20 dezembro 2017

peter porter / non piangere, liú




Um postal chega informando-te
que deves apresentar-te
para examinarem os teus olhos.

Mas os teus olhos derreteram no fogo,
e as lágrimas únicas, que depressa secaram,
caíram na capela.

Também outras coisas chegam –
facturas, renovações de assinatura,
cintilantes cartões de plástico prometendo crédito –
não muito para uma vida gasta
ao serviço da realidade.

Não tens de lhes responder.
Nem ao meu pedido de uma gota
de auxílio no meu próprio inferno.

Não chores, digo-me,
é tudo uma comédia
e as comédias têm um final feliz.

O fogo surgirá do sol
e eu olharei para o coração dele.



peter porter
trad. josé alberto oliveira
rosa do mundo
2001 poemas para o futuro
assírio & alvim
2001







19 dezembro 2017

nuno júdice / ofício nocturno



Nos campos onde a neve se estende,
o vento arrasta uma brancura de passos.

Troncos que foram verdes são
braços negros em gestos de pedinte.

Vagueiam almas num desejo de cume,
perdidas, de pensamento preso com a névoa.

Só não sabem a que noite pertencem
os pássaros brancos em busca de rio.

Mas a corrente dorme sob o gelo,
sonhando uma primavera de estuários.

É quando o vidro da janela não devolve
mais do que o próprio rosto de quem espreita;

reflexo que nem a treva aceita,
ocupada em trabalhos de linha e tear.



nuno júdice
a fonte da vida
quetzal
1997





18 dezembro 2017

saint-john perse / canção




     Com o meu cavalo parado sob a árvore coberta de rolas, lanço um assobio tão puro, que não há uma única promessa feita às margens destes rios que eles não cumpram. (Folhas vivas na manhã são à imagem da glória)…

*

     E não é que um homem não esteja triste, mas levantando-se antes do dia e mantendo-se com prudência no convívio de uma velha árvore, apoiado pelo queixo à ultima estrela, vê em jejum no fundo do céu grandes coisas puras que dispõem ao prazer…

*

     Com o meu cavalo parado sob a árvore que arrulha, lanço um assobio mais puro… E paz àqueles que, se vão morrer, não chegaram a ver este dia. Mas do meu irmão, o poeta, tivemos notícia. Voltou a escrever uma coisa muito doce. E alguns dela tiveram conhecimento.



saint-john perse
habitarei o meu nome
antologia
tradução de joão moita
assírio & alvim
2016






17 dezembro 2017

bernardo soares / máximas




Ter opiniões definidas e certas, instintos, paixões e carácter fixo e conhecido — tudo isto monta ao horror de tornar a nossa alma um facto, de a materializar e tornar exterior. Viver é um doce e fluido estado de desconhecimento das coisas e de si próprio (e o único modo de vida que a um sábio convém e aquece).

Saber interpor-se constantemente entre si próprio e as coisas é o mais alto grau de sabedoria e prudência.

A nossa personalidade deve ser indevassável, mesmo por nós próprios: daí o nosso dever de sonharmos sempre, e incluirmo-nos nos nossos sonhos, para que nos não seja possível ter opiniões a nosso respeito.

E especialmente devemos evitar a invasão da nossa personalidade pelos outros. Todo o interesse alheio por nós é uma indelicadeza ímpar. O que desloca a vulgar saudação — como está? — de ser uma indesculpável grosseria e o ser ela em geral absolutamente vã e insincera.
Amar é cansar-se de estar só: é uma cobardia portanto, e uma traição a nós próprios (importa soberanamente que não amemos).

Dar bons conselhos é insultar a faculdade de errar que Deus deu aos outros. E, de mais a mais, os actos alheios devem ter a vantagem de não serem também nossos. Apenas é compreensível que se peça conselhos aos outros — para saber bem, ao agir ao contrário, quem somos bem nós, bem em desacordo com a Outragem.

s.d.

fernando pessoa
livro do desassossego por bernardo soares. vol.II
ática
1982





16 dezembro 2017

herberto helder / elegia múltipla



III
Havia um homem que corria pelo orvalho dentro.
O orvalho da muita manhã.
Corria de noite, como no meio da alegria,
pelo orvalho parado da noite.
Luzia no orvalho. Levava uma flecha
pelo orvalho dentro, como se estivesse a ser caçado
loucamente
por um caçador de que nada sabia.
E era pelo orvalho dentro.
Brilhava.

