IV
Um rasgão de luz sobre a pele, dormes na seiva doce das manhãs.
Mas sabes que só há repouso para o sofrimento
quando se entra no primeiro dia dos dias sem ninguém.
A dor, a perna amputada - a mapa da abissínia.
O sol enterra-se nas areias.
Viajo, sem me mexer desta enxerga branca.
Tento encontrar espaço para a lucidez do meu silêncio.
No lugar do poema coalha o ouro das geadas, e os animais
são formas etéreas que se me colam ao rosto.
O que morrer, quase não faz falta...
Dantes ouvia o mar... bastava encostar a cabeça ao peito um do outro.
Mas um homem em cujo coração esteja concentrada
toda a fúria de viver, será um homem feliz?
Não sei se posso querer alguma eternidade... não sei...
... o que vejo já não se pode cantar.
Que horas serão dentro do meu corpo?
Que mineral vermelho jorraria se golpeasse uma veia... não sei...
... o que vejo já não se pode cantar.
Lembro-me duma cabeça rebelde flutuando junto à janela.
Mas a casa está repleta de gemidos, vai amanhecer,
não me lembro de mais nada.
Recomeço a fuga, a última, e nela hei-de morrer de olhos abertos,
atento ao mínimo rumor, ao mais pequeno gesto -
atento à metamorfose do corpo que sempre recusou o aborrecimento.
O que vejo já não se pode cantar.
Caminho com os braços levantados, e com a ponta dos dedos
acendo o firmamento da alma.
Espero que o vento passe... escuro, lento -
então, entrarei nele, cintilante, leve... e desapareço.
al berto
filhos de rimbaud
revista ler
abril de 1997