20 novembro 2020

josé ángel cilleruelo / aqui

 
 
                                                                          Eu estou sempre aqui.
                                                                                          Ruy Cinatti
 

Gostava da chuva mansa
dos dias do norte.
adorava a humidade sobre o rosto:
pouso no chão o telefone
sobre o tapete cinzento
e ajusto a luz nas persianas;
ria-se por nada às sextas-feiras
quando ao entardecer
enlouquece de súbito a cidade:
fecho a varanda
em pleno agosto para impedir
que se espalhe a campainha;
não perdia uma única
das manhãs de feira,
as rifas, as lojas com sardinhas:
abro um livro para fechá-lo,
não me sobressalte a meio de um verso
o som do telefone;
atava à esquerda
o cachecol sobre a gabardina
desproporcionalmente clara:
ponho um disco, embora baixo,
e olho com prazer o aparelho
mudo sobre o tapete;
gostava de passar a noite em comboios,
apanhar aviões, camionetas
para qualquer lado:
no meu caderno anoto uma data mais,
outro dia, outro mês, outro ano,
eu estou sempre aqui.
 
 
 
josé ángel cilleruelo
o dom impuro
antologia
trad. joaquim manuel magalhães
averno

2004




19 novembro 2020

eduardo pitta / vejo-os chegar à velocidade

 
 
Vejo-os chegar à velocidade
da erva
inquietos mais que desolados.
 
Vêm mudos, sujos
quase sempre, periféricos
a qualquer melancolia.
 
O campo, a cidade
e mesmo as gentes
lhes são estrangeiras.
 
 
 
eduardo pitta
olhos calcinados
desobediência
poemas escolhidos
dom quixote
2011

 




18 novembro 2020

jorge velhote / fria é a água na escuridão

 
 
.2.
 
Eras sem destino como o vento.
 
Ou os pássaros exactamente.
 
Sob o abismo do silêncio a imensidão
 
das sombras é como estrume.
 
Ou a pureza dos pastores.
 
Diante da chuva o medo cresce
 
como o bosque inacessível.
 
Mais tarde, destinaste à morte
 
um relâmpago de tristeza.
 
E a serenidade das sementes.
 
 
 
jorge velhote
âmago
edições sem nome
2018

 



17 novembro 2020

lawrence ferlinghetti / as mulheres de sarolla





joaquín sorolla, el água

 
 
 
               As mulheres de Sarolla com os seus chapéus
                                                                           [de retrato
estendidas nas praias que ele pintava nas telas
             eram uma tentação para os impressionistas
                  espanhóis
 
               E seriam elas retratos fraudulentos
do mundo
             devido ao brilho da luz sobre elas
                                   criando ilusões
de amor?
 
               Não posso deixar de pensar
                                   que a sua «realidade»
era quase tão real como
       a recordação que levo do dia de hoje
 
   quando o derradeiro sol se pendurou nas colinas
    e ouvi o dia a cair de súbito
     como as gaivotas a caírem
      quase na praia
enquanto os últimos picnicadores estendidos na
                                                                             [areia
 
     se amavam no amarelo das pinceladas fortes
e resistiam resistindo-se
     separando-se um do outro
           e enlaçando-se
               e separando-se outra vez
até que um último espasmo quente e suspenso
       a que não era possível resistir
               os fez gemer
 
E as árvores da noite se ergueram
 
 

lawrence ferlinghetti
pictures og the gone world
trad. josé palla e carmo
cadernos de poesia
dom quixote
1972




 

16 novembro 2020

charles bukowski / é engraçado, não é?

 
 
mudando de canal na tv
infinitamente
passas
por todas as caras
mas nunca encontras
a cara certa
 
só caras
 
é um desdobramento de
terror
flick
flick
flick
 
mais
de
menos
 
caras
que dizem
aquilo
com que
foram
preenchidas
 
como
é que entraram
naquele
vidro?
 
quem
as pôs
ali?
 
não há
nada
mais?
 
um
mundo a ter?
um
mundo a salvar?
 
essas não são
as minhas pessoas
 
para onde foram
as minhas
pessoas?
 
 
 
 
charles bukowsky
os cães ladram facas
trad. rosalina marshall
alfaguara
2018





 

15 novembro 2020

maria gabriela llansol / um falcão no punho (fragmento)

 
 
Herb∂is: a ilha para onde nos dirigimos tinha sido riscada do mapa; a não ser que o lugar onde nos encontrávamos, desprendendo-se dos prados firmes, nos levasse para ela.
 
Os dias já não são o que eram; nunca havíamos suposto que seria necessário recorrer tano à escrita:
                  «si l’on pousse assez loin dans le langage,
                   on se trouve pris dans l´étreinte de la pensée.»
 
a perda do mar pela areia é inevitável; da vela que arde à folha que respira, o seu rosto permanecia sempre latente; e qualquer objecto estava sempre a ser rodeado por ela.
 
