Uma
tremenda força reacionária cobre de noite a Poesia. Aos raros espíritos que
tentam reivindicar para ela os antigos prestígios, o seu poder de encantação,
de transposição dos secretos ritmos do mundo, de vidência, magia e ciência, mal
lhes chega a força e o tempo para elevar o seu amor um tudo nada acima das
paupérrimas formas de vida deste século onde a conjunção tenebrosa da religião,
do capital e do resto dispõe de um eficaz arsenal de artifícios para aviltar os
homens: técnicas psicológicas para mutilar a tensão inicial que os liga à
realidade exterior; coacções económicas para limitar a liberdade propulsora do
seu acesso às grandes zonas perigosas onde as forças obscuras arpoadas pela necessidade humana se objectivam, se
transformam em realidade tangível; valores, noções e obrigações para torna-los
vis degradando o seu sentido do Maravilhoso, substituindo o Amor e as altas
circunstâncias da vida que o realizam – único contexto da Dignidade e da
Grandeza humanas – por fórmulas obtusas e vulgares que são o penhor do poderio
da mediocridade e da miséria moral; enfim, uma religião masoquista para os habituar, para fazer deles cidadãos
submissos, viciando-lhes a sensibilidade e fechando-lhes o espírito.
É
esta a orla dum tempo onde todo o pensamento grande e rigoroso vai dar ao
inferno. Mas em todos os tempos, naturalmente, a sua tendência não foi
acomodar-se ao sono do tempo, não foi pacificar as querelas e contradições que
o uniam, a sua tendência foi exasperá-las. O inferno, a noite, o caos, a
natural violência dos monstros, dos dilúvios, das convulsões da terra, dos
vapores venenosos das origens sempre foram o crivo onde o pensamento se teve de
perder antes de encontrar o porto interdito aos que em vez do universal
demandaram o particular, em vez do verdadeiro só puderam ver o comum. Em todos
os tempos, também, tal como a água a insinuar-se por entre as falhas das
rochas, lá longe, absolutamente a sós, à
frente, os guardas-avançados do espírito têm estado atentos às falhas da
grande noite que os rodeia, procurando aberturas, espaços iluminados onde
possam abrir a estrada da emancipação do homem, num combate árduo pela
conquista duma absoluta semelhança entre o que ele é e a mais alta ideia de si
mesmo. Foram já dados alguns passos em frente, etapas que nenhum Thermidor,
nenhum refluxo reaccionário conseguiu fazer recuar porque foram definitivas,
forneceram novas e superiores perspectivas à luta pela interpretação e
transformação do homem e do mundo. Em vão se procurará fundamentar validamente
qualquer acção que, reclamando-se do conhecimento e da criação, se inscreva
fora dos quadros dessa luta. Ela apela para todas as forças objectivas e
subjectivas dos diversos modos de actividade libertadora. Apela para a Poesia –
função do desejo e raiz do conhecimento, o qual incide sobre a descoberta do elemento que permite ao sujeito organizar-se de maneira a se integrar
totalmente no objecto que o reclama, que permite à particularidade de cada
homem, num excesso de real, harmonizar-se com a universalidade, como um homem e
uma mulher, quando o desejo é tão grande que o contacto dos seus corpos é conhecimento, sem domínio nem
escravidão, se harmonizam – no ponto onde toda a energia se cristaliza nessa
maravilhosa jóia negra que obriga a perder quem a quiser ganhar, que dana quem
por ela se quiser salvar. É essa aceitação dos riscos extremos, mediada pelos
danadores-salvadores que interceptam a corrente magnética e a distribuem, que
dá aos homens a senha das sucessivas passagens das trevas para a luz, do
caótico para o ordenado, da realidade dispersa do sonho para a realidade
concentrada do estar acordado.
Atento
a todos os sinais reveladores, o
poeta espera acordar. O prémio desta espera, mais ainda do que as partidas e
chegadas, é ela própria: sexualização da vida, casamento do homem com o mundo
para além de todo o desespero, toda a angústia, toda a merda – cuidadosamente organizada
pelos macacos pensantes – que os séculos acumularam enterrando o homem num
fosso de miséria e de injustiça. O poeta quer tornar essa espera extensiva à humanidade
inteira. É esse – nenhum outro! – o seu compromisso. O sentido e a medida da
sua acção ultrapassam de longe todas as soluções
de continuidade das condições actuais: é que ele, considerando bons e
estimáveis alguns lances do caminho já andado, acha que em verdade ainda está tudo por fazer. Quanto aos
que exploram a actual situação (os que não deixam passar), o poeta não pode senão – e da maneira mais activa –
desejar o seu extermínio.
