17 setembro 2018

joaquim manuel magalhães / ancoradouro




Às vezes acordamos felizes. A casa
está sossegada, o quarto
dá para um jardim com as cantarias
caídas e árvores altas e muros de musgo.
O burel das cortinas antepara o céu
opaco sobre prédios urbanos.
O universo, submisso, parece disposto
para proteger; acolhe na manhã
as fachadas com os andares de três janelas,
de duas, de uma apenas; termina
em triângulos difusos na neblina.
O aquecimento irradia dos tubos, a chuva
acaricia os barcos parados, um homem com vara
debruça-se para retirar detritos.
Bandos de pássaros, brandos ventos, tudo pousado.
Abro a blindagem do quarto e ouço
os tijolos, a tinta, as escadas, o corrimão
a sangrar.



joaquim manuel magalhães
sloten
livro de artistas
europalia 91
1991






16 setembro 2018

bernardo soares / entre a vida teórica e a vida prática há um abismo,




Entre a vida teórica e a vida prática há um abismo, sobre o qual alguns, mais individuais, não sociais são ponte.

Manda quem quer, servo de pensamentos dispersos, anónimos, que por tais não são pensamentos.

Deixemos a acção àqueles que pensam pela cabeça alheia, pois que existem só para agir. Recolhamo-nos ao jogo alado, fútil até, das teorias, desiludidos de qualquer possibilidade de podermos agir sobre os outros, de sermos mais na vida que forasteiros.

Desdenhadores de todos os ideais, sobretudo dos que buscam a felicidade na terra para os outros — pois a felicidade não pode ser ideal senão para nós — vivamos separados, como os outros iniciados, os da alma (para além da inteligência), que nada, também, querem ou esperam da vida. Assim o visionista seguirá a par do adepto, entre as minas do templo de Salomão, e por aquele plaino próximo onde, um tempo, o Mestre esteve sepulto.

s.d.


fernando pessoa
livro do desassossego por bernardo soares. vol.I
presença
1990







15 setembro 2018

inês lourenço / miramar




Acender um cigarro na praia, proteger
o difícil estertor da pequena chama. Anular
o vento na manga do teu casaco. Reter
preso entre os dedos o princípio breve
dessa efémera combustão.



inês lourenço
o segundo olhar
companhia das ilhas
2015












14 setembro 2018

judite canha fernandes / férias é







perceber que quando o sol se tapa o mar escurece

ter tempo

ver as sombras no tecto, a efervescência das palavras,
as árvores a tentar respirar contra o vento, coitadas
fazer festas aos cucos, namoriscar os pássaros,
ter ideias boas.
fazer testes ao vácuo,
observar a consistência da alegria,
escrever palavras ao acaso.
mergulhar.
processar as dores, a estupefacção com a crueldade e a ganância,
perceber apenas o medo, apenas.

observar calada a tua alegria de flor pelas vitórias inacabadas.

ver filmes a meio do dia com uma manta nas pernas
comer porcarias e chocolates
não sentir culpa nenhuma.

andar.

deixar o mundo andar sem olhar para ele
(ele anda sozinho)

olhar para o que não se vê
não ter raiva do inverno nem da chuva,
saber que a utopia anda às elipses como boa tartaruga.
dar beijos à luta para não esquecer o sabor que ela tem,
dançar.
não usar vendas no cérebro ou no coração,
não dizer “sim, mas…”.

perder-se no meio de um livro para encontrar outro
deixar para amanhã o que se pode fazer hoje.

escrever com as mãos geladas nas esplanadas
não ter medo que as esplanadas voem,
ou de lavar o caderno nas lágrimas.

pensar, escrever cartas, não pensar.

perceber que o vento assobia no pescoço antes de entrar nas
nas orelhas,
que se pode chorar de prazer quando se ri,
qual o tamanho do ecrã na casa.

dizer adeus e ficar dentro das pessoas.
falar com quem se gosta sem ver.
dançar com a música em mute.
deitar-se devagarinho.

férias, meu amor, é bom.




judite canha fernandes
o mais dofícil do capitalismo
é encontrar o sítio onde pôr as bombas
editora urutau
2018






13 setembro 2018

mário-henrique leiria / claridade dada pelo tempo




9

quando ferem alguém
é a mim     só a mim que ferem
é na minha carne
que todos os golpes se encontram
não quero
não posso com este constante sangrar
separem-me dos outros
separem a minha carne
da carne de todos
deixem-me o sangue
a correr
ser só o meu sangue
e nada mais


mário-henrique leiria
obras completas
poesia
e-primatur
2018








12 setembro 2018

maria gabriela llansol / o raio sobre o lápis



V

a conclusão de que não há abismo, e que a infância não pára de desenvolver-se e
e crescer,
é um novo princípio de realidade, de morte, de velhice:
eu não deixo de viver no mundo interior e exterior das metamorfoses flutuantes;
é já dia, mas a noite que conduz a esperança no pensamento, e sobre si própria,
não acabou.
                Não acabou definitivamente;
                onde estará, protegendo-se da luz, o sapo que brilha?
                Eu tenho a intuição, Aramis, de que os monstros
são as tentativas mais puras do Universo.
“Olha-os, e não os mates.”



maria gabriela llansol
o raio sobre o lápis
livro de artistas
europalia 91
1991







11 setembro 2018

agustina bessa-luís / aforismos




*
Na consciência dessa presença alheia, única e permanente mesmo que seja pelo espaço de um momento breve, está o amor.

*
Ninguém se orgulhe de despertar amor. Ele é um efeito de sombras, de entendimentos com o passado de que nem sequer somos testemunhas.