Não havia animal que no seu pêlo brilhasse
assim na morte,
batendo nas ervas extasiadas por uma morte
tão bela.
Porque as ervas têm pálpebras abertas
sobre estas imagens tremendamente puras.
Pelo orvalho dentro.
De dia. De noite.
A sua cara batia nas candeias.
Batia nas coisas gerais da manhã.
Havia um homem que ia admiravelmente perseguido.
Tomava alegria no pensamento
do orvalho. Corria.

Ouvi dizer que os mortos respiram com luzes transformadas.
Que têm os olhos cegos como sangue.
Este corria assombrado.
Os mortos devem ser puros.
Ouvi dizer que respiram.
Correm pelo orvalho dentro, e depois
estendem-se. Ajudam os vivos.
São doces equivalências, luzes, ideias puras.
Vejo que a morte é como romper uma palavra e passar

- a morte é passar, como rompendo uma palavra,
através da porta,
para uma nova palavra. E vejo
o mesmo ritmo geral. Como morte e ressurreição
através das portas de outros corpos.
Como uma qualidade ardente de uma coisa para
outra coisa, como os dedos passam fogo
à criação inteira, e o pensamento
pára e escurece

- como no meio do orvalho o amor é total.
Havia um homem que ficou deitado
com uma flecha na fantasia.
A sua água era antiga. Estava
tão morto que vivia unicamente.
Dentro dele batiam as portas, e ele corria
pelas portas dentro, de dia, de noite.
Passava para todos os corpos.
Como em alegria, batia nos olhos das ervas
Que fixam estas coisa puras.
Renascia.



herberto helder
poesia toda
a colher na boca
assírio & alvim
1996





15 dezembro 2017

amadeu baptista / praia da granja





Pelo que quer que seja a exaltação habito aqui,
nesta casa de sete janelas,
com uma pequena porta e uma varanda verde.

A praia incendeia-me os olhos,
e chamo, chamo à mulher espiral do mundo.

Toco com um dedo o muro branco e acrescento
ao entendimento ervas amargas, animais solares
e obscuros, um antigo instrumento de trabalho,
o búzio, o barco, o arado,
um ramo de salgueiro, esta pedra incisiva,
uma maçã vermelha.

Guardo no coração uma voz que vai de lugar em lugar
a interrogar as sombras
e no poema murmura o poder das cintilações
sobre a cânfora,
a hortelã,
os figos,
o encantamento,
a cabeça da víbora.

A extensão desta casa é a dimensão desta praia
divina sobre as águas,
tal como é divina a mulher que me acompanha
e a quem chamo espiral do mundo
por ter criado um sortilégio assim,
uma casa grega,
branca,
nítida,
com sete janelas,
uma pequena porta e uma varanda verde
sobre o mar.

antologia A Sophia, Lisboa, 2007



amadeu baptista
caudal de relâmpagos
antologia pessoal 1982-2017
edições esgotadas
2017





14 dezembro 2017

tatiana bessa / enchemos de whisky as gloriosas manhãs do passado




enchemos de whisky as gloriosas manhãs do passado,
em distraídos suicídios acocoramo-nos
sob os pórticos
cortamos os cabelos outrora banhados ao vento
mortos aos 20 anos gargalhamos sinfonias de mozart
perante o medo insistente de como ele morrer sozinhos
passeamos os nossos cães com uma trela
de melancolia-de-todo-o-mundo
para que nos acompanhem à campa desde sempre desenhada
à nossa espera
como beatnicks ressuscitados encostamo-nos
às estantes dos supermercados
onde uma gaja sem nome regista o álcool
que beijaremos em casa, murchos
junto ao corpo demasiado conhecido da solidão.
no constante confuso silêncio onde por vezes
uma-tosse-feminina-se-ouve-ao-longe-no-final-de-uma-sinfonia.


tatiana bessa
voo rasante
antologia de poesia contemporânea
mariposa azual
2015





13 dezembro 2017

ruy cinatti / símbolos



A estrela e a cruz, ó Che Guevara,
meu raro amante, que me adormeceste
no teu braço esquerdo – juntos os pés.
Tenho dormido contigo em muitos homens
e fui eu que os adormeci e lhes dei sossego.
O teu retrato vive no meu quarto
e multiplica-se nos altares do mundo
com S. Francisco, esse lindo parvo…
com Santa Clara lá num claustro em Assis, que me diz tudo,
como em Cuba me disseste e na Bolívia-Inca
e em Portugal agora… Paz, meu Deus!

