14 abril 2017

manuel antónio pina / mateus, 26, 26



Tomai, este é o meu corpo:
formas e símbolos.

Fora de mim, o meu reino
Desmembra-se dentro de mim.

E o que fala falta-me
dentro do coração.

E estou sozinho fora de mim
como um coração ora de mim.



manuel antónio pina
o caminho de casa (1989)
algo parecido com isto, da mesma substância
poesia reunida 1974-1992
afrontamento
1992




13 abril 2017

herberto helder / que nenhum outro pensamento me doesse




que nenhum outro pensamento me doesse, nenhuma
                                                          imagem profunda:
noite erguida até à derradeira estrela
cavada entre os meus olhos cegos



herberto helder
a morte sem mestre
porto editora
2014








12 abril 2017

luís miguel nava / falésias






Poder-me-ão encontrar, trago um rapaz na minha
memória, a casa a uma janela
da qual o faço vir como um sabor à boca,
falésias onde o aguardo à hora do crepúsculo.

Regresso assim ao mar de que não posso
falar sem recorrer ao fogo e as tempestades
ao longe multiplicam-nos os passos.
Onde eu não sonhe a solidão fá-lo por mim.



luís miguel nava
como alguém disse
contexto editora
1982



11 abril 2017

r. lino / palavras do imperador hadriano na morte de antínoos




há muito vinho nos barris;
um barco desce o rio;
a velhice sobe
no princípio das grandes rugas solitárias.
semana a semana
chega a seiva do deserto:
fome farta de fartas sombras.
foi pela 12.ª hora que Chabrias entrou
e me disse na tenda
por onde ido te não sabia.
indícios pelos caminhos,
até às palavras finais de Hermógenes,
atravessámos.
chamei então todas as doenças
invocando o igual misté-
rio das saúdes:
dor que se corta pelo sol
como a fresca brisa pelo deserto
e o sémen
conhecia nos teus olhos a sagrada viagem
desse fogo: atento dorso que era meu.
sozinho no prazer me ergo agora
dentro desse corpo
por mil canais atravessado.
quem por mim
– hora em que regresso partindo tu –
devastará os profundos sulcos desses lábios
– quanto de tanta juventude me tiraste –
tão macios e tão gretados?


r. lino
palavras do imperador hadriano
políptico
companhia das ilhas
2016






10 abril 2017

janet frame / o palhaço



A sua cara está manchada por lágrimas maquilhadas.
Eu e os outros aplaudimo-lo, sabendo
que é de bom tom aprovar quando um palhaço chora
e de mau tom  quando o faz uma cara persistentemente
dorida sejam ou não pintadas as suas lágrimas.

Também é de bom tom, entre guerras,
dizer que o ódio é amor e o amor é ódio,
argumentar que tudo é mais complexo do que sonhámos
e depois dizer que não o sonhámos
sempre o soubemos e somos sensatos.

Caro palhaço choroso caro velho infantil
caro assassino gentil caro e inocente culpado
cara simplicidade odeio-vos por causarem que eu finja
que há vários mundos para uma verdade quando
eu sei, eu sei que não há. Pessoas como eu e vocês, meus caros,
que têm mau hálito, que adormecem e de intestinos
ruidosos que controlam a fé
que chegam à casa vazia ou entre a família,
cara família, caro homem solitário no mundo despedaçado de nin-
                  guém,
será para essa desolação que acumulámos palavras durante tantos
milhões de anos, desde o primeiro, gememos
e olhamos para as estrelas. Oh oh o céu é demasiado amplo para
                  dormir debaixo!


janet frame
a rosa do mundo 2001 poemas para o futuro
tradução de josé alberto oliveira
assírio & alvim
2001




09 abril 2017

álvaro de campos / diluente



A vizinha do número quatorze ria hoje da porta
De onde há um mês saiu o enterro do filho pequeno.
Ria naturalmente com a alma na cara.
Está certo: é a vida.
A dor não dura porque a dor não dura.
Está certo.
Repito: está certo.
Mas o meu coração não está certo.
O meu coração romântico faz enigmas do egoísmo da vida.
Cá está a lição, ó alma da gente!
Se a mãe esquece o filho que saiu dela e morreu,
Quem se vai dar ao trabalho de se lembrar de mim?
Estou só no mundo, como um peão de cair.
Posso morrer como o orvalho seca.
Por uma arte natural de natureza solar,
Posso morrer à vontade da deslembrança,
Posso morrer como ninguém...
Mas isto dói,
Isto é indecente para quem tem coração...
Isto...
Sim, isto fica-me nas goelas como uma sanduíche com lágrimas...
Gloria? Amor? O anseio de uma alma humana?
Apoteose ás avessas...
Dêem-me Agua de Vidago, que eu quero esquecer a Vida!

