23 agosto 2018

carlos poças falcão / há sempre a laranjeira no quintal




Há sempre a laranjeira no quintal.
Ali a verde salsa. Além a hortelã.
Ao fundo o limoeiro. Do caleiro
o marulhar da água. Sobre a casa
a sonolência. O gato a ronronar.
Abra-se a janela para me maravilhar.
Ainda sou pequeno. Estou ainda a acumular
tardes como essa, liquidas e verdes.
Passem muitos anos para aqui as inventar.



carlos poças falcão
o número perfeito
arte nenhuma (poesia 1987-2012)
opera omnia
2012







22 agosto 2018

mário cesariny / muito acima das nuvens seja o centro





Muito acima das nuvens seja o centro
                das nossas misteriosas poéticas
                o irresistível anseio de viajar
um só movimento trabalhado à mão
                     nos ermos mais altos
                          mais desaparecidos



mário cesariny
a única real tradição viva
antologia da poesia surrealista portuguesa
perfecto e. cuadrado
assírio & alvim
1998







21 agosto 2018

sophia de mello breyner andresen / che guevara





Contra ti se ergueu a prudência dos inteligentes e o arrojo dos patetas
A indecisão dos complicados e o primarismo
Daqueles que confundem revolução com desforra

De poster em poster a tua imagem paira na sociedade de consumo
Como o Cristo em sangue paira no alheamento ordenado das igrejas

Porém
Em frente do teu rosto
Medita o adolescente à noite no seu quarto
Quando procura emergir de um mundo que apodrece


Lisboa, 1972



sophia de mello breyner andresen
o nome das coisas  I (1972-73)
obra poética
assírio & alvim
2015









20 agosto 2018

joão rebocho / chegamos iluminando






chegamos iluminando:
formidáveis deuses novos
adolescentes com revólveres
rapazolas a fumar
duas da manhã e a louça intacta
no balcão dos bares
caímos de pé
absolutos absolut
advocacy e excesso
puros olhos de joalharia
transparentes
imberbes esterilizados
água tónica gin e
arquitectura
Homero em língua francesa
os porteiros apagavam-se
e as discotecas?
o maior rio da Europa


joão rebocho
mentira vontade
edição do autor
2018





19 agosto 2018

fernando pessoa / como é por dentro outra pessoa




Como é por dentro outra pessoa
Quem é que o saberá sonhar?
A alma de outrem é outro universo
Com que não há comunicação possível,
Com que não há verdadeiro entendimento.

Nada sabemos da alma
Senão da nossa;
As dos outros são olhares,
São gestos, são palavras,
Com a suposição de qualquer semelhança
No fundo.

1934



fernando pessoa
poesias inéditas (1930-1935)
ática
1955








18 agosto 2018

carlos de oliveira / vento




As palavras
cintilam
na floresta do sono
e o seu rumor
de corças perseguidas
ágil e esquivo
como o vento
fala de amor
e solidão:
quem vos ferir
não fere em vão,
palavras.


carlos de oliveira
cantata
a leve têmpera do vento
antologia poética
quasi
2001








17 agosto 2018

eugénio de andrade / sul




Podia ser do feno, ou dos limoeiros, mas não: era da juventude, aquele aroma. Atravessa o pátio, entra pela varanda. Tenho que defender-me desta lâmina aguda. Sobre a garganta.



eugénio de andrade
memória doutro rio
poesia
fundação eugénio de andrade
2000












16 agosto 2018

pier paolo pasolini / as cinzas de gramsci




III

Um trapo vermelho, como o que
cinge o pescoço dos partigiani
e, junto da urna, na terra cor de cera,

dois gerânios de um vermelho diferente.
Aí estás, banido, na tua graça austera,
não caótica, registado entre os mortos

estrangeiros: As cinzas de Gramsci… Entre esperança
e velha desconfiança, aproximo-me, chegado
por acaso a esta descarnada estufa, diante

do teu túmulo, e do teu espírito que ficou
neste mundo entre os homens livres. (Ou talvez seja
uma coisa diferente, mais extasiada

e mais humilde, ébria e adolescente
simbiose de sexo e morte …)
E nesta terra onde nunca a tua paixão

