15 maio 2020

mário cláudio / cefaleia


Sem que os víssemos nos viam
marcavam a hora,
elegiam a rua,
compravam um jornal que nem desfolhavam.

Eram estranhos,
retiravam um cartão,
abandonavam as mesas
precipitadamente.

Há anos isto foi,
os ossos nos
magoam desde então.


mário cláudio
hífen 4 abr/set 89
cadernos semestrais de poesia
viagens
1989







14 maio 2020

gastão cruz / thriller



Mil bares conheci cheios de gente
morta, como se aqueles dias vivos,

sem que eu soubesse, o dia de hoje fossem,
e talvez pertencessem ao filme

num clube visto outrora;
podia ser ali o paraíso, mas outrora

era agora: e aqui nenhuma vida
ou morte sobrevive


gastão cruz
relâmpago, revista de poesia nº 34
abril 2014








13 maio 2020

antónio gedeão / aurora boreal



Tenho quarenta janelas
nas paredes do meu quarto.
Sem vidros nem bambinelas
posso ver através delas
o mundo em que me reparto.
Por uma entra a luz do Sol,
por outra a luz do luar,
por outra a luz das estrelas
que andam no céu a rolar.
Por esta entra a Via Láctea
como um vapor de algodão,
por aquela a luz dos homens,
pela outra a escuridão.
Pela maior entra o espanto,
pela menor a certeza,
pela da frente a beleza
que inunda de canto a canto.
Pela quadrada entra a esperança
de quatro lados iguais,
quatro arestas, quatro vértices,
quatro pontos cardeais.
Pela redonda entra o sonho,
que as vigias são redondas,
e o sonho afaga e embala
à semelhança das ondas.
Por além entra a tristeza,
por aquela entra a saudade,
e o desejo, e a humildade,
e o silêncio, e a surpresa,
e o amor dos homens, e o tédio,
e o medo, e a melancolia,
e essa fome sem remédio
a que se chama poesia,
e a inocência, e a bondade,
e a dor própria, e a dor alheia,
e a paixão que se incendeia,
e a viuvez, e a piedade,
e o grande pássaro branco,
e o grande pássaro negro
que se olham obliquamente,
arrepiados de medo,
todos os risos e choros,
todas as fomes e sedes,
tudo alonga a sua sombra
nas minhas quatro paredes.

Oh janelas do meu quarto,
quem vos pudesse rasgar!
Com tanta janela aberta
falta-me a luz e o ar.




antónio gedeão
6 poemas
edições joão sá da costa
1995







12 maio 2020

carlos de oliveira / infância



II

Tão pequenas
a infância, a terra.
Com tão pouco
mistério.

Chamo às estrelas
rosas.

E a terra, a infância,
crescem
no seu jardim
aéreo.

  


carlos de oliveira
turismo
trabalho poético
livraria sá da costa editora
1998






11 maio 2020

luís miguel nava / o céu



Assoam-se-me à alma, quem
como eu traz desfraldado o coração sabe o que querem
dizer estas palavras.
A pele serve de céu ao coração.



luís miguel nava
como alguém disse
desenhos de manuel cargaleiro
contexto editora
1982












10 maio 2020

álvaro de campos / meu pobre amigo, não tenho compaixão que te dar.


Meu pobre amigo, não tenho compaixão que te dar.
A compaixão custa, sobretudo sincera, e em dias de chuva.
Quero dizer: custa sentir em dias de chuva.
Sintamos a chuva e deixemos a psicologia para outra espécie de céu.


Com que então problema sexual?
Mas isso depois dos quinze anos é uma indecência.
Preocupação com o sexo oposto (suponhamos) e a sua psicologia —
Mas isso é estúpido, filho.
O sexo oposto existe para ser procurado e não para ser compreendido.
O problema existe para estar resolvido e não para preocupar.
Compreender é ser impotente.
E você devia revelar-se menos.
"La Colére de Samson", conhece?
"La femme, enfant malade et [...]"
Mas não é nada disso.
Não me mace, nem me obrigue a ter pena!
Olhe: tudo é literatura.
Vem-nos tudo de fora, como a chuva.
A maneira? Se nós somos páginas aplicadas de romances?
Traduções, meu filho.
Você sabe porque está tão triste? É por causa de Platão,
Que você nunca leu.
E um soneto de Petrarca, que você desconhece, sobrou-lhe errado,
E assim é a vida.
Arregace as mangas da camisa civilizada
E cave terras exactas!
Mais vale isso que ter a alma dos outros.
Não somos senão fantasmas de fantasmas,
E a paisagem hoje ajuda muito pouco.
Tudo é geograficamente exterior.
A chuva cai por uma lei natural
E a humanidade ama porque ama falar no amor.

