23 setembro 2021

ángél gonzález / porvir

 
 
Chamam-te porvir
porque nunca vens.
 
Chamam-te: porvir,
e esperam que tu venhas
como um animal manso
comer-lhes à mão.
 
Mas tu continuas
para lá das horas,
agachado não se sabe onde.
… Amanhã!
                       E amanhã será outro dia calmo,
um dia como hoje, quinta ou terça-feira,
qualquer coisa e não aquilo
que esperamos não obstante, ainda, sempre.
 
 
 
ángél gonzález
para que eu me chame ángel gonzález
uma antologia
selecção e tradução de miguel filipe mochila
língua morta
2018

 





22 setembro 2021

charles bukowski / amor

 
 
já vi velhos casais
sentados em cadeiras de baloiço
um diante do outro
sendo congratulados e celebrados
por estarem juntos há cinquenta ou sessenta
anos
que teriam
tanto tempo atrás
aceitado qualquer outra
coisa
mas o destino
o medo e
as circunstâncias
uniram-nos,
e enquanto lhes dizemos o
quão fantásticos são
nesse amor gigante e duradouro
somente eles
sabem na verdade
mas não nos podem dizer
que desde o seu primeiro
encontro
em diante
nada teve tanto
significado assim
como
esperar agora pela
morte.
é mais ou menos a mesma
coisa.
 
 
 
 
 
charles bukowsky
sobre o amor
trad. de valério romão
alfaguara
2021

 





21 setembro 2021

josé carlos barros / em segredo

 
 
Mas temos o vinho
e temos as cartas:
essas que uma vez marcámos
em segredo
para que ambos perdêssemos
quando jogássemos
um
contra o
outro.
 
 
 
 
josé carlos barros
o uso dos venenos
língua morta
2018

 





20 setembro 2021

egito gonçalves / nenhum amor é total

 
 
Nenhum amor é total, nenhum amor desenha a latitude e longitude como linhas ideais; na massa em fusão há sempre uma impureza, todo o amor tem as suas fissuras a vigiar constantemente. O dia, raro atinge a sua ponta extrema.
 
 
 
egito gonçalves
o esperado fim do mundo já partiu
uma antologia
língua morta
2020








 

19 setembro 2021

luís filipe parrado / o verbo amar

 
 
Tão inútil. Conjuguei-o
na primeira pessoa tantas vezes
naquele verão e
nem assim me mostraste
os seios.
 
 
luís filipe parrado
roma não perdoa a traidores
língua morta
2021






18 setembro 2021

luca argel / falando no diabo

  
é preciso dizer que ele há muito saiu de cena
e no Inferno já mal se lembram dele.
desde então deixou de haver
(último refúgio de satisfação!)
Alguém em quem jogar a culpa.
 
 
 
luca argel
fui ao inferno e lembrei-me de ti:
averno
2019








17 setembro 2021

roger wolfe / para lado nenhum

 
 
Os reformados falam em tromboses
nos autocarros
ou esperam pelo fim
nos bancos dos jardins públicos,
entre excrementos de pombo e seringas
ensanguentadas,
ou interpelam-me na rua
diante de montras de electrodomésticos
para me pedirem as horas
e me perguntarem qual a raça do meu cão.
São cinco da tarde e tudo
na cidade tresanda a morte.
Sei que é inútil. Chegar a casa,
sentar-me ao computador e redigir
quinze ou vinte linhas, que importa,
esta espécie de salvo-conduto
para lado nenhum.
 
