Um dia, em frente ao mar, ele pensou:
Se me apagasse neste preciso instante, o mundo pouco se importaria com
isso.
No entanto, deixaria de ser o mesmo: seria um mundo com todas as coisas
que conheci e toquei, mas sem mim. E eu, algures na morte, é pouco
provável
que levasse comigo alguma coisa do mundo. Seria um homem morto, sem
mundo, definitivamente só.
Depois, não lhe agradou saber que o mundo, apesar da sua morte,
conservaria por muito tempo os vestígios da sua passagem. Desejou, uma
vez mais,
que tudo o que escrevera até àquele instante se apagasse também,
e que do seu nome não restasse uma sílaba.
Pensou em tudo isto sem amargura, porque havia nele dois mistérios
insolúveis:
viver e escrever. E ambos estavam tão intimamente ligados que,
provavelmente,
se conseguisse desvendar um deles, o outro sê-lo-ia também.
Mas acontece que tinha tentado fazer da sua vida uma obra tão intensa
quanto a obra escrita. Por vezes diluíam-se uma na outra,
confundiam-se,
tão próximas ou afastadas estavam. E tanto na vida como na escrita,
um mesmo desejo o animava: caminhar em direcção
à sabedoria última do silêncio - a memória total do mundo.
O pior é que sempre que avançava alguns passos na direcção certa,
desiludia-se.
A harmonia com o mundo e com o seu próprio corpo continuava
inacessível;
e outras ignorâncias surgiam, outras trevas o cegavam.
O que parecia estar perto, repentinamente, ficava fora do alcance.
Apesar de tudo, com o avançar lento da idade pressentia, algures dentro
de si,
um ser de lume - um anjo mudo que o iluminava, revelando- lhe aquilo
que devia ou não silenciar.
E quando esse ser o fazia sentir árvore ou pássaro, todo o talento da
árvore
e o nocturno voo do pássaro escorriam em si. E se a sensação de mar lhe
era transmitida,
ele sabia que era um mar muito mais remoto e vasto que aquele
que diante de si se movia. .
Respirava fundo, tinha medo, e escrevia como uma condenação -
e nessa condenação encontrava um breve alívio para a dor das coisas
vivas
e mortas que o rodeavam. E o corpo, sempre apaixonado,
tremeluzia quando o estranho anjo mudo lhe punha uma voz no coração.
Talvez seja por tudo isto que um dia nunca mais o lembraremos, nunca
mais.
Mas neste preciso instante ele acabou de acordar, abre os olhos, arde,
é jovem ainda, e diz-me a sorrir:
– Aqui tens o inocente revólver
para a eternidade.
al berto
o anjo mudo
assírio & alvim
2000