05 junho 2021

marcos foz / vir ao mundo nesta casa sem tecto

 
 
[…]
 
vir ao mundo nesta casa sem tecto
decreto lei súmula
será? Calibrar
nosso papel no arranjo
e só avisam quando a evasão
se ergue no papel vegetal e
a cidade pela noite com as suas mil e
duas patifes donzelias por decifrar
antros vorazmente escondidos
umas horas antes do toque das campainhas
oficiais a marcha das botas com
restos difíceis de cúpula nas reentrâncias
           & vigilantes em cada esquina
 
pouco importa termos um corpo que
falha amavelmente alguém que diz
querer morrer uma memoria apertada
num canto coberto a linho
branco que nenhuma navalha ou carimbo..
 
[…]
 
 
marcos foz
vaca preta
bestiário/snob
2021






 

04 junho 2021

claudio rodríguez / ao ruído do douro

 
 
E como eu reparava
que era tão popular pelas ruas
passei a ponte e, adeus, para trás tudo.
Mas até aqui me chega, apaguem-no, estou sempre
a ouvir aquele ruído e subo e subo,
ando de vila em vila, encosto o ouvido
ao voo do pardal, ao sol, ao ar,
eu sei lá, ao céu, ao peito das moças,
e sempre o mesmo som, igual mudança.
Que sítio é este sem trégua? Que hostes, que altas lides
me saqueiam a alma a toda a hora,
rendem a torre da divisa branca,
abrem aquele portilho, o silencioso,
o nunca falso? E és
tu, músico do rio, meu fundo fôlego,
lhaneza e voz e pulsar dos meus homens.
Seria tão melhor
Esperar! Hoje não posso, hoje estou duro
de ouvido, após tantos anos passados
com os de ruim terra. Mas eu voltei.
Campo da verdade, qual a traição?
Vejam como tanto tempo, tanta empresa
Fazem o mesmo ruído!
Vejam só como temos tido sempre
tanta pureza ao nosso lado, em casa,
e continuamos surdos!
Já nem mais uma tarde! Sê bem-vinda,
manhã. Estou pronto: que testemunhem
por mim os que ainda ouvem. Oh, rio,
fundador de cidades,
soando em tudo menos no teu leito,
faz com que o teu ruído seja canto,
seja o nosso trabalho vida afora.
Se um dia a solidão, o ver o homem
na venda, o vinho, o desamor ou o desânimo
assaltam o que bem fizeste teu,
põe-te como hoje em pé de guerra e guarda
todas as minhas portas e janelas
como sempre fizeste,
tu, que oiço agora como ouvia outrora,
tu, rio da minha terra, Duradouro.
 
 
 
claudio rodríguez
sem epitáfio
trad.miguel filipe mochila
língua morta
2019




03 junho 2021

jorge velhote / calculada melancolia

 
 
De um e do outro tudo sabíamos. O mar,
o rio, se cruzando pelas nossas largas calças,
os brinquedos de lata golpeando a curiosidade,
o primeiro sabor do sangue.
Alguns antecedentes, limalhas de sol, silenciosas ferrugens
que, entre mesas e chávenas de café,
se permutam.
 
Dessa espécie de som, dessa perdida água,
vivíamos os dias, lendo livros, olhando montras,
as belíssimas mulheres que nos cotejavam o olhar, manobrando
ancas, os metálicos lábios como relógios,
detalhes.
 
Sem uma única palavra, calculada melancolia,
comovidos, os corações cambiávamos,
triunfantes.
 
 
 
jorge velhote
hífen 2 abr / set 88
cadernos semestrais de poesia
1988





 

02 junho 2021

fernando lemos / hoje

 
 
Hoje
qualquer criança
podia ser dona do mundo
ao rasgar
este silêncio
de pele
que envolve a paisagem
 
 
fernando lemos
poesia
porto editora
2019








01 junho 2021

louise glück / a estrela da tarde

 
 
Hoje, pela primeira vez em muitos anos,
surgiu-me de novo
uma visão do esplendor da terra:
 
no céu do entardecer
a primeira estrela pareceu
tornar-se mais brilhante
enquanto a terra escurecia
 
até já não poder ficar mais escura.
E a luz, que era a luz da morte,
pareceu devolver à terra
 
o seu poder de consolo. Não havia
outras estrelas. Apenas aquela
cujo nome eu conhecia
 
pois na minha outra vida a
ofendera: Vénus,
estrela da tarde,
 
a ti dedico
a minha visão, já que nesta superfície vazia
 
derramaste luz suficiente
para tornar o meu pensamento
de novo visível.
 
 
 
 
louise glück
averno
tradução de inês dias
relógio d´água
2020






31 maio 2021

marcel mariën / a catedral

  
 
Era no tempo das damas muito pudicas e muito imaginativas.
 