 
 
roger wolfe
fazer o trabalho sujo
tradução de luís pedroso
língua morta
2020





 

16 setembro 2021

joão rebocho / nasces sozinho

 
 
nasces sozinho
caminhas e morres sozinho
 
nunca falta ninguém
nem para a cara suja de sangue,
nódoas difíceis
ou inaceitável
 
para te sentires uma lástima
não te falta ninguém,
para caíres
para um valente tombo na estrada de Ciudad,
tu estás
muito bom
 
 
 
joão rebocho
cão girafa
heteronimus
2021






15 setembro 2021

juan cameron / receita para seres tu

 



 

Ensaia um jogo com uma bola imaginária
ou com a sombra de uma bola imaginária
ou com um relógio parado
pratica as tuas acções brilhantes em silêncio
sem festejares os teus golos
sem aplaudires os teus próprios desejos
sem saíres sequer do teu rectângulo
 
De uma vez por todas
realiza aquelas jogadas ilícitas
que guardas amiúde no bolso de trás das calças
sem dares fé dos gritos jamais emitidos.
 
 
 
juan cameron
iluminação do eu
antologia de poesia hispano-americana
tradução de daniel ferreira
contracapa
2021






 

 


14 setembro 2021

rui nunes / és só um homem esquecido pela terra

 
 
és só um homem esquecido pela terra,
os que te cercam não te reconhecem,
nada sabem das tuas mãos, dos teus olhos,
da coisa mais ínfima que seja tua.
Tu vês os que te cercam, mas eles
Rodeiam-te da tua ausência
com a perseverança de sobreviventes
 
 
do mundo aos lábios: a separação
do olhar de Deus
 
 
 
rui nunes
ofício de vésperas
relógio d’ água
2007





 
 

13 setembro 2021

joão miguel fernandes jorge / canção para nenhum caminho

 
 
 
Trabalha nas obras camarárias
à entrada do Passeio Alegre. A mão vigorosa compões a terra.
Afasta-se com um balde, para regressar com a novidade de
um boné de pala vermelha – protege-lhe o
rosto. Vejo-o da varanda. A minha casa
pertence-lhe;
nunca o saberá. Ofereci-lhe, prata envelhecida, o meu tempo.
Não vai suspeitar
que também o meu próprio tempo lhe pertence.
Não terá as palmeiras, a pedra perfeita dos obeliscos à
entrada do romântico passeio. Ele canta –
  o desfazer do exacto tempo passado: o que foi meu
entrego ao abrigo dos seus braços      a inclemência da velhice
apodera-se do oriente eslavo, da sua vida. Na Foz do Douro um dia
 
 
o enganoso dia da fortuna.
 
 
 
joão miguel fernandes jorge
invisíveis correntes
relógio d´água
2004





 

12 setembro 2021

juan ramón jimenez / eu não voltarei

 
4
 
Eu não voltarei. E a noite
morna, serena, calada,
adormecerá tudo, sob
sua lua solitária.
 
Meu corpo estará ausente,
e pela janela alta
entrará a brisa fresca
a perguntar por minha alma.
 
Ignoro se alguém me aguarda
de ausência tão prolongada,
ou beija a minha lembrança
entre carícias e lágrimas.
 
Mas haverá estrelas, flores
e suspiros e esperanças,
e amor nas alamedas,
sob a sombra das ramagens.
 
E tocará esse piano
como nesta noite plácida,
não havendo quem o escute,
a pensar, nesta varanda.
 
 
 
juan ramón jimenez
antologia poética
tradução de josé bento
relógio d’ água
1992







11 setembro 2021

a. c. swinburne / tivesse eu sabido

 
 
 
Tivesse eu sabido, quando a vida era como um vento tépido e
                                                                                  feliz,
Brando e ruidoso na aurora e na névoa brilhante do orvalho,
Que havia de chegar o tempo em que, suspirando, os corações
                                                                                diriam:
          «Tivesse eu sabido…»
 
Nem sequer as rosas rindo ao beijarem-se,
Nem, ao sol, o mais encantador riso ondulante do mar,
Teriam vindo fascinar a minha alma para que neles reparasse.
 
Agora o vento é como uma alma desterrada a rezar inutilmente
As preces que não conseguimos ouvir se o coração lhes resiste,
Agora que a minha própria alma, à deriva e perdida como o vento,
                                                                                     suspira:
          «Tivesse eu sabido.»
 
 
 
a. c. swinburne
poemas
tradução de maria Lourdes Guimarães
relógio d’ água
2006