9-7-1930



álvaro de campos
livro de versos
fernando pessoa
estampa
1993






09 maio 2020

al berto / carta da região mais fértil


(a meu pai)



vai certamente estranhar esta quase interminável carta
pai    
há muito que o silêncio se fez entre nós    
o pai com os seus trabalhos por aí onde o tempo custa a passar    
e eu pobre de mim    
tão aflito me sinto com a velocidade desse mesmo tempo    
a cidade é veloz    
não sei se o pai poderá compreender esta velocidade    
aqui tudo se tornou dia após dia mais doloroso    
minha mulher anda atarefadíssima com o arranjo da casa    
parece que mais nada existe para ela    
eu sempre na rua por aí  
porque não consigo suportar aqueles móveis
onde o pó não chega a pousar 
não consigo suportar aquela barulheira de electrodomésticos    
continuamente a funcionarem    
já não consigo suportar minha mulher`


saio de casa logo de manhã    
muitas vezes não me apetece ali voltar    
deambulo pela cidade gasto tempo de café em café    
perco-me    
noite dentro caminho sem direcção precisa    
sem saber para onde vou atravesso a cidade     
à procura não sei bem de quê    
o corpo esvaziou-se lentamente e    
com o passar do tempo sei agora    
este casamento foi um erro    
estou terrivelmente só    
talvez seja por isso que me lembrei de lhe escrever    
pai    
decidi partir    
não me pergunte para onde nem porquê    
partir é o que ressoa na minha cabeça   
viajar sem fim e jamais voltar    
também é inútil perguntar-me as razões de tudo abandonar    
este conforto enjoa-me esta vida dá-me vertigens e diarreia    
de resto duvido que existam razões de peso    
tenho a certeza de que seria capaz de suportar minha mulher
se ainda a amasse    
partilharia com ela a loucura que adquiriu pela casa    
a semanal mudança de lugar dos móveis    
e mais estranho ainda    
quando põe a máquina da roupa a trabalhar sem nada lá dentro    
diz que adora aquele insuportável ronronar de aço    
que lhe faz muita companhia    
enfim    
se eu ainda a amasse talvez    

mas é certo que arranjei outras compensações    
a amizade segura de um amigo    
talvez seja melhor não revelar grande coisa sobre este assunto    
poderia chocar o pai por demasiado íntimo e delicado
duvido mesmo que conseguisse entender a amizade como eu a entendo    
que quer    
sempre gostei da travessia das noites e das pessoas    
e de beber    
muitas vezes nem sei quem são as pessoas com quem falo    
o pai dir-me-á que tudo isto são simples fugas    
é possível    
desde que me conheço que me fujo    
amo essas fugas esses pedaços doutras vidas cruzando-se    
com pedaços sombrios da minha    
não leve a mal estes desvarios    
no fundo teria sido melhor para mim ter ficado aí    
onde o tempo parece não avançar e a terra é fértil    
provavelmente hoje seria um desses pastores que meditam     
sobre as fases da lua mesmo antes delas se iniciarem    
é possível que hoje fosse um operário exemplar    
trabalharia sem sequer me pôr a questão de que há outro mundo    
por descobrir para lá do incessante roncar surdo das máquinas    
tudo explodiu dentro de mim e não sei como dizer-lho  
vou largar tudo    
a mulher o trabalho a cidade onde vivo a casa de que não gosto    
a cidade apagou em mim muitos desejos    
a única coisa que ainda faço com prazer é vagabundear    
o que não é muito     
mas sinto-me livre e feliz e anónimo

olho a vida como se o mundo desabasse dentro de instantes    
quanto ao emprego não se preocupe    
vou escrever ao meu patrão para me despedir    
não sei o que me espera longe daqui    
nem sei onde pararei de viajar    
sei que devo partir de todos os lugares onde chegar    
se é que alguma vez vou chegar a algum lugar    
fascinam-me sobretudo as cidades costeiras
nelas poderei embarcar para outras cidades
ou ficar no cais a ver os barcos afastarem-se    
e quedar-me silencioso horas a fio    
olhando-os desaparecer    
com o simples desejo de ir com eles    
mas ficar    
ficar um dia mais para que o desejo de partir se torne tão forte    
insustentável    
e me apeteça morrer em cada porto de partida e de chegada    
nesta incerteza viverei o resto dos meus dias    
atravessando mares devassando corpos e noites    
que de mastro em mastro se tornam peganhentas    
indecisas

digo isto porque ultimamente tenho sonhado muito
facto extraordinário que já não me acontecia há muito tempo    
nesses sonhos surgem-se grandes planos de rostos    
antigas topografias de corpos    
desenhados minuciosamente no espaço como mapas pormenorizados    
dalguma costa pedregosa    
paisagens exuberantes imagens a preto e branco    
semelhantes a fotografias ou a visões    
feras que silentemente passeiam pela praia    
e parecem não ter peso    
imensos mares que não consigo localizar nos mapas    
cheguei mesmo a comprar uma quantidade incrível de mapas    
passei noites a estudá-los    
senti a necessidade absoluta de saber onde encontraria    
aquelas paisagens de rostos e de feras com pêlo ruivo    
assim percorri estradas e arquipélagos    
percorri cidades sem me deter para pernoitar    
imaginei sedes e fomes terríveis doenças    
e nada consegui saber de mim mesmo    
nem onde se encontrava meu corpo


