21 janeiro 2017

vasko popa / canção da verdade jovem



A verdade cantava no escuro
No cimo da tília sobre o coração

O sol há-de amadurecer dizia
No cimo da tília sobre o coração
Se os olhos o iluminarem

Troçámos da canção
Agarrámos prendemos a verdade
Cortámos-lhe a cabeça debaixo da tília

Os olhos estavam noutro sítio
Ocupados com outra obscuridade
E nada viram


vasko popa
a rosa do mundo 2001 poemas para o futuro
tradução de eugénio de andrade
assírio & alvim
2001





20 janeiro 2017

thom gunn / a visão da morte de um motociclista perturbado



Em pleno campo,
Avanço por entre muralhas de chuva
Que me fustiga o rosto e me ensopa os joelhos,
Mas sou o homem que quero ser.

A charneca firme acaba e surge o pântano.
Estamos agora em guerra: quem ganhar
Não conseguirá submeter a minha vontade humana
À natureza embora seja de lá que ela veio.
As rodas afundam-se; o ruído nítido torna-se confuso:
Porém, curvado sobre o volante,
Lanço esta minha máquina que escolhi
Contra a possibilidade de ser um corpo ainda.
A roda da frente penetra com firmeza entre
Dois arbustos de um verde esmaltado e insensível
 – Gigantesco equilíbrio no contorno
De cada folha lisa. Redemoinhos negros sobem
Em redor do meu pé que, comprimindo com força,
Acelera o sono que espera.

Costumava viver no ruído e desconhecia
A existência da realidade calma ou rastejante,
Mas agora as águas paradas, coladas ao meu rosto
Sob o peso da morte, retiram-me o alento;
Embora angustiado julgo que posso
Mover-me através da matéria. Encontro o meu caminho,
Onde a morte e a vida se conjugam,
Através da negra terra que não é minha,
Povoada de fragmentos, embotada, informe,
Enquanto pelos meus ouvidos, enxameados de ruído,
As extremidades brancas das plantas do pântano,
Lentas, sem paciência, espalham-se à vontade
Invulneráveis e flexíveis, e se estendem
Numa posse serena em direcção ao seu fim.

Embora os cogumelos quando eu apodrecer
Me recubram os ossos lívidos com lívidos nós
Até enfunarem os meus fatos, eles fingem
Que este espantalho é de novo um homem,
E é como servos que persistem
Ou, sem qualquer vontade, se contorcem;
E o hábito, pelos homens laboriosamente
Adquirido, não os deixa cansados.
Essa vegetação converte célula após célula
A minha única riqueza em lixo:
Tudo o que obtêm, obtêm-no por acaso.

E multiplicam-se na ignorância.


thom gunn
a destruição do nada e outros poemas
trad. maria de lurdes guimarães
relógio d´água
1993



19 janeiro 2017

sara f. costa / palco invisível



trago comigo as gigantes perguntas
que ardem no peso da fala.
de ti espero a noite corrompida,
a solidão contínua
que vai até aos prédios e retorna
mas acredito na tua companhia
como acredito na vaidade do sol
a vida ruge-me nos ombros
enquanto a vergonha respira
entre segredos.
onde estás e por onde andaste
são grutas miseráveis
que se erguem pela lógica
porque a tua presença não faz sentido
somos atores de um palco invisível
não te percas no retorno
porque a verdade é que nunca cá vieste.



sara f. costa
o movimento impróprio do mundo
âncora editora
2016


18 janeiro 2017

ángél gonzález / epílogo



Arrependo-me de tanta queixa inútil,
                                                              de tanta
lamentação impertinente.
São as regras do jogo inapeláveis
e justificam toda, qualquer perda.
Agora
só o inesperado ou o impossível
poderia fazer com que eu chorasse

uma ressurreição, nenhuma morte.



ángél gonzález
antologia da poesia espanhola contemporânea
selecção e tradução de josé bento
assírio & alvim
1985





17 janeiro 2017

jorge luís borges / a lua



                           Para Maria Kodama



Há tanta solidão naquele ouro.
Lua destas noites é igual
À do primeiro Adão. Os longos séculos
Da humana vigília cumularam-na
E antigo pranto. Olha-a. É o teu espelho.


jorge luís borges
obras completas 1975-1985 vol. III
a moeda de ferro  (1976)
trad. fernando pinto do amaral
editorial teorema
1998




