13 janeiro 2018

antónio quadros ferro / a propósito



Não sabes ainda, poeta
que o poema empurra com a espada
que o poema empurra com a barriga?

É aragem a escuridão que sopras
e sonho o que na vertigem bocejas cansado
a poesia que empurras e empurras.

Quem nos dera, não era? Um poema
do repouso que varresse sem sangue
todas as misérias do horizonte
como folhas verdes as palavras.

Mas num qualquer outro instante este cortejo
também será esquecido, 65 vezes esquecido
segundo um determinado consenso.

Pois (porém) vamos juntos,
sim, amorosos do martírio dos outros,
são assim os poetas, talvez, empurrados.
Mas para onde e em nome de quem?



antónio quadros ferro
voo rasante
antologia de poesia contemporânea
mariposa azual
2015





12 janeiro 2018

wislawa szymborska / alguns gostam de poesia



Alguns –
quer dizer que nem todos.
Nem sequer a maior parte mas sim uma minoria.
Não contando as escola onde se tem que,
e quanto a poetas,
dessas pessoas, em mil haverá duas.

Gostam –
mas gosta-se também de sopa de esparguete,
dos galanteios e da cor azul,
do velho cachecol,
brindar à nossa gente,
fazer festas ao cão.

De poesia –
mas que é isso a poesia?
Muitas e vacilantes respostas
Já foram dadas à questão.
Por mim não sei e insisto que não sei
e esta insistência é corrimão que me salva.


wislawa szymborska
paisagem com grão de areia
trad. júlio sousa gomes
relógio d’água
1998







11 janeiro 2018

joaquim manuel magalhães / sunlight in a cafetaria



Abria o guarda-fatos e tirava
o casaco mais velho e as piores
calças de veludo cor de sombra.
Ia ter contigo. Só o perfume

fazia pressentir o coração,
essa frágil ideia que batia
quando me sentava no café
muito antes da hora combinada.

As mãos quietas, o rosto debruçado
para o vidro sujo de tabacos
donde ao longe havias de chegar.

O chão coberto duma luz magoada,
de papéis amassados, cinzas
que teus pés vinham a calcar.



joaquim manuel magalhães
uma exposição
consequência do lugar
relógio d´água
2001





10 janeiro 2018

roland barthes / a conversa



1.
A linguagem é uma pele: esfrego a minha linguagem contra o outro. É como se tivesse palavras de dedos ou dedos na extremidade das minhas palavras. A minha linguagem treme de desejo. A emoção resulta de um duplo contacto: por um lado, toda uma actividade de discurso vem acentuar discretamente, indirectamente, um significado único, que é «eu desejo-te», e liberta-o, alimenta-o, ramifica-o, fá-lo explodir (a linguagem tem prazer em tocar-se a si própria); por outro lado, envolvo o outro nas minhas palavras, acaricio-o, toco-lhe, mantenho esse contacto, esgoto-me ao fazer durar o comentário ao qual submeto a relação.

(Falar apaixonadamente é gastar sem termo, sem crise; é manter uma relação sem orgasmo. Existe talvez uma forma literária para este coitus reservatus: é a afectação.)



roland barthes
fragmentos de um discurso amoroso
trad. isabel pascoal
edições 70
2017








09 janeiro 2018

ana marques gastão / não há lugar para mim



Não há lugar para mim
neste país de Inverno.
As mães cegaram em seus ventres
e cada homem abandona
a juventude na cidade ácida.

Tínhamos o movimento da Terra
e eu compreendia as coisas
como se absorve a luz com os olhos.
Existiam as tuas mãos.


de Terra sem Mãe





ana marques gastão
anos  90 e agora
uma antologia da nova poesia portuguesa
quasi
2001







08 janeiro 2018

heiner müller / o anjo do desespero




Eu sou o anjo do desespero. Com as minhas mãos distribuo o êxtase, o adormecimento, o esquecimento gozo e dor dos corpos. A minha fala é o silêncio, o meu canto o grito. Na sombra das minhas asas mora o terror. A minha esperança é o último sopro. A minha esperança é a primeira batalha. Eu sou a faca com que o morto abre o caixão. Eu sou aquele que há-de ser. O meu voo é a revolta, o meu céu o abismo de amanhã.


heiner müller
o anjo do desespero
trad. joão barrento
relógio d´ água
1997











07 janeiro 2018

álvaro de campos / e deito um cigarro meio fumado fora




E deito um cigarro meio fumado fora
Para irremediavelmente acender um novo cigarro

Impaciente até à angústia,
Como quem espera numa estação dos arredores
O comboio que há-de trazer ah tão talvez, quem talvez venha

s.d.



