25 novembro 2018

alberto caeiro / primeiro prenúncio de trovoada de depois de amanhã




Primeiro prenúncio de trovoada de depois de amanhã.
As primeiras nuvens, brancas, pairam baixas no céu mortiço
Da trovoada de depois de amanhã?
Tenho a certeza, mas a certeza é mentira.
Ter certeza é não estar vendo.
Depois de amanhã não há.
O que há é isto:
Um céu azul, um pouco baço, umas nuvens brancas no horizonte,
Com um retoque de sujo em baixo como se viesse negro depois,
Isto é o que hoje é,
E, como hoje por enquanto é tudo, isto é tudo.
Quem sabe se eu estarei morto depois de amanhã?
Se eu estiver morto depois de amanhã, a trovoada de depois de amanhã
Será outra trovoada do que seria se eu não tivesse morrido.
Bem sei que a trovoada não cai da minha vista,
Mas se eu não estiver no mundo,
O mundo será diferente —
Haverá eu a menos —
E a trovoada cairá num mundo diferente e não será a mesma trovoada.

10-7-1930



alberto caeiro
poemas inconjuntos
poemas de alberto caeiro, fernando pessoa
ática
1946







24 novembro 2018

natália correia / o livro dos amantes



I

Glorifiquei-te no eterno.
Eterno dentro de mim
fora de mim perecível.
Para que desses um sentido
a uma sede indefinível.

Para que desses um nome
à exactidão do instante
do fruto que cai na terra
sempre perpendicular
à humidade onde fica.

E o que acontece durante
na rapidez da descida
é a explicação da vida.




natália correia
poemas
antologia poética
dom quixote
2018







23 novembro 2018

david lehman / 8 de março




De vez em quando o meu pai vem
visitar-me pendura o sobretudo e o chapéu
no meu bengaleiro dou-lhe conta
das novidades e faço café para os dois
fica surpreendido por eu gostar de cozinhar
uma vez quando fez uma omelete
virou-a no ar para grande prazer meu
e caiu no chão sim foi
no verão de 1952, lembrava-se
das ondas gigantes e de como sem medo
eu corria para o oceano de qualquer forma
o importante é ver saíres-te
tão bem disse pegou no casaco e no chapéu
e foi-se embora antes de eu me lembrar que estava morto



david lehman
trad. francisco josé craveiro de carvalho
eufeme
magazine de poesia
n.º 4 julho/setembro 2017







22 novembro 2018

jacques roubaud / fins





O sol põe-se sob a porta.

Parece evidente que alguma coisa chega ao fim, mas como saber o quê? se fosse o dia era simples, mas de uma simplicidade exterior, implicando apenas gestos: a lâmpada, o fechar das portas, a cama.

Não pode ser isso.

Procuro um indício no sol, na mancha de sol-posto diante da porta, que já se move, já se retira.

Morrer? não me parece. aliás, morrer não acabaria nada. pelo menos para mim.

Alguma coisa que está no seu fim, muito próxima, no sol-posto sob a porta. não chegarei a saber o quê.

Não tentarei sabê-lo. o sol apagado, a noite consciente do seu fim, levantar-me-ei, fecharei as portas, as lâmpadas, a cama.

Houve um tempo em que não teria deixado perder-se o sentido de nenhum fim interior. teria ficado na noite, as mãos na noite, as palavras.

Agora, que vem um fim, renuncio.




jacques roubaud
alguma coisa negro
trad. josé mário silva
tinta-da-china
2016







21 novembro 2018

joaquim manuel magalhães / domingo de cidade





As ruas com um sol humedecido,
vem a chuva não se sabe donde;
no estreito rumor da multidão
de janelas, a água segue
por rasgões ao acaso aceso.
Incrédulo o teu rosto perde-se
no fundo verde de um retrato.

A vibração íngreme da tarde
acende o equilíbrio do amor
que já não quer dizer-se; refugia-se
na iluminura do fugaz encanto.
Tiras do bolso a caixa do incenso
com um osso cravado na madeira
à entrada de um bosque de betão.
Aí nos beijaremos, porque não?

O céu de vez em quando subia
para logo baixar. E na sua sombra,
ao gozo do frio, as bicicletas
iam no empedrado irregular.
Com o prazer de ir a qualquer lado
e demorar a chegar.

E depois das pontes e represas
chegaremos ao quarto aonde em água
o dia vai findar.
Com essa luz já quase adormecida
das noites tumulares.

Lâmpadas fugazes, mesas com tapete,
jarra de peónias do quintal,
animais degolados e sem ventre,
o pavio da faca no castiçal.
Restos de sarcasmos a boiar
depois do combate final.

E quando me perguntaste a idade
eu disse-te que tinha oitenta e oito
pesadelos no sítio da voz
e tu não riste com os vinte e dois
anos e disseste que então tinhas
quarenta e quatro, tantos quantos eu.
E nessa tripla progressão de dois
o trânsito duma vida passava;
e a maior passagem do que em nós
um outro não poderia nunca ter.

Ecce homo; assim hei-de sentir
ao abrir-te na camisa todos os botões.




joaquim manuel magalhães
sloten
livro de artistas
europalia 91
1991






20 novembro 2018

manuel cintra / dobrou-se sobre ela puxou-lhe fogo




Dobrou-se sobre ela puxou-lhe fogo
Escancarou-lhe os olhos puxou-lhe fogo
Cerziu-se-lhe no peito puxou-lhe fogo
Tirou-lhe pó de cima puxou-lhe fogo
Sentiu-se tão pesado puxou-lhe fogo
Cobriu-a de ar; destapou-lhe a carne; mordeu.

