06 maio 2016

antónio pedro / maresia



Neste mar à minha frente
O sol repousa e os nossos olhos dormem…

– Caem saudades mortas como chuva miúda,
Ou sobem, trémulas, como o vapor das algas,
Ou ficam, extáticas como um bafo de areia,
Calmas, sobre a paisagem,
Como um véu de cambraia deixado…

Não sei se é o calor das algas,
Se é o bafo da areia que baila,
Ou se é a chuva miúda que cai neste dia de sol
Como um véu de cambraia deixado,

Sei que me lembram os signos do zodíaco
Em boa caligrafia,
Uns signos como nem sequer eu tinha imaginado!…

E este calor que dimana da terra e nos confunde com ela,
Nos aquece as pernas de encontro à areia, numa vida exterior
Com mais sangue que a nossa e, sobretudo, cheia
Duma inconsciência que não se parece com nada,
Esta respiração pausada como as ondas, de trás para diante
Fazendo, lentas, e desfazendo
A mesma curva humaníssima e sensível,
Faz-me escrever, devagar, e com letra de menino pequeno
Sobre o chão acamado, esta palavra

AMOR.


antónio pedro
a rosa do mundo 2001 poemas para o futuro
assírio & alvim
2001



05 maio 2016

fernando lemos / insónia



                                  à Manuela Pilar


O raio fulminou-me os berlindes
        agora invejo os olhos dos mortos
espreitando no telhado da missa
o caminho que seguem os porcos

Risco no céu com uma vara
nomes iguais a qualquer cão
Para a verdura dos séculos fica
uma mensagem de indignação

Os vivos têm berlindes
mas não os querem usar
Bolsos cheios
fatos de cerimónia pretos
nos seios rectos da criada de mamar

Na virgindade de que são feitas as gerações
a par das locomotivas quero
quebrar meus nervos na ânsia que me faz correr
vinagre nas feridas

Hei-de criar uma nova forma de cansaço
gemer a sorrir de medo
no arame que assobia
dançando larguras no espaço

Sabe bem ouvir o silêncio
e a morrer nele a cada instante
ficar na argola de guardanapo
guardado inconstante

Se quisesse que a alegria me desse
um modo simples de ser
não te ouviria no pêndulo que vem
às duas três horas bater

O pêndulo que acelera
vai e traz a tua voz
e morder me desespera
morder a imagem de nós

E acredito que amanhã
torne a ouvir mesmo os ruídos
entalado pelo sol pela noite
com casacos de ratos aos gritos




fernando lemos
teclado universal
cadernos de poesia
campo das letras
2004




04 maio 2016

saint-john perse / anabase



I

     Estabelecendo-me com honra sobre três grandes estações, auguro bem do solo onde fundei minha lei.
     As armas na manhã são belas e o mar. e o sol não é sequer nomeado, mas o seu poder está entre nós
     e o mar na manhã como uma conjectura do espírito.

     Poder, tu cantavas nas nossas estradas nocturnas!... Nos idos puros da manhã que sabemos nós do sonho, nossa procedência?
     Por mais um ano entre vós! Senhor do grão, senhor do sal, e a coisa pública sobre justas balanças!
     Nunca chamarei por gentes doutra margem. Não traçarei nunca grandes
     bairros urbanos pelas encostas com o açúcar dos corais. Mas tenciono viver entre vós
     No limiar das tendas inteira glória! a minha força entre vós! e a ideia pura como um sal faz-se pública em pleno dia.

*

     … Pois eu frequentava a cidade dos vossos sonhos e decidia nos mercados desertos este puro comércio da minha alma, entre vós
     invisível e constante como lume de espinhos em pleno vento.
     Poder, tu cantavas nas nossas esplêndidas estradas!... «No deleite do sal estão as lanças do espírito… Com sal avivarei as bocas mortas de desejo!
     «Quem não louvou a sede bebendo por um casco a água das areias,
     «pouco crédito me merece no comércio da alma…» (E o sol não é sequer nomeado mas o seu poder está entre nós.)

     Homens, gente de poeira e de qualquer figura, gente de negócio e de lazer, gente vizinha e gente distante, ó gente de pouco peso na memória destes lugares; gente dos vales e dos planaltos e dos mais altos declives deste mundo ao expirar de nossas margens; farejam indícios, sementes e confessam desalentos a oeste; seguem pistas, estações, erguem tendas no vento leve da aurora; ó prospectores de pontos d´água na crosta do mundo; ó prospectores, ó inventores de razões para partir,
     não traficais um sal mais forte quando, pela manhã, num presságio de reinos e de águas mortas suspensas do alto sobre as brumas do mundo, os tambores do exílio despertam pelas fronteiras
     a eternidade que boceja sobre as areias.