*
O amor não é uma temperatura, é todo o fundamento duma cultura. É uma forma de impertinência sagrada, um repudiar de todas as crenças que envolvem a destruição desse segredo imenso que é o ser humano.





agustina bessa-luís
aforismos
guimarães editores
1988






10 setembro 2018

daniel faria / estranho é o sono que não te devolve





Estranho é o sono que não te devolve.
Como é estrangeiro o sossego
De quem não espera recado.
Essa sombra como é a alma
De quem já só por dentro se ilumina
E surpreende
E por fora é
Apenas peso de ser tarde. Como é
Amargo não poder guardar-te
Em chão mais próximo do coração.



daniel faria
explicação das árvores e de outros animais
fundação manuel leão
1998








09 setembro 2018

fernando echevarría / domingo




Ficou-lhe a paz. Do tempo
em que, movido o olhar à santidade,
parávamos no campo vendo
correr a água e adubar-se o caule
que abrirá sua roda de sustento
à fadiga do homem, que uma coroa de aves
reconhece no ar, de estar aberto
à cálida saúde da passagem.
Depois da missa, pelo domingo adentro,
crescia essa saudade
fresquíssima de estarmos tão atentos
à tarefa que, sem nós, a tarde
cumpre na terra. E mesmo ao pensamento
que amadurece nas árvores,
tocadas de longe, no estremecimento
que se enreda por nós e em nós se abre.
Ficou-lhe a paz. O doce movimento
que nos inclina para a primeira idade.




fernando echevarría 
a rosa do mundo 2001 poemas para o futuro
assírio & alvim
2001







08 setembro 2018

antónio osório / amo os loucos




Amo os loucos,
crianças tagarelando
que descobrem, instante
a instante, o mundo
e tudo enovelam
à sua translúcida maneira.

Não possuem maldade,
mas ignorado amor
e incapaz poesia.



antónio osório
o lugar do amor
a boca junta
gota de água
1981









07 setembro 2018

ana hatherly / o regresso




I

O termo que eu temo
Em mim estremece.
Não é o que passa
Nem aquilo que esquece
Que o meu ser receia
É antes
Essa dor contínua
Que de si mesma se torna cadeia.
Se alguma dor existe
Que o termo não atinja,
Não existe porém termo algum
Que a própria dor não finja:
Sentes? Mentes.
Sabes? Não vês.
Quando descobres, passaste
Quando interpretas
Esqueces.


II

A senda que eu sigo
É a meta que atinjo.
Partindo, regresso
E regresso avançando.
Temendo é que eu venço.

Chorando, me alegro
E sofrendo, embeleço
Entendendo a ordem
Oculta e evidente:
Ou amo e morro
Ou vivo e não amo.


III

As lágrimas que dos meus olhos caem
São o teu pranto em mim realizado.
As tuas penas em mim se vivificam
E o teu sofrer em mim encontra forma.
O teu silêncio é a minha voz mais funda,
O teu querer, a minha esperança intensa,
De sorte que não existe morte
Tua que a mim me não pertença.
E a solidão que de alma a alma aumenta
O anseio do encontro antigo,
É a inarmonia que vive
Da diferença que a desunião gera.
Reúne-te comigo no meu chamamento,
Reúne-te comigo ao que nos demora,
E levemos connosco o fim desta espera!



ana hatherly
poesia
1958-1978
moraes editores
1980









06 setembro 2018

jorge luís borges / poema




ANVERSO

Dormias. Eu acordo-te.
A manhã imensa oferece-nos a ilusão de um princípio.
Esqueceras-te de Virgílio. Aqui estão os hexâmetros.
Trago-te muitas coisas.
As quatro raízes dos Gregos: a terra, a água, o fogo, o ar.
Um só nome de mulher.
A amizade da lua.
As claras cores do atlas.
O esquecimento, que purifica.
A memória que escolhe e redescobre.
O hábito, que nos ajuda a sentir que somos imortais.
A esfera e as agulhas que dividem o intangível tempo.
A fragrância do sândalo.
As dúvidas a que chamamos, não sem alguma vaidade, metafísica.
A curva do bastão que a tua mão aguarda.
 O sabor das uvas e do mel.


REVERSO

Recordar quem dorme
é um acto vulgar e quotidiano
que poderia fazer-nos tremer.
Recordar quem dorme
é impor ao outro a interminável
prisão do universo
do seu tempo sem ocaso nem aurora.
É revelar-lhe que é alguém ou algo
que está sujeito a um nome que o expõe
e a um acervo de ontens.
É inquietar a sua eternidade.
É carrega-lo de séculos e estrelas.
É devolver ao tempo um outro Lázaro
carregado de memória.
É desonrar a água do Letes.




jorge luís borges
obras completas 1975-1985 vol. III
a cifra (1981)
trad. fernando pinto do amaral
editorial teorema
1998










05 setembro 2018

anna akhmatova / a criação




Acontece deste modo: uma certa languidez;
No ouvido não se calam as pancadas dos relógios;
Ao longe diminui o estrondo do trovão.
E vislumbram-se queixas e gemidos
De aprisionadas vozes que não se reconhecem.
Um certo círculo secreto estreita-se,
Mas nesse abismo de badaladas e murmúrios
Levanta-se um som que tudo venceu.
É tal o silêncio irreparável em seu redor
Que se escuta como no bosque cresce a erva,
Como anda pela terra o mal com um alforge…
Mas as palavras começaram já a ouvir-se
E das rimas leves os tinidos de sinalização,  
É quando eu começo a compreender,
E de modo simples as linhas ditadas
Deitam-se no caderno branco de neve.

5 de Novembro de 1936



anna akhmatova
poemas
trad. joaquim manuel magalhães e
vadim dmitriev
relógio d´água
2003