16 janeiro 2017

vasco gato / um no outro



imensamente nos deitamos um no outro
e não mais nascemos para a mão escura
que tapa o sol e afoga a luz

estamos como se tudo estivesse connosco
e connosco estivessem os nomes que primeiro se deram
flor   rio   azul   estrela   terra



vasco gato
um mover de mão
assírio & alvim
2000




15 janeiro 2017

álvaro de campos / episódios



.... O tédio dos [radidiotas?] e dos [aerochatos?]
De todo o conseguimento quantitativo desta vida sem qualidade,
A náusea de ser contemporâneo de mim mesmo
E a ânsia de novo novo, de certo verdadeiro,
De fonte, de começo, de origem.
A pedra no anel errado no teu dedo
Como fulgura na minha memória,
Ó pobre esfinge da aristocracia burguesa conversada em viagem!
Que vagos amores escondias na tua elegância verdadeira
Tão falsos, pobre iludida lúcida,
Encontrada a bordo desse navio, como de todos os navios!
Tomavas cocaína por superioridade ensinada,
Rias dos velhos maçadores menos maçadores que tu,
Pobre criança órfã de mais que pai e mãe,
Pobre-diabo meio-flapper, tão [transtransviada?]!
E eu, o moderno que o não sou, eu que consinto
Nos arredores da minha sensibilidade as tendas dos ciganos,
De toda a modernidade papel-moeda;
Eu, incongruente e sem esperanças,
Passageiro como tu no navio, mas mais passageiro que tu,
Porque onde tu és certa eu sou incerto,
Onde tu sabes o que és eu não sei o que sou e sei que não sabes o que és,
E entre as danças tocadas ad nauseam pela banda de bordo
Debruço-me sobre o mar nocturno e tenho saudades de mim.
Que fiz eu da vida?
Que fiz eu do que queria fazer da vida?
Que fiz do que podia ter feito da vida?
Serei eu como tu, ó viajante do Anel Anafrodisíaco?
Olho-te sem te distinguir da matéria amorfa das coisas
E rio no fundo do meu pensamento oceânico e vazio.
No quintal da minha casa provinciana e pequena —
Casa como a que têm milhões não como eu no mundo —
Deve haver paz a esta hora, sem mim.
Mas em mim é que nunca haverá paz,
Nem com que se faça a paz,
Nem com que se imagine a paz...
Porque então sorrio eu de ti, viajante superfina?
Ó pobre água-de-Colónia da melhor qualidade,
Ó perfume moderno do melhor gosto, em frasco de feitio,
Meu pobre amor que não amo caricatural e bonita!
Que texto para um sermão o que não és!
Que poemas não faria um poeta verdadeiro sem pensar em ti!
Mas a banda de bordo estruge e acaba...
E o ritmo do mar homérico trepa por cima do meu cérebro —
Do velho mar homérico, ó selvagem deste cérebro grego,
Com penas na cabeça da alma,
Com argolas no nariz da sensualidade,
E com consciência de meio-manequim de ter aspecto no mundo.
Mas o facto é que a banda de bordo cessa,
E eu verifico
Que pensei em ti enquanto durou a banda de bordo.
No fundo somos todos
Românticos,
Vergonhosamente românticos
E o mar continua, agitado e calmo,
Servo sempre da atenção severa da lua,
Como, aliás, o sorriso com que me interrogo
E olho para o céu sem metafísica e sem ti... Dor de corno...
s.d.


álvaro de campos
livro de versos
fernando pessoa
estampa
1993


14 janeiro 2017

frank o´ hara / cambridge



Ainda chove e o fruto amarelo-verde do algodão
no peitoril parece tonto dando no inverno troncos
com apenas três folhas pardacentas. A chapa de aquecimento funciona,
é o único calor na terra, e café instantâneo. Eu
visto as minhas calças de veludo quentes, uma camisola grossa castanha
e envolvo-me no meu velho roupão castanho. Como Pasternak
em Marburg (dizem que a Itália e a França são mais frias,
mas estou certo que a Alemanha é tão fria como isto) e,
faltando-me a inspiração do Mestre, posso morrer gelado
antes de conseguir sair para a chuva branca. Poderia ter deixado
a janela fechada durante a noite? Mas é de onde a saúde
vem! A sua respiração desde os Urais, incendiando-me
como um cigarro esquecido. Arde! isto não é negligível,
sendo poético, não sendo frágil, pois que é patrocinado pelo
maior poeta Russo vivo com um custo incalculável.
Do outro lado da rua há uma casa em construção,
abandonada à chuva. Secretamente, irei trabalhar nela.


frank o'hara
vinte e cinco poemas à hora do almoço
trad. josé alberto de oliveira
assírio & alvim
1995



13 janeiro 2017

bertolt brecht / citação


Assim falou o poeta Kin:
Como escrever obras imortais, se não sou célebre?
Como responder, se ninguém me interroga?
Por que perder tempo com versos que o tempo perde?
Escrevo as minhas propostas em forma duradoura
Com medo que muito tempo corra sem que elas se cumpram.
Para atingir o que é grande há que passar por grandes
                                                                    transformações.
E as pequenas transformações são inimigas das grandes
                                                                        transformações.
Tenho inimigos. Logo devo ser célebre.



bertolt brecht
poemas
selecção e trad. de arnaldo saraiva
presença
1976



12 janeiro 2017

yorgos seferis / andrómeda



XX
No meu peito a ferida abre de novo
quando as estrelas baixam e ficam parentes do meu
          corpo
quando cai o silêncio debaixo dos pés dos homens.