29-8-1929



álvaro de campos
livro de versos
fernando pessoa
estampa
1993



08 abril 2017

eugénio de andrade / juventude



Sim, eu conheço, eu amo ainda
esse rumor abrindo, luz molhada,
rosa branca! Não, não é solidão,
nem frio, nem boca aprisionada.
Não é pedra nem espessura.
É juventude. Juventude ou claridade.
É um azul puríssimo, propagado,
isento de peso e crueldade.


eugénio de andrade
poemas
edit. inova
1971




07 abril 2017

s. kierkegaard / clamar e gritar



É, de facto, precisa uma grande ingenuidade para acreditar que, no mundo, servirá de alguma coisa clamar e gritar – como se, com isso, o destino de uma pessoa mudasse. Aceite-se o destino tal como é oferecido e evitem-se todas as prolixidades. Quando eu, na minha juventude, ia a um restaurante, também dizia ao empregado: um bom naco, um muito bom naco, do lombo, não demasiado gordo. Se calhar o empregado mal ouvia o meu apelo, menos ainda lhe prestava atenção, menos ainda a minha voz conseguia chegar até à cozinha, mover quem trinchava – e, mesmo que tudo isto acontecesse, talvez não houvesse nenhum bom naco em todo o assado. Agora já não clamo mais.


s. kierkegaard
diapsalmata
trad. de bárbara silva, m. jorge de carvalho,
nuno ferro e sara carvalhais
assírio & alvim
2011 




06 abril 2017

marguerite duras / textos secretos




Ela mexe-se, os olhos entreabrem-se. Pergunta: Quantas noites estão ainda pagas? Dizes: Três.
                Ela pergunta: Nunca amou uma mulher? Dizes que não, nunca.
                Ela pergunta: Nunca desejou uma mulher? Dizes que não, nunca.
                Ela pergunta: Nem uma só vez, por um instante? Dizes que não, nunca.
                Ela diz: Nunca? Nunca? Repetes: Nunca.
                Ela sorri, e diz: É curioso um morto.
                E recomeça: E olhar para uma mulher, nunca olhou para uma mulher? Dizes que não, nunca.
                Ela pergunta: Olha para onde? Tu dizes: Para tudo o resto.
                Ela espreguiça-se, cala-se. Sorri e volta a adormecer.
                Voltas ao quarto. Ela não se mexeu na mancha branca dos lençóis. Olhas para aquela que nunca tinhas abordado, nunca, nem através das suas semelhantes nem através dela própria.
                Olhas para a forma suspeitada desde há séculos. Desistes.



marguerite duras
textos secretos
a doença da morte
trad. tereza coelho
quetzal
1999




05 abril 2017

mário dionísio / canto de bar



Canta, cantor esquecido, tuas valsas de angústia!

Aqui o canto de bar
onde vêm parar os que serão suicidas,
gente de todas as nações falando todas as línguas,
emigrados de todos os países.
Aqui o canto de bar
onde ancorou o jogador arruinado
e as mulheres que perderam o número dos amantes
e os moços que sonharam vidas que não puderam ter.
Onde os cantores esquecidos cantam valsas lentas e antigas
que trazem a recordação de lares despedaçados.
Onde vieram parar os maltrapilhos perdidos para sempre
e onde as valsas cantadas por vozes arrastadas,
que lembram multidões de coisas,
já não trazem a mínima saudade.
Aqui onde se sabe indiferentemente
que o homem saído há pouco
estendeu a corda e se enforcou na escada.
Aqui onde se joga tudo sem interesse
porque já não há nada para jogar.
É o canto soturno
onde não entra sol nem lua.
Janelas fechadas, só fumo e luz vermelha.
Homens de todas as raças de olhos desiludidos,
mulheres de todas as raças de cabelos desgrenhados.
Aqui o canto de bar
onde veio parar o lixo de todas as nações.
(Todos que estavam a mais nas cidades e nos lares…)

Canta, cantor esquecido, tuas valsas de angústia!


mário dionísio
poesia completa
poemas (1936-1938)
imprensa nacional-casa da moeda
2016



04 abril 2017

zbigniew herbert / da mitologia



Primeiro era um deus da noite e da tempestade, ídolo negro e sem olhos, diante do qual saltavam nus e lambuzados de sangue. Mais tarde, nos tempos da república, eram imensos os deuses, com mulheres, filhos, camas desconjuntadas e raios que explodiam inofensivos. Por fim só os neuróticos supersticiosos carregavam no bolso pequenas estátuas de sal, representando o deus da ironia. À época não havia maior deus.

Vieram então os bárbaros. Também eles tinham em alta estima o pequeno deus da ironia. Esmagavam-no sob os calcanhares, adicionando-o depois aos seus manjares.


zbigniew herbert 
a rosa do mundo 2001 poemas para o futuro
tradução de rui knopfli
assírio & alvim
2001



03 abril 2017

rui knopfli / a casa dos mortos



Sub-reptícia, uma certa gravidade
se apodera de nós: um travo
residual morde as comissuras
do sorriso. No olhar com que olhamos
se demora outro olhar. No aceno
da mão pesa uma lentura inusitada.
Percebemo-lo na aresta de indefinido
mal-estar, na amargura que dura
enquanto dura o tempo de uma
lembrança furtiva. No ar, talvez
que respiramos de tudo o que foi
e fomos e reverbera em nós
ardências e crepitações. Como um soluço
represo e interminável, eles persistem
desgarradamente presos à curvatura
dolorida dos nossos gestos. Eles
doem em nós uma presença muda
e grave. E emprestam a tudo
o que fazemos uma harmonia melancólica.
Com a maré baixa do seu terno desespero,
moram em nós que somos os vivos.


rui knopfli
memória consentida : 20 anos de poesia 1959-1979
imp. nac. casa da moeda
1982





02 abril 2017

bernardo soares / as coisas sonhadas só têm o lado de cá...



As coisas sonhadas só têm o lado de cá... Não se lhes pode ver o outro lado... Não se pode andar à roda delas... O mal das coisas da vida é que as podemos ir olhando por todos os lados... As coisas de sonho só têm o lado que vemos... Ter amores só puros como as nossas almas...
s.d.


fernando pessoa
livro do desassossego por bernardo soares. vol.I
ática
1982