07 julho 2017

fiama hasse pais brandão / epístola para os amados





Ainda vos amos, porque aqui não há só tempo
e o amor, no tempo, é tão intenso e absoluto,
que transborda do tempo para o não-presente.
Havendo tempo e não-tempo, eu vos confesso agora
que em parques ao poente ainda vos estou a amar.
E não que vos ofereça hoje alucinados versos,
mas porque do meu tempo sois donos, como os poemas
que eu escrevo do tempo para o não-tempo, sempre.



fiama hasse pais brandão
epístolas e memorandos (1996)
obra breve
poesia reunida
assírio & alvim
2017





06 julho 2017

antónio osório / entrar contigo




Entrar contigo
dentro das searas
e depois
trigo
sairmos da terra



antónio osório
o lugar do amor
a boca junta
gota de água
1981





05 julho 2017

jordi doce / jardim de inverno




No mais escuro deste jardim há alguém
com uma das mãos sobre os lábios que invoca
ou pelo menos aspira nomear este silêncio
atrás do qual passam nuvens e pó e pássaros

invisíveis ao olhar daquele que escuta,
inaudíveis como inaudível é, se escuto,
a passagem do vento entre os ramos de zimbro,
o ar que filtra o pouco ar de inverno.

Luz mínima. Sombras, silhuetas que se abraçam.
Faz como o frio. Regressa ao teu corpo.
Escuta lento o derivar do mundo.
Escuta como cresce o gelo e se interroga,

como tudo é espelho e a quietude do espelho.



jordi doce
poesia espanhola anos 90
trad. joaquim manuel magalhães
relógio d´água
2000





04 julho 2017

lawrence ferlinghetti / a poesia como arte insurgente



(excerto)


Envio-te sinais por entre as chamas.

O Pólo Norte não está onde costumava estar.

O Destino Manifesto já não é manifesto.

A civilização está a autodestruir-se.

Némesis bate à porta.

Para que servem os poetas, numa época assim? Qual é a utilidade da poesia?

O estado do mundo pede à poesia que o salve. (Uma voz no deserto!)

Se queres ser um poeta, cria obras que consigam responder ao desafio de um tempo apocalíptico.

Tu és Whitman, tu és Poe, tu és Mark Twain, tu és Emily Dickinson e Edna St. Vincent Millay, tu és Neruda e Maiakovski e Pasolini, tu és americano ou não, tu podes conquistar os conquistadores com palavras.

Se queres ser um poeta, escreve jornais vivos. Sê um repórter no espaço sideral, e envia as tuas matérias para um supremo redactor-chefe que acredite na transparência total e tenha uma fraca tolerância a conversa fiada.

Se queres ser um poeta, experimenta todo o tipo de poéticas, gramáticas eróticas imperfeitas, religiões extáticas, efusões pagãs glossolálicas, discursos públicos bombásticos, rabiscos automáticos, percepções surrealistas, fluxos de consciência, sons encontrados, discursos e divagações – e cria a tua própria voz límbica, a tua própria voz secreta, a voz que te diz.

(…)




lawrence ferlinghetti
a poesia como arte insurgente
tradução de inês dias
relógio d´água
2016






03 julho 2017

manuel de castro / último poema possivelmente de amor




recorda
como se os dias não fluíssem em dias
e para ti fosse um nítido jogo de músculos
meu braço no teu corpo      anfiteatro
da mais pura derrota rumo às constelações

eis-me descoberta
de tudo que se arrisca sem limite
construído pela colaboração de globos de vidro
iluminados e submersos
para o teu nome
um novo mecanismo de linguagem
para o teu corpo
memória      ciclo perfeito
dos meus desejos de pedra e de violência

tu
única para quem fui     adeus     o homem sem comédia


manuel de castro
o surrealismo na poesia portuguesa
organização, prefácio e notas de natália correia
frenesi
2002








02 julho 2017

ricardo reis / dia após dia a mesma vida é a mesma.




Dia após dia a mesma vida é a mesma.
        O que decorre, Lídia,
No que nós somos como em que não somos
        Igualmente decorre.
Colhido, o fruto deperece; e cai
        Nunca sendo colhido.
Igual é o fado, quer o procuremos,
        Quer o esperemos. Sorte
Hoje, Destino sempre, e nesta ou nessa
        Forma alheio e invencível.

2-9-1923



odes de ricardo reis
fernando pessoa
ática
1946




01 julho 2017

antero de quental / intimidade



Quando, sorrindo, vais passando, e toda
Essa gente te mira cobiçosa,
És bela - e se te não comparo à rosa,
E que a rosa, bem vês, passou de moda...

Anda-me às vezes a cabeça à roda,
Atrás de ti também, flor caprichosa!
Nem pode haver, na multidão ruidosa,
Coisa mais linda, mais absurda e doida.

Mas é na intimidade e no segredo,
Quando tu coras e sorris a medo,
Que me apraz ver-te e que te adoro, flor!

