30 maio 2017

edna st. vincent millay / para um jovem poeta



O tempo não consegue separar a asa de uma ave da ave.
Ave e asa, em completa junção,
Descem, e uma só pena são.

Nada que no ar se sustente,
Nem a cotovia, nem tu igualmente.
Morre como morre a outra gente.



edna st. vincent millay
antologia de poesia anglo-americana
de chaucer a dylan thomas
trad. antónio simões
campo das letras
2002




29 maio 2017

jorge de sousa braga / poema de amor




Esta noite sonhei oferecer-te o anel de Saturno
e quase ia morrendo com o receio de que não
                    te coubesse no dedo.





jorge de sousa braga
o poeta nu
fenda
1991





28 maio 2017

bernardo soares / a história nega as coisas certas




A história nega as coisas certas. Há períodos de ordem em que tudo é vil e períodos de desordem em que tudo é alto. As decadências são férteis em virilidade mental; as épocas de força em fraqueza do espírito. Tudo se mistura e se cruza, e não há verdade senão no supô-la.
Tantos nobres ideais caídos entre o estrume, tantas ânsias verdadeiras extraviadas entre o enxurro!

Para mim são iguais, deuses ou homens, na confusão prolixa do destino incerto. Desfilam-me, neste quarto andar incógnito, em sucessões de sonhos, e não são mais para mim do que foram para os que acreditaram neles. Manipansos dos negros de olhos incertos e espantados, deuses-bichos dos selvagens de sertões emaranhados, símbolos figurados de egípcios, claras divindades gregas, hirtos deuses romanos, Mitra senhor do Sol e da emoção, Jesus senhor da consequência e da caridade, critérios vários do mesmo Cristo, santos novos deuses das novas vilas, todos desfilam, todos, na marcha fúnebre (romaria ou enterro) do erro e da ilusão. Marcham todos, e atrás deles marcham, sombras vazias, os sonhos que, por serem sombras no chão, os piores sonhadores julgam que estão assentes sobre a terra — pobres conceitos sem alma nem figura, Liberdade, Humanidade, Felicidade, o Futuro Melhor, a Ciência Social, e arrastam-se na solidão da treva como folhas movidas um pouco para a frente por uma cauda de manto régio que houvesse sido roubado por mendigos.

s.d.


fernando pessoa
livro do desassossego por bernardo soares. vol.II
ática
1982



27 maio 2017

al berto / trabalhos do olhar



I

escrevo-te a sentir tudo isto
e num instante de maior lucidez poderia ser o rio
as cabras escondendo o delicado tilintar dos guizos nos sais de prata da
fotografia
poderia erguer-me como o castanheiro dos contos sussurrados junto ao
fogo
e deambular trémulo com as aves
ou acompanhar a sulfúrica borboleta revelando-se na saliva dos lábios
poderia imitar aquele pastor
ou confundir-me com o sonho de cidade que a pouco e pouco morde a
sua imobilidade

habito neste país de água por engano
são-me necessárias imagens radiografias de ossos
rostos desfocados
mãos sobre corpos impressos no papel e nos espelhos
repara
nada mais possuo
a não ser este recado que hoje segue manchado de finos bagos de romã
repara
como o coração de papel amareleceu no esquecimento de te amar




al berto
trabalhos do olhar
1979/82


26 maio 2017

henrique guimarães / valentino




Furtei a Deus um mistério
Para que nele ardesse o Outono - teu beijo!
Dancei, cobri-te de sangue
E acendi fogueiras para veres as cidades à noite.

Derrubei a flor na pólvora - sedutora
monstruosa de mãos púrpuras
que ao tempo errado almejou fim.
Minha história, dobra-se nua ao instinto
Zoa de imagens sabotadas e tempestuosas
Respira para que em ti o abraço seja quente
e relutante como o punho dos mares.

Por isso, eu sei
que meu espírito, um dia
Herdará da fome
uma estação do
Inferno.



henrique guimarães




25 maio 2017

josé gomes ferreira / debaixo deste sol, outro sol coincidente…



                           (Depois de reler Teixeira de Pascoaes.)



Debaixo deste sol, outro sol coincidente…
Por dentro das pedras, outras pedras de bruma…

Feliz gente!
Com duas realidades
– e eu sem ter nenhuma.


josé gomes ferreira
eléctrico 1943-1944-1945
poesia III
portugália
1971




24 maio 2017

vítor nogueira / mestre




Eis o segredo da arte: olhar constantemente
a calçada, nunca abandonar o martelo
nem a pedra que nos vem parar à mão.
Há que perder o medo e dar-lhe o golpe
certeiro. Ninguém quer saber quem somos,
só do que somos capazes.

Tudo isto é, porém, contrário à vida.
Os ciclos temáticos podem durar
dois, três anos? Duas, três décadas?
Será possível continuar a fazer eternamente
o mesmo? Como é que alguém, uma cidade,
pode ser tão claramente sádico?

