas da ruína da alma.
 
 

 
josé amaro dionísio
eduardo batarda
a sombra do sangue
livro de artistas

europalia 91
1991



18 outubro 2021

joão almeida / céu da boca

 
 
Onde as ondas andam é aqui nos prédios novos
por cima da ressaca dos discos parabólicos e o outono
tão frio pela amanhã, com gavetas
de madeira e lenços de papel pelo chão da cabeça
 
ficamos calados a ver passar a linha de marcação contínua
e agora não me lembro nem do autor nem do poema
nem um verso ficou, tudo triturado
reduzido a mosquitos por cordas.
 
 

joão almeida
canto skin
língua morta
2019






17 outubro 2021

joão barrento / breviário do silêncio

 
 
 
*
O silêncio não é explicável. Não só porque se furta aos princípios de articulação da linguagem, mas também porque ele é, em si e quando irrompe e se demarca do som, uma realidade e uma experiência auto-suficiente e autónoma. Qualquer tentativa de explicação da experiência (não do fenómeno!) do silêncio seria uma contradição. O silêncio propicia, em última análise, o acesso a uma «fala» do mundo e das coisas na sua radicalidade ontológica, sem explicações. É a pura presença.
 
 
 
joão barrento
breviário do silêncio
alambique
2021