*

     … De manto puro entre vós. por mais um ano ainda entre vós. «Por sobre os mares a minha glória; entre vós a minha força!
     Aos nossos destinos prometido este alento doutras margens e, levando mais longe as sementes do tempo, o clamor dum século sobre o seu cume no fiel das balanças…»
     Matemáticas suspensas nos bancos gelados do sal! No ponto sensível do um rosto onde o poema se estabelece, inscrevo este canto de todo um povo, o mais ébrio,
     tirando aos nossos estaleiros quilhas mortais!


saint-john perse
anabase
trad. josé daniel ribeiro
relógio d´água
1992




03 maio 2016

maria gabriela llansol / interiormente, o segredo traria uma grande claridade


145

Interiormente, o segredo traria uma grande claridade,
Se pudesse. Só por fora sendo obscuro, o seu escuro
Sem efeitos não transparece. A criança que ainda
Subsistia no construtor de calendários, por pirrice,
Não quis meditar sobre as consequências. O tempo,
Não. Mesmo que fosse o inverso nada se alteraria.
De qualquer modo, empurrando seus carrinhos de brincar,
Entraram em colisão. Não creio que seu problema fosse
De sensualidade. A dar uma opinião, diria que era mais
Uma das muitas sequelas do caminho, como outra
Qualquer fase de caminho que se visse, ao longe.
Do terreiro da contemplação.



maria gabriela llansol
o começo de um livro é precioso
assírio & alvim
2003



02 maio 2016

charles bukowski / rapariga nas escadas rolantes



quando vou a entrar nas escadas rolantes
um jovem rapaz e uma adorável rapariga
posicionam-se à minha frente.
o vestido dela é bem justo ao corpo e
ao colocar um pé à frente e outro atrás, sobre as escadas
o traseiro dela assume os seus contornos
o rapaz olha para todo o lado, claramente inquieto.

ele olha para mim.
eu olho para outro lado qualquer.

não, rapaz, eu não estou a olhar
não estou a olhar para o traseiro da tua miúda.
não te preocupes, eu respeito-a a ela e respeito-te a ti.
na verdade, eu respeito tudo; as flores que crescem,
as jovens mulheres, as crianças, todos os animais,
o nosso precioso e complicado universo, tudo e todos.

o jovem sossega e eu fico contente por ele.
sei o seu problema: a miúda tem uma mãe e um pai e talvez um irmão
e sem dúvida uns quantos familiares e ela gosta de
dançar e flirtar e de ir ao cinema e por vezes ela mastiga
pastilha elástica e fala ao mesmo tempo e ela diverte-se com
programas de televisão completamente parvos e ela pensa
que é uma actriz e ela nem sempre está nos seus melhores dias
e ela tem um temperamento terrível e às vezes ela quase
fica doida e ela fala horas e horas ao telefone e ela quer ir
para a europa no verão e ela quer ter um mercedes
e ela está apaixonada pelo Mel Gibson.
e a mãe dela é uma cabra de uma bêbada e o pai
secretamente odeia pretos vermelhos e amarelos
e ela ressona e ela é muitas vezes fria na cama e ela
tem um guru, um tipo que conheceu cristo no deserto em 1998
e ela quer fazer skydive e ela está desempregada e ela
fica com dores de cabeça sempre que ingere açúcar ou queijo.

no cimo das escadas rolantes, vejo o rapaz a pôr
a sua protectora mão na anca dela
pensando que é um felizardo
pensando que é um "macho"
pensando que mais ninguém no mundo tem aquilo que ele tem.
e ele está certo, terrivelmente terrivelmente certo,
com o braço em volta daquele emplastro morno
de intestinos
bexiga,
rins,
pulmões,
sal,
enxofre,
dióxido de carbono
e
catarro.

lotsa
luck



charles bukowski
tradução de júlio mota



01 maio 2016

sophia de mello breyner andresen / primavera



Primavera que Maio viu passar
Num bosque de bailados e segredos
Embalando no anseio dos teus dedos
Aquela misteriosa maravilha
Que à transparência das paisagens brilha.


sophia de mello breyner andresen
obra poética I
poesia I
caminho
1999



30 abril 2016

josep maria llompart / caminho da fonte



            homenagem a Pero Meogo



Sedentos veados
pelo pinheiral,
no bebedouro abriam-se
os montanhosos cumes.
Veados que bebiam
com focinhos trémulos.
A amiga chegava
buscando o amado:
pérolas orvalhavam
faces de coral.
Veados afastavam-se
no entardecer suave,
a água sussurrava
na sua solidão.



josep maria llompart
(palma de mallorca, 1925)
quinze poetas catalães
trad. egito gonçalves
ed. limiar, porto
1994



