23 abril 2017

bernardo soares / a liberdade é a possibilidade do isolamento.



A liberdade é a possibilidade do isolamento. És livre se podes afastar-te dos homens, sem que te obrigue a procurá-los a necessidade de dinheiro, ou a necessidade gregária, ou o amor, ou a glória, ou a curiosidade, que no silêncio e na solidão não podem ter alimento. Se te é impossível viver só, nasceste escravo. Podes ter todas as grandezas do espírito, todas da alma: és um escravo nobre, ou um servo inteligente: não és livre. E não está contigo a tragédia, porque a tragédia de nasceres assim não é contigo, mas do Destino para si somente. Ai de ti, porém, se a opressão da vida, ela própria, te força a seres escravo. Ai de ti se, tendo nascido liberto, capaz de te bastares e de te separares, a penúria te força a conviveres. Essa, sim, é a tua tragédia, e a que trazes contigo.

Nascer liberto é a maior grandeza do homem, o que faz o ermitão humilde superior aos reis, e aos deuses mesmo, que se bastam pela força, mas não pelo desprezo dela.

A morte é uma libertação porque morrer é não precisar de outrem. O pobre escravo vê-se livre à força dos seus prazeres, das suas mágoas, da sua vida desejada e contínua. Vê-se livre o rei dos seus domínios, que não queria deixar. As que espalharam amor vêem-se livres dos triunfos que adoram. Os que venceram vêem-se livres das vitórias para que a sua vida se fadou.

Por isso a morte enobrece, veste de galas desconhecidas o pobre corpo absurdo. É que ali está um liberto, embora o não quisesse ser. É que ali não está um escravo, embora ele chorando perdesse a servidão. Como um rei cuja maior pompa é o seu nome de rei, e que pode ser risível como homem, mas como rei é superior, assim o morto pode ser disforme, mas é superior, porque a morte o libertou.

Fecho, cansado, as portas das minhas janelas, excluo o mundo e um momento tenho a liberdade. Amanhã voltarei a ser escravo; porém agora, só, sem necessidade de ninguém, receoso apenas que alguma voz ou presença venha interromper-me, tenho a minha pequena liberdade, os meus momentos de excelsis.

Na cadeira, aonde me recosto, esqueço a vida que me oprime. Não me dói senão ter-me doído.
s.d.



fernando pessoa
livro do desassossego por bernardo soares. vol.II
ática
1982





22 abril 2017

manuel antónio pina / a poesia vai acabar



A poesia vai acabar, os poetas
vão ser colocados em lugares mais úteis.
Por exemplo, observadores de pássaros
(enquanto os pássaros não
acabarem). Esta certeza tive-a hoje ao
entrar numa repartição pública.
Um senhor míope atendia devagar
ao balcão; eu perguntei: «Que fez algum
poeta por este senhor?»    E a pergunta
afligiu-me tanto por dentro e por
fora da cabeça que tive que voltar a ler
toda a poesia desde o princípio do mundo.
Uma pergunta numa cabeça.
— Como uma coroa de espinhos:
estão todos a ver onde o autor quer chegar? —


manuel antónio pina
ainda não é o fim nem o princípio do
mundo calma é apenas um pouco tarde (1969)
algo parecido com isto, da mesma substância
poesia reunida 1974-1992
afrontamento
1992



21 abril 2017

marguerite duras / textos secretos



É sempre quase madrugada. São horas tão
extensas como espaços de céu. É excessivo, o
tempo já não sabe por onde há-de passar.
O tempo já não passa. Dizes para ti próprio que
se agora àquela hora da noite ela morresse, seria
mais fácil, queres dizer certamente: para ti, mas
não acabas a frase.



marguerite duras
textos secretos
a doença da morte
trad. tereza coelho
quetzal
1999



20 abril 2017

yorgos seferis / mas que procuram as nossas almas viajando



VIII

Mas que procuram as nossas almas viajando
no convés de barcos aniquilados
apertadas entre mulheres amarelas e crianças que choram
sem poderem esquecer nem com os peixes-voadores
nem com as estrelas indicadas pelas pontas dos mastros.
Estilhaçadas pelos discos dos gramofones
atadas sem o querer a peregrinações inexistentes
murmurando pensamentos quebrados de línguas estrangeiras.

Mas que procuram as nossas almas viajando
sobre as podres madeiras marítimas
de porto em porto?

Mexendo em pedras partidas, aspirando
a frescura do pinheiro com mais dificuldade cadadia,
nadando nas águas deste mar
e daquele mar,
sem tocar
sem seres humanos
dentro de uma pátria que já não é nossa
nem vossa.

Sabíamos que eram belas as ilhas
por aqui algures onde tacteamos
um pouco mais abaixo ou um pouco mais acima
um espaço mínimo.


yorgos seferis
romance
poemas escolhidos
trad. de joaquim manuel magalhães e nikos pratisinis
relógio d´água
1993








19 abril 2017

jaime rocha / o homem que dorme



E se uma avenida fosse um lago
comprido e a água passasse por
uma turbina e decidisse afundar
a cidade até só o castelo ser visto
dentro de um barco.

Não há tempo
para os vinhos nascerem.

Os dias passam num instante como
o reflexo de um farol num espelho.
O azedo das ruas transforma-se
num cenário que só um jornal
impresso pode descrever_____.