Mestre-calceteiro, com o devido respeito,
não temos opinião. É mais seguro
nestes casos. Inferiores em número e armas,
o nosso olhar está na calçada, cegos
a tudo o mais que se mova.


vítor nogueira
telhados de vidro
nr. 12 maio
averno
2009






23 maio 2017

james merrill / uma dedicatória




Hans, há momentos em que todo o espírito
Se transforma num par de olhos transbordantes, ou lábios
Abrindo-se para beber da funda nascente de uma morte
Cuja frescura ainda não precisam de entender.
São estes os momentos, se os há, em que um anjo entra
No espírito, como reis nas vestes
De um pobre cabreiro, para os seus actos de caridade.
Há momentos em que a fala é apenas uma boca colada
Revê e humildemente na mão do anjo.



james merrill
rosa do mundo
2001 poemas para o futuro
trad. josé alberto de oliveira
assírio & alvim
2001





22 maio 2017

carlos de oliveira / descida aos infernos


9
Eis-me no centro do assombro,
onde não há distinção nenhuma
entre ser queimado e ser fogo.

No centro do assombro,
mordido pelas chamas
e a mordê-las:



carlos de oliveira
descida aos infernos
antologia poética
quasi
2001




21 maio 2017

fernando pessoa / canção triste



Sol, que dá nas ruas, não dá
        No meu carinho.
A felicidade quando virá?
        Por que caminho?
Horas e horas por fim são meses
        De ansiado bem.
Eu penso em ti indecisas vezes,
        E tu ninguém!
Não tenho barco para a outra margem,
        Nem sei do rio
Ah! E envelheceu já tua imagem
        E eu sinto frio.
Não me resigno, não me decido,
        Choro querer...
Sempre eu! Ó sorte, dá-me o olvido
        De pertencer!
Enterrei hoje outra vez meu sonho
        Amanhã virá
Tornar-me triste por ser risonho,
        E não ser já.

1917



fernando pessoa
pessoa por conhecer - textos para um novo mapa
estampa
1990




20 maio 2017

luís vaz de camões / o tempo acaba o ano, o mês e a hora




O tempo acaba o ano, o mês e a hora,
A força, a arte, a manha, a fortaleza;
O tempo acaba a fama e a riqueza,
O tempo o mesmo tempo de si chora;

O tempo busca e acaba o onde mora
Qualquer ingratidão, qualquer dureza;
Mas não pode acabar minha tristeza,
Enquanto não quiserdes vós, Senhora.

O tempo o claro dia torna escuro
E o mais ledo prazer em choro triste;
O tempo, a tempestade em grão bonança.

Mas de abrandar o tempo estou seguro
O peito de diamante, onde consiste
A pena e o prazer desta esperança.



luís vaz de camões
sonetos





19 maio 2017

herberto helder / ciclo V



V
Uma noite acordarei junto ao corpo infindável
da amada, e meu sangue não se encantará.
Então, rosa a rosa murcharão meus ombros.
Quer dizer que a sombra carregará meus sentidos
de distância, como se tudo fosse o cheiro
que as ervas pungentemente perdem
através do silêncio.
Plácido chegarei à mesa, e de súbito
o coração se atravessará de gelo puro.
O vinho? perguntarei. Flores de sal cobrirão
a luz poderosa do meu olhar.
Tempo, tempo. Eu próprio perguntarei no recente
pasmo da carne: o vinho?
Rosa a rosa murcharão meus ombros.


Então lembrarei a vermelha resina, o espesso
murmúrio do sangue,
o acre e sobrenatural aroma das acácias.
Tentarei encontrar uma forma.
Com beijos antigos um momento ainda queimarei
o corpo solitário da amada, direi palavras
de uma ternura de azebre.
E uma vez mais me perderei, dizendo: o vinho?
Rosa a rosa murcharão meus ombros.


herberto helder
poesia toda
a colher na boca
assírio & alvim
1996




18 maio 2017

eugénio de andrade / coração habitado




Aqui estão as mãos.
São os mais belos sinais da terra.
Os anjos nascem aqui:
frescos, matinais, quase de orvalho,
de coração alegre e povoado.

Ponho nelas a minha boca,
respiro o sangue, o seu rumor branco,
aqueço-as por dentro, abandonadas
nas minhas, as pequenas mãos do mundo.

Alguns pensam que são as mãos de Deus
— eu sei que são as mãos de um homem,
trémulas barcaças onde a água,
a tristeza e as quatro estações
penetram, indiferentemente.

Não lhe toquem: são amor e bondade.
Mais ainda: cheiram a madressilva.
São o primeiro homem, a primeira mulher.
E amanhece.



eugénio de andrade
até ananhã 1951-1956
poemas
edit. inova
1971