6/3/77



ruy cinatti
56 poemas
de antiguidades burlesco-sentimentais
relógio d´agua
1981





12 dezembro 2017

antónio ramos rosa / no silêncio da terra




No silêncio da terra. Onde ser é estar.
A sombra se inclina.
Habito dentro da grande pedra de água e sol.
Respiro sem o saber, respiro a terra.
Um intervalo de suavidade ardente e longa.
Sem adormecer no sono verde.
Afundo-me, sereno,
flor ou folha sobre folha abrindo-se,
respirando-me, flectindo-me
no interior aberto.
Não sei se principio.
Um rosto se desfaz, um sabor ao fundo
da água ou da terra,
o fogo único consumindo em ar.

Eis o lugar em que o centro se abre
ou a lisa permanência clara,
abandono igual ao puro ombro
em que nada se diz
e no silêncio se une a boca ao espaço.

Pedra harmoniosa
do abrigo simples,
lúcido, unido, silencioso umbigo
do ar.

o teu corpo
renasce
à flor da terra.
Tudo principia.



antónio ramos rosa
vagabundagem na poesia de antónio ramos rosa
seguido de uma antologia
casimiro de brito
quasi
2001





11 dezembro 2017

rainer maria rilke / elegias de duíno



a segunda elegia

Todo o anjo é terrível. E todavia, ai de mim,
a vós cantei, ó aves quase mortais da alma,
sabendo como sois. Onde param os dias de Tobias,
quando lá estava um dos mais radiosos, à porta simples da casa,
meio disfarçado para a virgem e já não mais aterrador;
(jovem para o jovem, ao mirar curioso para fora).
Desse o arcanjo agora, o perigoso, de detrás das estrelas,
um só passo a descer delas para cá: de tão forte sobressalto
se nos destruiria o próprio coração. Quem sois vós?

(…)

(excerto)


rainer maria rilke
elegias de duíno e os sonetos a orfeu
trad. de vasco graça moura
quetzal
2017




10 dezembro 2017

natércia freire / não




Não formar nenhuma ideia
Do que somos ou seremos
Mas entre as vozes que fogem
Precisar o que dizemos.
Dormir sonos ante-céus
Abismos que são infernos.
Dormir em paz. Dormir paz,
Enfim a nota segura.
Lembrar pessoas e dias
Que penetraram no espaço
De eventos primaveris.
E dar a mão aos espectros
Beijá-los lendas, perfis.
Amar a sombra, a penumbra
Correr janelas e véus.
Saber que nada é verdade.
Dizer amor ao deserto
Abraçar quem nos ignora
Dormir com quem não nos vê
Mas precisar do calor
De quem nunca nos encontra.



natércia freire
os intrusos
1971





09 dezembro 2017

florbela espanca / tarde de mais...




Quando chegaste enfim, para te ver
Abriu-se a noite em mágico luar;
E para o som de teus passos conhecer
Pôs-se o silêncio, em volta, a escutar...

Chegaste, enfim! Milagre de endoidar!
Viu-se nessa hora o que não pode ser:
Em plena noite, a noite iluminar
E as pedras do caminho florescer!

Beijando a areia de oiro dos desertos
Procurara-te em vão! Braços abertos,
Pés nus, olhos a rir, a boca em flor!

E há cem anos que eu fui nova e linda!...
E a minha boca morta grita ainda:
Por que chegaste tarde, Ó meu Amor?!...


florbela espanca
sonetos
livraria bertrand
1981



08 dezembro 2017

yvette centeno / relato




Da paisagem da sombra
não te direi mais nada.

Percorre-se.

Em cada canto
um abismo.

E entre o pasmo
e o riso

caem pessoas
mortas.



yvette centeno
a oriente
edit. presença
1998