teve repouso, sinto o mal que fizeste
– aqui, no sossego dos túmulos – e ao mesmo tempo
o bem – no nosso inquieto

destino – ao escreveres as derradeiras
páginas nos dias do teu assassinato.
Aqui estão, a confirmar a semente

ainda não dispersa do poder antigo,
estes mortos ligados a uma posse
que enterra nos séculos a sua iniquidade

e a sua grandeza: e ao mesmo tempo, obcecada,
a vibração de bigornas, em surdina,
sufocada e pungente – vinda do bairro

humilde – a confirmar o seu fim.
E aqui estou eu… pobre, vestido
com roupas que os pobres cobiçam em montras

de esplendor grosseiro, desbotadas
pelo lixo das ruas mais perdidas,
dos bancos dos eléctricos, que atordoaram

todo este meu dia, a mim, que cada vez mais
raros tenho ócios destes, no suplício
de me manter vivo; e se por acaso

me acontece amar o mundo, é só com violento
e ingénuo amor sensual,
tal como, confuso adolescente, noutro tempo

o odiei, quando nele me feria o mal
burguês de mim burguês: e se agora o mundo
está – contigo – dividido, não será objecto

de rancor e de desprezo quase
místico a parte que nele tem o poder?
Mas sem o teu rigor, subsisto

porque não escolho. Vivo no não querer
do pós-guerra passado: amando
o mundo que odeio – desdenhoso

e perdido na sua miséria – para obscuro escândalo
da minha consciência…




pier paolo pasolini
le ceneri di gramsci
poemas
trad. maria jorge vilar de figueiredo
assírio & alvim
2005








15 agosto 2018

gil t. sousa / desertos





1-

à água
dávamos as mãos secas

os olhos
se a beleza nos tentasse

e esperávamos




gil t. sousa
desertos










14 agosto 2018

rainer maria rilke / os sonetos a orfeu



III

Espelhos: o que sois na vossa essência,
nunca ninguém saberá explica-lo.
Como os furos do crivo, sois a ausência,
do tempo a preencher cada intervalo.

Vós, que esbanjais a sala inda deserta,
vastos como florestas, quando a noite regressa…
e o lustre, como hastes múltiplas de algum gamo alerta,
vossa água inviolável atravessa.

Tanta vez estais cheios de pinturas.
Umas em vós parecem entranhadas,
as outras afastou-as a vossa timidez.

Mas a mais bela de todas as figuras
ficará lá no fundo, até nas faces recatadas
romper claro o narciso em sua nitidez.


rainer maria rilke
elegias de duíno e os sonetos a orfeu
trad. de vasco graça moura
quetzal
2017






13 agosto 2018

konstandinos kavafis / vozes




Vozes ideais e amadas
daqueles que morreram, e daqueles que são
para nós perdidos como os mortos.

Às vezes nos nossos sonhos falam;
às vezes no pensamento as ouve a mente.

E com o seu som por um momento regressam
sons da primeira poesia da nossa vida –
qual música, à noite, longínqua, que se apaga.



konstandinos kavafis
os poemas
adenda, 1.ª  (1897-1904)
trad. joaquim manuel magalhães e
nikos pratsinis
relógio d´água
2005






12 agosto 2018

luiza neto jorge / recanto 7




Escolho sempre um nome que me soe amante
retrato de homem nascido
«em plena guerra», de esparsas relíquias
Incêndio e incendiador     dor e adaga dolorosa.

Ora brilho com ele em marés vivas
como a água na areia brilha assiduamente
ora nos bebem os inimigos o sangue
os pensamentos
o desvio menos exposto do desejo.

Mas ele brilha     João     em todo o corpo
Fuma, o gladiador.
Luta     amordaça     desfaz     refazamor.


Apocalipse segundo João.



luiza  neto jorge
dezanove recantos
1970







11 agosto 2018

ana hatherly / 463 tisanas


  
41

Sento-me à porta de casa e penso. o céu onde começa? é imediatamente acima do chão? do outro lado da minha casa passa o rio. um pescador espera paciente enquanto outro se prepara para regressar. deito-me no chão e mergulho a cara na terra.


ana hatherly
463 tisanas
quimera
2006