A
Moral é a acção da Poesia. Quero dizer: o poeta é exemplar. Ele não pode
aceitar que à sua volta se coisifique o
homem. Sabe muito bem precisar a sua subsistência da liberdade dos outros,
porque sem a crítica engendrada por essa liberdade as suas perspectivas não se
definem, ficando ele como uma máquina a projectar um belo filme sobre um espaço
vazio; sabe muito bem que sem a disponibilidade condicionada por essa liberdade
o trabalho altamente poético de vagabundagem à procura de choques reveladores,
transforma-se, de exaltante, em amargurado. Para ele, ser livre é conservar
intacta a necessidade da consciência que visa à transformação do estado entre a
multiplicidade de estados relativos do ser, que mais se ajusta ao ponto
equilibrante onde fundem a lei contingente da matéria e a liberdade do
espírito. A preservação dessa necessidade vai de par, nele, com a denúncia de
todo os sistema arbitrário cuja estrutura seja precária e pretenda possuir um
valor absoluto. Ele tem de descobrir o seu próprio sistema de aferição do real,
a sua própria física, arruinado a
actual, comportando-se sempre em relação às «verdades» do mundo e em relação à
sua própria percepção duma maneira subversiva. Nas condições actuais, não há
nada mais miserável do que a «recuperação» social dos poetas, nem há nada mais
canino do que o prestarem-se os poetas a uma tal recuperação, ou por
envelhecerem ou por não terem sabido manter a distância suficiente, conscientes da sua direcção única: essa «vontade prática» que
procura restabelecer os verdadeiros fundamentos da relação homem-mundo e de
alguma maneira coincide com a obscura sensação de gravitarmos em volta de um objecto que, mesmo sendo desconhecido,
corresponde concretamente à nossa mais íntima e essencial necessidade. Pertence
este fenómeno a uma ordem galvanizada de relações interiores tão determinante e
incoercível que dificilmente cabe em qualquer esquema da consciência. Trata-se
dum desses fenómenos psíquicos mais obscuros e axiais por referência à direcção
do espírito, à vibração da sensibilidade e à consciência moral. São as
migrações das forças que atravessam a matéria e o espírito, ambos
permanentemente animados por um dinamismo a que os alquimistas procuravam
descobrir as correspondências e as afinidades que o produzem. O choque, o
encontro com esse objecto – condutor duma força que simultaneamente é atraída e
se opõe à que nós próprios conduzimos – é susceptível de produzir uma descarga
capaz de iluminar, ainda que brevemente, o campo vago eternamente cerrado de
bruma onde o que o homem é e o que o
homem não é têm os seus «rendez-vous»
numa ambiência subitamente prenhe de reminiscências encantadas e infantis. Essa
descarga luminosa – a imagem poética tal como a concebo – resulta do choque de
forças atractivas puras e ocupa um lugar essencial no esquema motor do surrealismo
que, procedendo a uma sensibilização absoluta da relação sujeito-objecto,
considera a sensação estética igual à sensação de passagem de corrente e da
vibração dessa passagem que pode vir algum remédio para o estado viciado em que
se encontram as estruturas da percepção reputadas de normais. Efectivamente, é
esse viciamento cuja génese não faremos agora que fundamenta todas as inversões
do verdadeiro funcionamento do espírito, especialmente a mania da descrição dos
objectos que tanto atenta contra a principal virtude do espírito: reproduzir a virtude das coisas, recriando-as. O poeta, existindo pelo que lhe é
reversível, está menos sujeito a esse viciamento que separa a vida latente da
vida manifesta. Ele acha (devemos também ao surrealismo a formulação objectiva
desse instinto milenário) ser a vida para o contexto de forças que definiremos
por destino o que a linguagem é para o pensamento. O poeta sente conduzir a
vida e ser conduzido por ela. Crê ser um dever o procurar ler um destino na
trama emaranhada dos seus encontros, nas neves da sua existência orgânica, com
esse ar das grandes montanhas que «exalta antes de matar», esse ar que já é outro. Da gravidade duma tal concepção
da vida, resulta o poeta atribuir aos seus valores a mesma importância que os
antigos navegadores davam às conjunções celestes que os orientavam. Esses valores,
esses ímans correspondem a necessidades concretas da vida humana. Esses valores
puxam o homem, orientam-no, são
estrelas que ele utiliza para tirar o seu ponto,
pólos magnéticos que se chamam o Sonho, o Amor, a Liberdade – tutelas da única
real tradição viva que a Poesia encarna.
1963
ernesto
sampaio
a única real
tradição viva
antologia da
poesia surrealista portuguesa
por perfecto e. cudrado
assírio & alvim
1998