álvaro de campos
livro de versos
fernando pessoa
estampa
1993






06 janeiro 2018

ana paula inácio / como se o vento trouxesse



como se o vento trouxesse
recados
que pudesse abandonar
ao serviço do mensageiro

como se o vento te pudesse levar
e as palavras transformar
no milagre da cerejeira

não descuides o vento
que quem uiva
é lobo faminto

rodeia-te antes do essencial
faz-te cozinheira, semeia o teu quintal

o que por natureza rola
há-de rolar
e tu sozinha
o que podes contra o vento?


de Vago Pressentimento Azul Por Cima




ana paula inácio
anos  90 e agora
uma antologia da nova poesia portuguesa
quasi
2001






05 janeiro 2018

david mourão-ferreira / porta do inferno



Numa cidade azul, aberta cruamente
aos desenhos do Sol, aos desvios da Lua
 – aí me espera a forma ausente
que nos meus sonhos se insinua.

Amei, mais do que tudo, a morte que sonhara
ir encontrar em ti, fatal e apetecida.
Num círculo de luz impetuosa e clara
teremos o estertor que nos faltou em vida.

Numa cidade azul, antiga e duvidosa,
onde morreu Narciso à míngua de frescura,
hão-de nos dar enfim uma sangrenta rosa
– aquela que mereceu a nossa vida impura!


david mourão-ferreira
lira de bolso
publicações dom quixote
1971






04 janeiro 2018

maria do rosário pedreira / antes de um lugar há o seu nome



Antes de um lugar há o seu nome. E ainda
a viagem até ele, que é um outro lugar
mais descontínuo e inominável.

Lembro-me

do quadriculado verde das colinas
do sol entretido pelos telhados ao longe,
dos rebanhos empurrados nos carreiros,
de um cão pequeno que se atreveu à estrada.

Íamos ou vínhamos?



maria do rosário pedreira
a casa e o cheiro os livros
gótica
2002





03 janeiro 2018

daniel faria / examinemos também a escrita




Examinemos também a escrita
O solo negro deixado pelo fogo
O mecanismo semelhante às queimadas
Deixando a terá arável na sua devastação.
Tudo isto interessa para retomarmos a pedra onde está escrita
A palavra nova
A pedra onde corre o sangue.
Enquanto perguntas pelas dez palavras.
Põe a boca na palavra líquida
Examina o coração da carne em vez da escrita antiga
O verbo onde jorra a palavra incessante

Há dentro dela uma pedra nupcial




daniel faria
poesia
uma espécie de anjo ferido na raiz
quasi
2003




02 janeiro 2018

harold pinter / requiem por 1945




Era como eles sempre disseram,
Os cegos, os mudos, os abandonados como mortos,
Os que sempre acreditaram na noite,
Os avós que procuravam a luz
Mas só davam com os postigos dos quartos
Esmagados por um mar que lhes rosnava
E submergia e lhes roubava o ar
Para os castigar pelo seu desejo.

1999



harold pinter
várias vozes
tradução miguel castro caldas
quasi
2006




01 janeiro 2018

adonis / vi como parte a folhagem e fica a árvore




Vi como parte a folhagem e fica a árvore
como parte o fruto e ficam as raízes
como se multiplicam as raízes nos campos do UNO do único
as barcas estão prontas para se prosternarem ou para invadir.
todos os seres são anjos e cada um se pergunta:
mas onde está o diabo?


adonis
arco-íris do instante
antologia poética
tradução de nuno júdice
dom quixote
2016