Era fim de tarde era depressa era comprido
Verteu palavras tenras até já não ter voz
Chorou, soletrou-lhe o corpo membro a membro
E foi no soalho a solidão de a desventrar
Tremeu tremeu puxou-lhe fogo


E ela ardeu



manuel cintra
do lado de dentro
editorial presença
1981








19 novembro 2018

antónio franco alexandre / oásis




[…]

para que regresses para que a terra inche de maçãs
para que a égua e o lobo caminhem entre as dunas e o sopro da espuma
recebe-me ó

confuso amado que perdeste o amante
em alguma viela litoral («às portas, bem as vejo, do inferno»)
e dia a dia tomas o lugar deixado

recebe-me, boca luminosa por dentro cheia de folhas quando
adormeço a tua cabeça descansa nos meus dedos
não pelas palavras que abandono não pelo verso («a lira

nos ramos altos estremecidos pelo vento»)
para nada lembrarmos para nada esquecermos
para que a voz se deite no lençol e olhando

veja a pequena terra em que nasci
o sossego das grandes chuvas desabando no pátio e o respirar da casa
o rosto de minha mãe

recebe-nos, coração do outro lado da porta onde toda a noite escutas
os passos do colibri e da cobra inocente
ainda levando à boca com dextras mãos um pedaço de pão

não deixes que seja dura a nossa memória apaga-nos
sem fotografia dos vetustos livros
por mim quero esta manhã de fresco sol entre as árvores douradas de amarelo

[…]




antónio franco alexandre
oásis
assírio & alvim
1992








18 novembro 2018

alberto caeiro / quando tornar a vir a primavera





Quando tornar a vir a Primavera
Talvez já não me encontre no mundo.
Gostava agora de poder julgar que a Primavera é gente
Para poder supor que ela choraria,
Vendo que perdera o seu único amigo.
Mas a Primavera nem sequer é uma coisa:
É uma maneira de dizer.
Nem mesmo as flores tornam, ou as folhas verdes.
Há novas flores, novas folhas verdes.
Há outros dias suaves.
Nada torna, nada se repete, porque tudo é real.

7-11-1915




alberto caeiro
poemas inconjuntos
poemas de alberto caeiro, fernando pessoa
àtica
1946








17 novembro 2018

albano martins / desta varanda, o mar




Para ser mastro de navio
precisas, primeiro,
de ser árvore

*

Para ser mástil de navio
necessitas, primeiro,
ser árbol.




albano martins
desta varanda, o mar
tradução para castelhano de
alfredo pérez alencart
edições simplesmente
2014







16 novembro 2018

elio pecora / o limite




Ficar aqui, nas estações que mudam,
é a norma comum: o dom extremo e a saída.
A quem galgou o limiar não é dado voltar:
talvez tão só no sonho digam palavras soltas
demasiado parecidas com estas dos nossos percursos.
E seguimos absortos, às vezes surpresos,
cada espera é um jogo,
cada dúvida o encalhar de uma deriva,
e damos números aos dias,
pés aos desejos,
confins ao vaguear
– desprovidos de mapas, desconhecendo o porto.



elio pecora
poemas escolhidos
novos poemas (inéditos)
tradução de simoneta neto
quasi
2008










15 novembro 2018

manuel bandeira / mar bravo



Mar que ouvi sempre cantar murmúrios
Na doce queixa das elegias,
Como se fosses, nas tardes frias
De tons purpúreos,
A voz de minhas melancolias:

Com que delícia neste infortúnio,
Com que selvagem, profundo gozo,
Hoje te vejo bater raivoso,
Na maré-cheia de novilúnio,
Mar rumoroso!

Com que amargura mordes a areia,
Cuspindo a baba da acre salsugem,
No torvelinho de ondas que rugem
Na maré-cheia,
Mar de sargaços e de amarugem!

As minhas cóleras homicidas,
Meus velhos ódios de iconoclasta,
Quedam-se absortos diante da vasta,
Pérfida vaga que tudo arrasta,
Mar que intimidas!

Em tuas ondas precipitadas,
Onde flamejam lampejos ruivos,
Gemem sereias despedaçadas,
Em longos uivos
Multiplicados pelas quebradas.

Mar que arremetes, mas que não cansas,
Mar de blasfêmias e de vinganças,
Como te invejo! Dentro em meu peito
Eu trago um pântano insatisfeito
De corrompidas desesperanças!…

1913


manuel bandeira
antologia poética
editora nova fronteira
2001







14 novembro 2018

alberto pimenta / chegou o inverno




chegou o inverno

aves que fogem
de que fogem

nas colinas pedregosas

casas que ficam
até quando ficam

abarrotam os celeiros

nuvens que vão
donde vêm

os campos esperam

árvores que crescem
por que não chegam nunca

apressa-se

rio que corre
por que não pára

e isto

que vem nos meus olhos
por que não vem comigo

e aquilo
que vem comigo
por que não vem nos meus olhos




alberto pimenta
poesia do mundo/2
afrontamento
1998








13 novembro 2018

manuel gusmão / o chão da história move-se




3

     o chão da história move-se; repentinamente abre fendas, e então melhor se ouve o motor que trabalha, - é uma espécie de mar.
     as coisas resvalam, a fauna e a flora desse mar rolam pelas suas idades, estremecem, uivam, precipitam-se em frente.
     espera um pouco, - ouve, dentro dos pulmões do mar, alveoladas entre os limos e os peixes mais quietos, as ovas pantanosas destas branquíssimas borboletas que zumbem no teu amor a vertigem e a ameaça.
     até pode ser que a doença cresça e magoe.
     por um momento tu inclinas-te e lavas, nessas águas que ardem, «o focinho lavado em sangue».
     Mas aprendes ou não aprendes que em algum momento no futuro, no futuro!, te agitas na alegria?

(dedicatória)



manuel gusmão
dois sóis, a rosa
a mesa (d)o mar (1979)
caminho
1990