03 dezembro 2015

franco loi / mariuccia


Mariuccia,
as primeiras maminhas da minha vida,
sorriso maroto entre as grades da varanda,
tu, de ébano,
olhos de fuinha , a rapariga de sempre,
que sob as franjas da tolha verde, a ternura,
ali, debaixo de uma mesa, como gatos abraçados,
entre os sapatos das mães e das velhas bichanando,
ali, como uma flor em botão que me beijasse,
me oferecia, qual violeta, o belo veludo da sua graça,
a mim, o seu miúdo, que arrastava
com a mãozinha magra para o sótão,
e a voz que nos chamava para o anoitecer...
oh, as tardes da rua Cardano,
pátios de neblina,
sopros de bruma que vêm dos canais,
o Ernesto que aos sessenta já chorava pela mãe,
para ela que com a escova lhe fustigava a cara,
ele, sapateiro, embebedava-se com o homem das bicicletas,
e ela, velha, paralítica rameira,
grita: de joelhos!
de joelhos, seu malandro!
não te faças de novas, não mereces o pão!
e em baixo, das retretes, os resmungões sibilavam:
sacana do Ernesto, como um cacho!
e nós que com os garotos vozeávamos:
o Gigi! o Gigi!
passarinhávamos céleres,
e era o vendedor de castanhada que chamava do carrinho
por mim e pela Mariuccia, e pelos mundos secretos.



franco loi
memória
colecção poetas em mateus
trad. rosa alice branco
quetzal
1993



02 dezembro 2015

manuel gusmão / estudar o sol



estudar o sol
para conhecer o olhar;

que a rosa se desencadeie:

dividindo-os
sobre a mesa
operatória
do vasto mundo
em trânsito; voo
amoroso
para ti



manuel gusmão
dois sóis, a rosa
a arquitectura do mundo
caminho
1990



01 dezembro 2015

josé tolentino mendonça / os girassóis



Às vezes ouves-me chorar
não é fácil deixar a tua mão
De quarto em quarto
quem espera
o terror de não haver ninguém
As paisagens alteram-se sem resolução
narrativas imortais desaparecem
e os girassóis assim
vulneráveis a desconhecidas ordens

Tu estás tão perto
mas sofro tanto
porque não vejo
como possa falar de ti
entre dois ou três séculos



josé tolentino mendonça
de igual para igual
assírio & alvim
2001



30 novembro 2015

bernardo soares / irrita-me a felicidade de todos estes homens




Irrita-me a felicidade de todos estes homens que não sabem que são infelizes. A sua vida humana é cheia de tudo quanto constituiria uma série de angústias para uma sensibilidade verdadeira. Mas, como a sua verdadeira vida é vegetativa, o que sofrem passa por eles sem lhes tocar na alma, e vivem uma vida que se pode comparar somente a de um homem com dor de dentes que houvesse recebido uma fortuna — a fortuna autêntica de estar vivendo sem dar por isso, o maior dom que os deuses concedem, porque é o dom de lhes ser semelhante, superior como eles (ainda que de outro modo) à alegria e à dor.

Por isto, contudo, os amo a todos. Meus queridos vegetais!


fernando pessoa
livro do desassossego
por bernardo soares


29 novembro 2015

mircea dinescu / o morto hipócrita



Que fazes tu, literatura?
Perturbas alguns jovens ridículos da província
colocas o comerciante de papel
à mesa daquele com a barriga cheia de letras,
pões piolhos de ouro na cabeleira do boémio
e medalha no casaco do académico,
mas não podes adoçar a água do afogado
nem derreter a neve do leproso
nem engordar a sexta-feira do pobre.
Quando chegam os fiscais do Senhor
com a traquitana para medir o remorso
tu com os pombos
tu com as rolas
tu com os passarinhos
sobes à torre da Câmara
e deitas
um punhado de milho no caminho dos anjos apocalípticos
e não vês como o criminoso
faz cócegas à vítima no pátio
e o morto infame a servi-lo e a rir
como ri o morto cúmplice
o morto em vão
o morto hipócrita destas terras.


mircea dinescu
1950
roménia
poemas      
tradução de rosa alice branco



28 novembro 2015

vergílio ferreira / quase toda a gente gosta de saber o seu futuro


226 – Quase toda a gente gosta de saber o seu futuro e paga para isso a astrólogos ou às bruxas. Mas só na ideia de que esse futuro seja bom. E é o que eles lhes dizem para não fecharem a porta. Mas o negócio continuaria, ainda que te dissessem que morrerias no dia seguinte. Porque a morte é a única certeza em que não se acredita. Se fores condenado à forca e tiveres já a corda ao pescoço, o minuto que faltava seria ainda de vida, ou seja de eternidade.