29 abril 2016

antónio ramos rosa / a paixão do ar



Olhar sem caminho em cheio
a tranquila onda muscular
paralela à mão aberta e livre

Uma escrita a nascer dos alvos flancos
a paixão do ar como uma chama

Paixão que une a terra cheia ao mar
o olhar respira em todo o corpo igual
o corpo eleva-se sobre a montanha fácil

O fogo flexível.


antónio ramos rosa
matéria de amor
editorial presença
1985



28 abril 2016

eugénio de andrade / matinal



Que seja fogo e suba ao cume
das águas seminais e duras,
e cante, invada, inunde
 – juventude, juventude!



eugénio de andrade
poemas
edit. inova
1971



27 abril 2016

luiza neto jorge / sítio lido



          I

          Um livro crepita
          um gémeo pendura-se
          no seu fogo

          (aparato lírico do fogo
          queimando o labirinto)


II

Escorregam as linhas descendentes
de um poeta.

E as chuvas caminham noutra direcção
para uma página menos escrita.


III

Compare-se o que se diz
com o silêncio que circunda a boca
de um ser desconhecido.

Flecha primeira a chegar
aos confins da terra.

Um dispositivo de silêncio
nos pontos cardiais
desta página
instaura a maravilha
por alguns séculos


IV

Estremeço
No coração.
As letras vêm de lá
e da mão.

Padeço:
o eco — perco-o —
sai da garganta
e da distância.

Palavra é o que lembo
ou o que meço?

          
V

Este é o tempo todo que me falta
e nem é muito nem pouco.

De mim direi o que deixarem
as falas que flutuam entre mim.

Palavras não se repetem
nem o verso sai do sítio em si

Repousa muito aí, até esquecer.

A morada é nesta confluência
do que digo e aquilo que farei

depois e antes de não saber
falar


luiza  neto jorge
os sítios sitiados
poesia
assírio & alvim
1993



26 abril 2016

alexandre o'neill / canção



Que saia a última estrela
da avareza da noite
e a esperança venha arder
venha arder em nosso peito

E saiam também os rios
da paciência da terra
É no mar que a aventura
tem as margens que merece

E saiam todos os sóis
que apodreceram no céu
dos que não quiseram ver
– mas que saiam de joelhos

E das mãos que saiam gestos
de pura transformação
Entre o real e o sonho
seremos nós a vertigem