Um homem anda com embrulhos
de plástico. Toda a gente sabe que
dorme na soleira de uma empresa
de candeeiros. É uma sombra,
um rasto.

Mas ninguém se aperceberá
da sua morte.


jaime rocha
voo rasante
antologia de poesia contemporânea
mariposa azual
2015



18 abril 2017

pere quart / o ganho



     Nada perdeu,
Pois nada possuía,
Quem chegava inválido e despido.
     Mas ganhou pouco a pouco, depressa,
o melhor de saudades, preguiça acobardada,
e uma medida rasa de incertezas
onde a ilusão com tédio vai procurar migalhas.


pere quart
a rosa do mundo 2001 poemas para o futuro
tradução de josé bento
assírio & alvim
2001






17 abril 2017

samuel beckett / tédio II



mundo mundo mundo mundo
e o rosto grave
nuvem contra o anoitecer

de morituris nihil nisi

e o rosto esfarelando-se tímido
tarde de mais para obscurecer o céu
corando pela noite dentro
estremecendo como uma gafe

veronica mundi
veronica munda
dá-nos uma enxugadela por amor de Jesus

suando como Judas
cansado de morrer
cansado de polícias
pés na marmelada
suando em profusão
coração na marmelada
fuma mais fruta
o velho coração o velho coração
despedaçando-se fora do congresso

doch asseguro-te
deitado na ponte O’Connell
de olhos arregalados para as tulipas da noite
as tulipas verdes
reluzindo ao dobrar da esquina como um
                                                           [carbúnculo
reluzindo nos batelões de Guinness

a sugestão o rosto
tarde de mais para abrilhantar o céu
doch doch asseguro-te




samuel beckett
poemas escolhidos
tradução de jorge rosa e armando da silva carvalho
dom quixote
1970



16 abril 2017

josé de almada negreiros / o valor das palavras




Há palavras que fazem bater mais depressa o coração – todas as palavras – umas mais do que outras, qualquer mais do que todas. Conforme os lugares e as posições das palavras. Segundo o lado de onde se ouvem  do lado do Sol ou do lado onde não dá o Sol.

Cada palavra é um pedaço do universo. Um pedaço que faz falta ao universo. Todas as palavras juntas formam o Universo.

As palavras querem estar nos seus lugares!


josé de almada negreiros
andaimes e vésperas
poesia
estampa
1971



15 abril 2017

fernando pessoa / em tempos quis o mundo inteiro.




Em tempos quis o mundo inteiro.
Era criança e havia amar.
Hoje sou lúcido e estrangeiro.
(Acabarei por não pensar.)

A quem o mundo não bastava,
(Porque depois não bastaria)
E a alma era um céu, e havia lava
Dos vulcões do que eu não sabia,

Basta hoje o dia não ser feio,
Haver brisa que em sombras flui,
Nem se perder de todo o enleio
De ter sido quem nunca fui.

28-5-1930


fernando pessoa
pessoa por conhecer - textos para um novo mapa
estampa
1990



14 abril 2017

manuel antónio pina / mateus, 26, 26



Tomai, este é o meu corpo:
formas e símbolos.

Fora de mim, o meu reino
Desmembra-se dentro de mim.

E o que fala falta-me
dentro do coração.

E estou sozinho fora de mim
como um coração ora de mim.



manuel antónio pina
o caminho de casa (1989)
algo parecido com isto, da mesma substância
poesia reunida 1974-1992
afrontamento
1992




13 abril 2017

herberto helder / que nenhum outro pensamento me doesse




que nenhum outro pensamento me doesse, nenhuma
                                                          imagem profunda:
noite erguida até à derradeira estrela
cavada entre os meus olhos cegos



herberto helder
a morte sem mestre
porto editora
2014








12 abril 2017

luís miguel nava / falésias






Poder-me-ão encontrar, trago um rapaz na minha
memória, a casa a uma janela
da qual o faço vir como um sabor à boca,
falésias onde o aguardo à hora do crepúsculo.

Regresso assim ao mar de que não posso
falar sem recorrer ao fogo e as tempestades
ao longe multiplicam-nos os passos.
Onde eu não sonhe a solidão fá-lo por mim.



luís miguel nava
como alguém disse
contexto editora
1982



11 abril 2017

r. lino / palavras do imperador hadriano na morte de antínoos




há muito vinho nos barris;
um barco desce o rio;
a velhice sobe
no princípio das grandes rugas solitárias.
semana a semana
chega a seiva do deserto:
fome farta de fartas sombras.
foi pela 12.ª hora que Chabrias entrou
e me disse na tenda
por onde ido te não sabia.
indícios pelos caminhos,
até às palavras finais de Hermógenes,
atravessámos.
chamei então todas as doenças
invocando o igual misté-
rio das saúdes:
dor que se corta pelo sol
como a fresca brisa pelo deserto
e o sémen
conhecia nos teus olhos a sagrada viagem
desse fogo: atento dorso que era meu.
sozinho no prazer me ergo agora
dentro desse corpo
por mil canais atravessado.
quem por mim
– hora em que regresso partindo tu –
devastará os profundos sulcos desses lábios
– quanto de tanta juventude me tiraste –
tão macios e tão gretados?


r. lino
palavras do imperador hadriano
políptico
companhia das ilhas
2016