Quando iam passear para o cemitério, caminhavam a passos curtos, e diz-se que apertavam maximamente as saias com receio de poderem perturbar os mortos ao devolver-lhes o desejo de existir ou até mesmo a nostalgia da vida. Uma ou outra coisa vêm praticamente dar ao mesmo.
 

 
marcel mariën
sonhador definitivo e perpétua insónia
uma antologia de poemas
surrealistas escritos em língua francesa
trad. regina guimarães
contracapa
2021





30 maio 2021

lisel mueller / triagem

 
 
Bertolt Brecht lamentava ter vivido numa época em que era quase um crime falar de árvores, porque isso significava ficar calado em relação a tanto mal existente. Caminhando numa zona cheia de ulmeiros enormes, ainda saudáveis, junto ao lago de Chicago, penso no que Brecht disse. Eu quero celebrar estes ulmeiros poupados às pragas, estes sobreviventes de uma tribo outrora florescente e comemorada por todas as Elm Streets da América. Mas celebrá-los significa ficar em silêncio em relação às pessoas que se sentaram e dormiram debaixo deles, aos pobres sem-abrigo que foram arrastados para fora da cidade como lixo, com a diferença de que não havia sítio para os despejar. Pois falar de uma coisa implica omitir outra. Quando falo de mim própria não posso falar de ti. E tu apercebes-te disso enquanto me escutas, a desilusão estampada no rosto.
 

 
lisel mueller
trocando dólares por cêntimos
alguma poesia norte-americana
trad. luís filipe parrado
contracapa
2020





29 maio 2021

joaquim manuel magalhães / a vida traz alguma dor

 
 
 
A vida traz alguma dor. Ludibrio-me.
A dor traz alguma vida. Ontem acarinhei-te tanto
queria andar hoje desacompanhado, na amurada
uma vaga de crude, um malte de ablação anal.
Acordamos a látego na alcatifa,
imundo dossel, flâmula, flagelo,
a caneca de sidra entornei-a.
 
A madeira maciça na hierática mobília
desornada. Na lupa, o monturo.
Num talo uma corola de açafrão.
Retomo o reflexo. Modifico-o
num rimance guarnecido e errático
em débito de alonjamento. O porvir
delicado brandia o borboto e a pureza
que no cofre rilhavam aparas em aluvião.
Se a labuta manietou o teu impropério, o adelo
provocará o carimbo, a rédea
e o local onde te coloquei a adelfa.
 
A melodia um relato a laborar
o mensageiro de um sonho.
 
 
 
joaquim manuel magalhães
canoagem
relógio d´água
2021





28 maio 2021

eunice de souza / contemplar as estrelas

 
 
A luz que vi em ti
amor
veio de uma estrela morta.
 
A culpa é minha:
na minha idade contemplar as estrelas
é uma arte ambígua.
 
 
 
eunice de souza
afagando a face de lorca
uma antologia
trad. francisco josé craveiro de carvalho
companhia das ilhas
2020
 



27 maio 2021

antonia pozzi / mais uma pausa

 
 
 
                          a L. B
 
 
Apoia-me a cabeça nos ombros:
que eu te acaricie com um gesto lento,
como se a minha mão acompanhasse
uma longa, invisível agulhada.
Não só sobre a tua cabeça: sobre cada face
que sofra de tormento e de cansaço
descem estas minhas carícias cegas,
como as folhas amarelecidas do Outono
numa poça que reflecte o céu.
 
 
 
antonia pozzi
um pouco do meu sangue
antologia de poesia italiana
trad. joão coles
contracapa
2020





 

26 maio 2021

peter levitt / uma centena de borboletas

 
 
8
O meu robe pendurado no jardim
pinga como uma árvore.
Um dia saio
do meu corpo
exactamente assim.
 
 
 
peter levitt
uma centena de borboletas
trad. sérgio ninguém
edições eufeme
2020






25 maio 2021

yves bonnefoy / trata-se mesmo deste objecto

 
 
Trata-se mesmo deste objecto: cabeça de cavalo descomunal onde se incrusta toda uma cidade, com suas ruas e muralhas a correr entre os olhos, colando ao meandro e ao alongamento do focinho. Um homem soube construir com madeira e papelão esta cidade, e iluminá-la lateralmente com uma verdadeira lua, trata-se mesmo deste objecto: a cabeça de cera duma mulher a girar, descabelada, no prato dum fonógrafo.
 
Tudo coisas daqui, terra do vime, do vestido, da pedra, isto é: terra da água nos vimes e nas pedras, terra dos vestidos manchados. Este riso coberto de sangue, é o que vos digo, traficantes de eterno, rostos simétricos, ausência do olhar, pesa mais na cabeça do homem do que as perfeitas Ideias, que só sabem desbotar sobre a sua boca.
 
Que sentido atribuir a isso: um homem fabrica com cera e cores o simulacro duma mulher, adorna-a com todas as parecenças, obriga-a a viver, dá-lhe, graças a um sábio jogo de luzes, essa hesitação no limiar do movimento que o sorriso também exprime.
 
A seguir, munido dum archote, abandona o corpo inteiro aos caprichos da chama, assiste à deformação, às rupturas da carne, projecta no instante mil figuras possíveis, ilumina-se à custa de inúmeros monstros, sente como uma faca essa dialéctica fúnebre em que a estátua de sangue renasce e se divide, na paixão da cera, das cores?
 
 
 
 
yves bonnefoy
sonhador definitivo e perpétua insónia
uma antologia de poemas
surrealistas escritos em língua francesa
trad. regina guimarães
contracapa
2021
 
 





 

24 maio 2021

cesare pavese / the night you slept

 
 
Também a noite se parece contigo,
a noite longínqua que chora,
muda, no fundo do coração,
e as estrelas passam cansadas.
Uma face aflora uma face –
é um tremor frio, alguém
se agita e te suplica, só,
perdido em ti, na tua febre.
 
A noite sofre e anseia pelo amanhecer,
pobre coração que estremeces.
Ó rosto fechado, negra angústia,
febre que afliges as estrelas,
os que esperam como tu o amanhecer
sondam o teu rosto em silêncio.
Estendes-te sob a capa da noite
como um horizonte morto e fechado.
Pobre coração que estremeces,
num dia distante foste o amanhecer.
 
 
 
cesare pavese
virá a morte e terá os teus olhos
trad. rui caeiro
edições do saguão
2021