alexandre o´neill
tempo de fantasmas 1951
poesias completas
assírio&alvim
2000




25 abril 2016

herberto helder / lugar lugares

Era uma vez um pequeno inferno e um pequeno paraíso, e as pessoas andavam de um lado para outro, e encontravam-nos, a eles, ao inferno a ao paraíso, e tomavam-nos como seus, e eles eram seus de verdade. As pessoas eram pequenas, mas faziam muito ruído. E diziam: é o meu inferno, é o meu paraíso. E não devemos malquerer às mitologias assim, porque são das pessoas, e neste assunto de pessoas, amá-las é que é bom. E então a gente ama as mitologias delas. À parte isso o lugar era execrável. As pessoas chiavam como ratos, e pegavam nas coisas e largavam-nas, e pegavam umas nas outras e largavam-se. Diziam: boa tarde, boa noite. E agarravam-se, e iam para a cama umas com as outras, e acordavam. Às vezes acordavam no meio da noite e agarravam-se freneticamente. Tenho medo - diziam. E depois amavam-se depressa, e lavavam-se, e diziam: boa noite, boa noite. Isto era uma parte da vida delas, e era uma das regiões (comovedoras) da sua humanidade, e o que é humano é terrível e possui uma espécie de palpitante e ambígua beleza. E então a gente ama isto, porque a gente é humana, e amar é bom, e compreender, claro, etc. E no tal lugar, de manhã, as pessoas acordavam. Bom dia, bom dia. E desatavam a correr. É o meu inferno, o meu paraíso, vai ser bom, vai ser horrível, está a crescer, faz-se homem. E a gente então comove-se, e apoia, e ama. Está mais gordo, mais magro. E o lugar começa a ser cada vez mais um lugar, com as casas de várias cores, as árvores, e as leis, e a política. Porque é preciso mudar o inferno, cheira mal, cortaram a água, as pessoas ganham pouco – e  que fizeram da dignidade humana? As reivindicações são legítimas. Não queremos este inferno. Dêem-nos um pequeno paraíso humano. Bom dia, como está? Mal, obrigado. Pois eu ontem estive a falar com ela, e ela disse: sou uma mulher honesta. E eu então fui para o emprego e trabalhei, e agora tenho algum dinheiro, e vou alugar uma casa decente, e nosso filho há-de ser alguém na vida. E então a gente ama, porque isto é a verdadeira vida, palpita bestialmente ali, isto é que é a realidade, e todos juntos, e abaixo a exploração do homem pelo homem. E era intolerável. Ouvimos dizer que numa delas, o pequeno inferno começou a aumentar por dentro, e ela pôs-se silenciosa e passava os dias a olhar para as flores, até que elas secavam, e ficava somente a jarra com os caules secos e água podre. Mas o silêncio tornava-se tão impenetrável que os gritos dos outros, e a solícita ternura, e a piedade em pânico – batiam ali e resvalavam. E então a beleza florescia naquele rosto, uma beleza fria e quieta, e o rosto tinha uma luz especial que vinha de dentro como a luz do deserto, e aquilo não era humano - diziam as pessoas. Temos medo - pensavam. E o ruído delas caminhava para trás, e as casas amorteciam-se ao pé dos jardins, mas é preciso continuar a viver. E havia o progresso. Eu tenho aqui, meus senhores, uma revolução. Desejam examinar? Por este lado, se fazem favor. Aí à direita. Muito bem. Não é uma boa revolução? Bem, compreende... claro, é uma belíssima revolução. E é barata? Uma revolução barata?! Não, senhores, esta é uma verdadeira revolução. Algumas vidas, alguns sacrifícios, alguns anos, algumas. É um bocado cara. Mas de boa qualidade, isso. E o rosto que se perdera, que possivelmente caíra do corpo e rolara debaixo das mesas, o rosto? Lembras-te? Como foi que ficou assim? Não sei: tinha uma luz. Sim, lembro-me: parecia uma flor que apodrecesse friamente. Era terrível. Boa noite. E ela trazia um vestido de seda branca, e nesse dia fazia dezoito anos, e estava queimada pelo sol, e era do signo da balança, e tomou os comprimidos todos, e acabou-se. Não compreendo. E julgas tu que eu compreendo? Quem pode compreender? Ela era a própria força, aquela irradiante virtude da alegria, aquele fulgor radical..., compreendes? Sim, sim. Tinha um vestido de seda, e era nova, e então acabou-se. Para diante, para diante. Não se deve parar. Enforquem-nos, a esses malditos banqueiros. Este vai ter trinta e cinco andares, será o mais alto da cidade. Por pouco tempo, julgo eu. Como? Sim, vão construir um com trinta e seis, ali à frente. Remodelemos o ensino. Cantemos aquela canção que fala da flor da tília. Bebamos um pouco. E outro, o que viu Deus quando ia para o emprego?! Isto, imagine, às 8 h. e 45 m. de uma tranquila manhã de Março. Uma partida de Deus? Boa piada. Não amará Deus essas maliciosas surpresas? Um pequeno Deus folgazão?! Ele ficou doido. Começou a gritar e a fugir. Que Deus vinha atrás dele. E depois? Bem, lá construíram o prédio com trinta e seis andares, e o outro ficou em segundo lugar. Isto é o trabalho do homem: pedra sobre pedra. É belo. Vamos amar isto? Vamos, é humano, é do homem. E então as crianças cresceram todas e andavam de um lado para o outro, e iam fazendo pela vida – como elas próprias diziam. E então as condições sociais? Sim, melhoraram bastante. Mas uma delas começou a beber,  e depois a coração estoirou, e ficou apenas para os outros uma memória incómoda. Parece que sim, que tinha demasiada imaginação, e levaram-na ao médico, e ele disse: aguente-se, e ela não se aguentou. Era uma criança. Não, não, nessa altura já tinha crescido, bebia pelo menos um litro de brandy por dia. Nada mau, para uma antiga criança. A verdade é que era uma criança, e não se aguentou quando o médico disse: aguente-se. E as ruas são tão tristes. Precisam de mais luz. Mas nesta, por exemplo, já puseram mais luz, e mesmo assim é triste. É até mais tristes que as outras. Estou tão triste. Vamos para férias, para o pequeno paraíso. Contaram-me que ele tinha uma alegria tão grande que não podia aguentar um copo na mão: quebrava-o com a força dos dedos, com a grande força da sua alegria. Era uma criatura excepcional. Depois foi-se embora, e até já desconfiavam dele, e embarcou, e talvez não houvesse lugar na terra para ele. E onde está? Mas era uma alegria bárbara, uma vocação terrível. Partiu. E agora chove, e vamos para casa, e tomamos chá, e comemos aqueles bolos de que tu gostas tanto. E depois? Ele era belo e tremendo, com aquela sua alegria, e não tinha medo, e só a vibração interior da sua alegria fazia com que os copos se quebrassem entre os dedos. Foi-se embora.


herberto helder
os passos em volta
assírio & alvim
1980



25 de abril sempre, fascismo nunca mais!