E não te quero nunca tanto (ouve isto)
Como quando por ti, por mim, por Cristo, Juras
- mentindo - que me tens amor...



antero de quental
sonetos







30 junho 2017

r. lino / nove instantâneos do sul



.primeiro.

as manhãs caem no intervalo dos panos,
normalmente rectangulares;
as listas descem até às sombras
penduradas nas varandas,
nos mercados,
como se compridas vestes
por entre tectos de cana



r. lino
nove instantâneos do sul
políptico
companhia das ilhas
2016





29 junho 2017

paul éluard / já que não é uma questão de força



Tudo a mais frágil palavra quebra
Sombra de ideia ideia da sombra morte feliz
O fogo torna-se água tépida e o pão migalha
O sangue mascara um sorriso e o raio uma
                                                                    [lágrima
O chumbo que o ouro esconde pesa sobre as
                                                                    [vitórias
Nada semeámos que não tivesse sido destruído
Pelo minucioso bico das delícias íntimas
As asas penetram no pássaro para o fixarem.




paul éluard
algumas das palavras
trad. antónio ramos rosa e luiza neto jorge
publicações dom quixote
1977




28 junho 2017

rui knopfli / telegrama



Ao longo destes anos todos
nada temos dito – meia dúzia
de palavras trocadas para o ofício
difícil da vida diária
e quantas proferidas com azedume.
Não te roubou, a brancura dos cabelos,
a doçura que nos teus olhos mais
se acentua.
       Mãe,
este silêncio anda cheio de ternura.



rui knopfli
o dente do siso
memória consentida
20 anos de poesia 1959/1979
imprensa nacional - casa da moeda
1982








27 junho 2017

jorge de sena / vita brevis




A vida é breve mas o que a faz mais breve
não é morrer-se nem morrer quem foi
connosco nela espaço forma e tempo.
Que mais que a morte a humanidade encurta
e torna mais estreita a nossa vida.
Só brevemente e por um breve instante
seu corpo nos concede. E brevemente
é que pensar deseja que existimos.
Antes de mortos, antes de sozinhos
e apenas visitados de memórias,
já todos somos um jornal antigo
deitado fora sem sequer ser lido,
ou somos uma imagem desenhada
a borda do passeio em que se exibem
pisando-a com os pés com que desenham
seus mesmos rostos que outros pés já pisam.
A vida é breve, breve, mas mais breve
quanto a quer breve a estupidez humana
fiel ao tempo ainda em que de espaço
o tempo se fazia e a pouco espaço
na terra imensa a todos não chegava.



jorge de sena
exorcismos  (1972)
trinta anos de poesia
editorial inova
1972




26 junho 2017

luís miguel nava / como alguém disse



Não é que eu seja sábio, como entre as de mármore alguém disse
ser sempre uma coluna de madeira,
mas creio já ter visto um livro brilhar como
se fosse o mar quem nele ao rebentar depositasse o texto.



luís miguel nava
como alguém disse
contexto editora
1982







25 junho 2017

bernardo soares / a tragédia principal da minha vida é, como todas as tragédias



A tragédia principal da minha vida é, como todas as tragédias, uma ironia do Destino. Repugno a vida real como uma condenação; repugno o sonho como uma libertação ignóbil. Mas vivo o mais sórdido e o mais quotidiano da vida real; e vivo o mais intenso e o mais constante do sonho. Sou como um escravo que se embebeda à sesta — duas misérias em um corpo só.

Sim, vejo nitidamente, com a clareza com [que] os relâmpagos da razão destacam do negrume da vida os objectos próximos que no-la formam, o que há de vil, de lasso, de deixado e factício, nesta Rua dos Douradores que me é a vida inteira — este escritório sórdido até à sua medula de gente, este quarto mensalmente alugado onde nada acontece senão viver um morto, esta mercearia da esquina cujo dono conheço como gente conhece gente, estes moços da porta da taberna antiga, esta inutilidade trabalhosa de todos os dias iguais, esta repetição pegada das mesmas personagens, como um drama que consiste apenas no cenário, e o cenário estivesse às avessas...

Mas vejo também que fugir a isto seria ou dominá-lo ou repudiá-lo, e eu nem o domino, porque o não excedo adentro do real, nem o repudio, porque, sonhe o que sonhe, fico sempre onde estou.

E o sonho, a vergonha de fugir para mim, a cobardia de ter como vida aquele lixo da alma que os outros têm só no sono, na figura da morte com que ressonam, na calma com que parecem vegetais progredidos!

Não poder ter um gesto nobre que não seja de portas adentro, nem um desejo inútil que não seja deveras inútil!

Definiu César toda a figura da ambição quando disse aquelas palavras: «Antes o primeiro na aldeia do que o segundo em Roma!» Eu não sou nada nem na aldeia nem em Roma nenhuma. Ao menos, o merceeiro da esquina é respeitado da Rua da Assunção até à Rua da Vitória; é o César de um quarteirão. Eu superior a ele? Em quê, se o nada não comporta superioridade, nem inferioridade, nem comparação?

É César de todo um quarteirão e as mulheres gostam dele condignamente.

E assim arrasto a fazer o que não quero, e a sonhar o que não posso ter, a minha vida (...), absurda como um relógio público parado.

Aquela sensibilidade ténue, mas firme, o sonho longo mas consciente (...) que forma no seu conjunto o meu privilégio de penumbra.

s.d.



fernando pessoa
livro do desassossego por bernardo soares. vol.I
ática
1982