por vezes acordava em sobressalto    
olhava minha mulher dormir    
perscrutava seu corpo moreno enrolado no lençol    
avistava praias espreguiçadas pela penumbra do quarto    
deve ter sido uma das últimas vezes que a amei     
mas só mais tarde comecei a ter visões
ficava sentado na cama estático os olhos em alvo    
apercebia pequenas formas geométricas flutuantes    
delicados cristais movimentando-se aderiam aos dedos    
sementes de estrelas rebentavam deixando escorrer resina    
claridades pelas paredes abauladas    
o ar ficava incandescente    
podia vê-lo e senti-lo cortante sobre o peito    
a princípio assustei-me    
mas com o tempo habituei-me    
como me habituei a ver no escuro a desolação de barcos naufragados    
e a viver sem corpo sem sombra e sem reflexo    
minha mulher achou melhor internarem-me    
mas nunca me foi visitar    
nem uma só vez enquanto estive atado a uma cama    
precisava tanto dela    
ou de alguém que me tocasse    
para me certificar que a vida ainda latejava no fundo do corpo    
não se assuste pai    
tudo isto passou e a morte parece não querer nada comigo    
de resto    
a vida também não    
talvez não devesse falar-lhe destas coisas    
que direito terei eu de o inquietar? de o perturbar?    
nem sequer lhe devia escrever    
na verdade fomo-nos afastando tanto nos últimos anos    
o pai já deve ter os cabelos todos brancos    
pouco ou nada tínhamos a dizer um ao outro    
o sol a chuva o mar e a tempestade eram-me indiferentes    
o cheiro quase doce da terra molhada    
não sei se o pai consegue imaginar o que é uma cidade    
que respiração ferida de cimento se exala dela    
um coração de gasolina e de néon palpita das avenidas    
aos subúrbios de lata e de estrumeiras    
que cicatrizes sujas de lágrimas se abrem ao cair da noite    
e tudo brilha e tudo parece viver por trás do que já está morto    
entradas de cinemas montras jornais luminosos umbrais de luz    
poderá imaginar tanta luz em plena noite?    
o espaço rasgado por passos rostos barulhos sibilantes    
sirenes gritos pequenos suicídios    
ignoro se o céu imenso daí não o acharia estreito aqui    
percebe agora como é que alguém se pode perder na noite?    
não sei


noutros tempos é possível que tivesse vivido como aventureiro    
como esses homens tristes tisnados pelo mar    
viajam    
levando mercadorias e mensagens iam de porto em porto    
enriquecendo fornicando rezando e largando enteados e sífilis    
quem sabe se não sou habituado pela sombra dum país qualquer    
muito antigo e distante    
ou apenas pelo eco duma língua que estala no coração    
uma voz um rosto murmurado um presságio    
então comecei por atravessar o rio nos cacilheiros    
de dia e de noite sem me aperceber que o tempo deste rio    
já o haviam pintado em retábulos magníficos    
e o rio só existia quando sonhava   
como se isto resolvesse alguma coisa ia e vinha    
sem nunca ter a sensação de quem chega ou de quem parte    
sentia-me como que a boiar num tempo remoto    
e de mais longe ainda que o meu próprio corpo podia lembrar    
um cheiro inquietante a sal devassava-me a intimidade do sonho    
corroí-me a memória


pensei depois ao olhar as fotografias    
as poucas onde me conseguia reconhecer    
que resolveria esta angustiante procura    
julguei que se pudesse recuar ou avançar no tempo    
ser jovem e velho e velho e jovem simultaneamente    
talvez pudesse reencontrar-me de novo ou insinuar-me    
no corpo fotografado    
encontraria o sorriso simples da infância que me revelaria o nome    
mas foi impossível    
porque aquele rapaz que sorria e me olhava    
com os seus olhos em papel sépia não era eu    
e tive medo    
passava as noites a embebedar-me    
turvava a memória de tudo e de todos    
era-me doloroso não conseguir corrigir o passado    

a viagem que de manhã início é um sobejo de vida    
ignoro se irei parar a um desses países cuja linguagem desconheço    
e os costumes do amor me são estranhos    
não sei se haverá regresso    
mas não esquecerei a sua colecção de selos    
quando o pai receber um postal dum determinado lugar    
é sinal de que nesse lugar não estarei    
será inútil tentar saber o meu paradeiro    
pouco importa se continuo vivo    
se calhar esta viagem não passa de pura imaginação

    
tem de me desculpar esta última carta    
de resto pouco disse do que inicialmente lhe queria dizer    
paciência pai    
não nos veremos mais e eu tenho pena de nunca ter tocado    
os seus cabelos brancos    
mas de qualquer maneira já nos víamos muito pouco    
tanto tempo sem memória nos separou

    
peço-lhe que queime esta carta    
destrua-a    
e se a minha mulher lhe escrever ou telefonar    
diga que nada sabe do seu filho há muitos anos   
é melhor assim    
nenhum resíduo nenhum brilho deve assinalar a minha passagem


al berto
três cartas da memória das índias 1983/1985
o medo
assírio & alvim
1997