 
 
maria gabriela llansol
sião
organização e notas de
al berto, paulo da costa domingos e rui baião
lisboa
1987

 




14 novembro 2020

luís miguel nava / uma candeia

 
 
 
       Poisei na margem desta folha uma candeia, para que se tornassem mais claras as palavras deste texto. Uma candeia também ela feita de palavras e que, contrariamente às aparências, não está na margem mas dispersa nas palavras, de tal forma que, se eu falar das praias, por exemplo, o próprio olhar dos leitores torna visíveis os contornos dos banhistas.
 
 
luís miguel nava
o céu sob as entranhas
poesia
assírio & alvim
2020







13 novembro 2020

isabel meyreles / o livro do tigre

 
 
                       V I
 
Do outro lado do sonho
a memória tem olhos facetados
(mil imagens de ti por segundo)
e a raiz quadrada do coração
não é aquela que julgas.
Do outro lado do sonho
as verdades levam uns chapeuzinhos verdes
muito engraçados e baloiçam-se
nas agulhas do relógio de Deus.
Do outro lado do sonho
o tempo é uma centopeia sem cabeça
que caminha sobre um espelho invertido
e a morte uma figurinha em maçapão
vestida com um poncho peruano.
Do lado de cá do sonho
a Fénix alisa as penas
e ri estupidamente.
 
 
 
isabel meyreles
poesia
o livro do tigre 1976
tradução de isabel meyreles
quasi
2004




 

12 novembro 2020

yvette k. centeno / caminho

 
 
devagar cortei-te o pulso
 
percorri esse caminho
dentro das tuas veias
 
enquanto o sangue saía
abria portas de entrada
 
eu avançava ao contrário
dentro de ti me perdia
 
o amor não era mais nada
 
 
 
yvette k. centeno
perto da terra
entre silêncios
poesia 1961-2018
glaciar
2019

 



11 novembro 2020

r. lino / nove instantâneos do sul

 
 
.terceiro.
 
nada se assemelha ao encontro do calor
que a brisa leva abrigado pelo fresco.
 
esta planície, as vestes
gestos vagos de cheiroso sândalo,
 
encontros preparados para a noite
lutas, pérolas e coragem:
 
três lâminas
aguçadas de surpresa.
 
 
 
r. lino
nove instantâneos do sul
políptico
companhia das ilhas
2016

 




10 novembro 2020

fiama hasse pais brandão / canto da chávena de chá

 
 
Poisamos as mãos junto da chávena
sem saber que a porcelana e o osso
são formas próximas da mesma substância.
A minha mão e a chávena nacarada
– se eu temperar o lirismo com a ironia –
são, ainda, familiares dos pterossáurios.
A tranquila tarde enche as vidraças.
A água escorre da bica com ruído,
os melros espiam-me na latada seca.
É assim que muitas vezes o chá evoca:
a minha mão de pedra, tarde serena,
olhar dos melros, som leve da bica.
A Natureza copia esta pintura
do fim de tarde que para mim pintei,
retribui-me os poemas que eu lhe fiz
de novo dando-me os meus versos ao vivo.
Como se eu merecesse esta paisagem
a Natureza dá-me o que lhe dei.
No entanto algures, num poema, ouvi
rodarem as roldanas do cenário,
em que as palavras representavam
a cena da pintura da paisagem
num telão constantemente vário.
Só o chá me traz a minha tarde,
com a chávena e a minha mão que são
o mesmo pedaço de calcário.
Hoje a bica refresca a água do tanque,
os melros descem da latada para o chão,
e as vidraças devagar escurecem.
As palavras movem-se e repõem
no seu imóvel eixo de rotação
o espaço onde esta mesa se verga
gira nas grandes nebulosas.
 
15/11/93
 
 
fiama hasse pais brandão
cantos do canto
relógio d´água
1995





09 novembro 2020

sophia de mello breyner andresen / estrada

 
 
Passo muito depressa no país de Caeiro
Pelas rectas da estrada como se voasse
Mas cada coisa surge nomeada
Clara e nítida
Como se a mão do instante a recortasse.
 
 
 
sophia de mello breyner andresen
dual
caminho
2004

 






08 novembro 2020

alexandre o'neill / mesa dos sonhos

 
 
Ao lado do homem vou crescendo
 
Defendo-me da morte quando dou
Meu corpo ao seu desejo violento
E lhe devoro o corpo lentamente
 
Mesa dos sonhos no meu corpo vivem
Todas as formas e começam
Todas as vidas
 
Ao lado do homem vou crescendo
 
E defendo-me da morte povoando
De novos sonhos a vida.
 

 
alexandre o´neill
no reino da dinamarca 1958
poesias completas
assírio & alvim
2000