Estas pedras que soçobram dentro do tempo até
          onde vão arrastar-me?
O mar o mar quem poderá esgotá-lo?
Vejo as mãos acenarem todas as madrugadas ao abutre e
          ao falcão
atada ao rochedo que pela dor se tornou meu,
vejo as árvores que respiram a serenidade negra
          dos mortos
e de seguida os sorrisos, que não avançam, das estátuas.


yorgos seferis
romance
poemas escolhidos
trad. de joaquim manuel magalhães e nikos pratisinis
relógio d´água
1993





11 janeiro 2017

al berto / mar



Nunca conseguiu viver longe do mar.

A sua adolescência ficara cheia de dunas e de camarinhas, de falésias e águias,
de tempestades, de nomes de barcos e de peixes;
de aves e de luz coalhada à roda duma ilha.

Conhecera a ansiedade daqueles que, ao entardecer, olham meio cegos
a vastidão incendiada do oceano - e ninguém sabe se esperam alguma coisa,
alguma revelação, ou se estão ali sentados, apenas, para morrer.

Aprendera, também, que o mar, aquele mar - tarde ou cedo - só existiria dentro de si:
como uma dor afiada, como um vestígio qualquer a que nos agarramos
para suportar a melancólica travessia do mundo.

Depois, partiu para longe. E durante anos recordou, em sonhos,
o mar avistado pela última vez ao fundo das ruas. Procurou-o sempre
por onde andou, obsessivamente - mas nunca chegou a encontrá-lo.


Certa noite de bruma fria, em Antuérpia, no "Zanzi-Bar", julgou ouvir o mar
que perdera na voz dum jovem marinheiro grego. Mas não,
o marulho que aquela voz derramava, junto à sua orelha,
era de outro mar - fechado, calmo - propício aos amores inquietos
e à lassidão embriagante do sol e do vinho.

Anos mais tarde, em Delos, haveria de reconhecer a voz do marinheiro
no rebentar das ondas, em redor da ilha, como um eco:
"onde te vi despir regresso agora / para adormecer ou chorar"
e a noite caiu subitamente sobre ele, sobre a ilha e sobre o sonolento
coração das leoas em pedra.

Uma outra vez, perto de Gibraltar, uma mulher idosa quis ler-lhe
as linhas emaranhadas da mão. Já não se lembra o que lhe contou a mulher,
 acerca da vida e dos rumos da paixão. Recorda somente
o que ela lhe disse ao separarem-se:

- Tens nos olhos a cor triste do mar que perdeste.

E passou bastante tempo antes que o homem voltasse ao seu país.
Quando o fez, foi ao encontro do mar. Largou a cidade e os amigos,
a casa, o conforto, a noite, o trabalho e tudo o mais. Viajou em direcção ao sul,
com a certeza de que jamais encontraria o mar perdido,
em lugar incerto, a meio da sua vida.

Sabia agora que nenhum mar existia fora do seu corpo,
e que tinha sido na perda irremediável de um mar que adquirira um outro onde,
por noites de inquietante insónia, podia encontrar-se consigo mesmo
e envelhecer sem sobressaltos; afastado da vã alegria dos homens
e da pobreza do mundo.

Ao chegar junto do mar sentou-se no cimo da duna, como dantes, e esperou.
Esperou que o mar guardado no fundo de si transbordasse,
e fosse ao encontro daquele que perdera e se espraiava agora à sua frente.


Ainda hoje permanece sentado, no mesmo lugar - esperando
o instante em que os dois mares se dissiparão um no outro, para sempre.

Está cansado da guerra com as palavras e do veneno dos homens,
tem os olhos queimados pelo sal. Os dedos adquiriram a rugosidade da areia
e dos rochedos; da sua boca solta-se um marulhar surdo, muito antigo,
que os dias e a solidão arrastam devagar para a luminosa euforia das águas.


al berto
o anjo mudo
assírio & alvim
2000





10 janeiro 2017

carlos de oliveira / livre






Não há machado que corte
a raiz ao pensamento
não há morte para o vento
não há morte

Se ao morrer o coração
morresse a luz que lhe é querida
sem razão seria a vida
sem razão

Nada apaga a luz que vive
num amor num pensamento
porque é livre como o vento
porque é livre


manuel freire / carlos oliveira

1969




09 janeiro 2017

antónio franco alexandre / fosses tu deus



Fosses tu deus, seria eu santo
alimentado a areia e gafanhotos,
sem cessar meditando o único nome
que o horizonte deserto não contém.
Sonho que acordo dentro do meu sonho
para o saber mais certo e mais real;
como o místico leio nas entranhas
da ausência a tua sombra desenhada.
E no entanto és gente, sangue e terra,
corpo vulgar crescendo para a morte;
incerto no que fazes, no que sentes,
e cioso do tempo que me dás.
Porque sei que me esqueces é que lembro
Cada instante o que perco e não vem mais.



antónio franco alexandre
poemas
assírio & alvim
1996