vergílio ferreira
escrever
edição de helder godinho
bertrand editora
2001



27 novembro 2015

maria gabriela llansol / a véspera é um dia de grande potência cognitiva


55

A véspera é um dia de grande potência cognitiva,
Uma potência cognitiva revestida de forte
Sensibilidade sem emoção. Ver o que ainda se
Não conhece é uma rara particularidade
___________ que, por vezes, arrasa.
Quando olhou o vidro,
O vidro estava ao espelho _____ é a véspera.


maria gabriela llansol
o começo de um livro é precioso
assírio & alvim
2003



26 novembro 2015

herberto helder / lugar II




Há sempre uma noite terrível para quem se despede
do esquecimento. Para quem sai,
ainda louco de sono, do meio
do silêncio. Uma noite
ingénua para quem canta.
Deslocada e abandonada noite onde o fogo se instalou
que varre as pedras da cabeça.
Que mexe na língua a cinza desprendida.



E alguém me pede: canta.
Alguém diz, tocando-me com seu livre delírio:
canta até te mudares em cão azul,
ou estrela electrocutada, ou em homem
nocturno. Eu penso
também que cantaria para além das portas até
raízes de chuva onde peixes
cor de vinho se alimentam
de raios, seixos límpidos.
Até à manhã orçando
pedúnculos e gotas ou teias que balançam
contra o hálito.
Até à noite que retumba sobre as pedreiras.
Canta - dizem em mim - até ficares
como um dia órfão contornado
por todos os estremecimentos.
E eu cantarei transformando-me em campo
de cinza transtornada.
Em dedicatória sangrenta.



Há em cada instante uma noite sacrificada
ao pavor e à alegria.
Embatente com suas morosas trevas.
Desde o princípio, uma onde que se abre
no corpo, degraus e degraus de uma onda.
E alaga as mãos que brilham e brilham.
Digo que amaria o interior da minha canção,
seus tubos de som quente e soturno.
Há uma roda de dedos no ar.
A língua flamejante.
Noite, uma inextinguível
inexprimível
noite. Uma noite máxima pelo pensamento.
Pela voz entre as águas tão verdes do sono.
Antiguidade que se transfigura, ladeada
por gestos ocupados no lume.


Pedem tanto a quem ama: pedem
o amor. Ainda pedem
a solidão e a loucura.
Dizem: dá-nos a tua canção que sai da sombra fria.
E eles querem dizer: tu darás a tua existência
ardida, a pura mortalidade.
Às mulheres amadas darei as pedras voantes,
uma a uma, os pára-
-raios abertíssimos da voz.
As raízes afogadas do nascimento. Darei o sono
onde um copo fala
fusiforme
batido pelos dedos. Pedem tudo aquilo em que respiro.
Dá-nos tua ardente e sombria transformação.
E eu darei cada uma das minhas semanas transparentes,
lentamente uma sobre a outra.
Quando se esclarecem as portas que rodam
para o lugar da noite tremendamente
clara. Noite de uma voz
humana. De uma acumulação
atrasada e sufocante.
Há sempre sempre uma ilusão abismada
numa noite, numa vida. Uma ilusão sobre o sono debaixo
do cruzamento do fogo.
Prodígio para as vozes de uma vida repentina.



E se aquele que ama dorme, as mulheres que ele ama
sentam-se e dizem:
ama-nos. E ele ama-as.
Desaperta uma veia, começa a delirar, vê
dentro de água os grandes pássaros e o céu habitado
pela vida quimérica das pedras.
Vê que os jasmins gritam nos galhos das chamas.
Ele arranca os dedos armados pelo fogo
e oferece-os à noite fabulosa.
Ilumina de tantos dedos
a cândida variedade das mulheres amadas.
E se ele acorda, então dizem-lhe
que durma e sonhe.
E ele morre e passa de um dia para outro.
Inspira os dias, leva os dias
para o meio da eternidade, e Deus ajuda
a amarga beleza desses dias.
Até que Deus é destruído pelo extremo exercício
da beleza.



Porque não haverá paz para aquele que ama.
Seu ofício é incendiar povoações, roubar
e matar,
e alegrar o mundo, e aterrorizar,
e queimar os lugares reticentes deste mundo.
Deve apagar todas as luzes da terra e, no meio
da noite aparecente,
votar a vida à interna fonte dos povos.
Deve instaurar o corpo e subi-lo,
lanço a lanço,
cantando leve e profundo.
Com as feridas.
Com todas as flores hipnotizadas.
Deve ser aéreo e implacável.
Sobre o sono envolvida pelas gotas
abaladas, no meio de espinhos, arrastando as primitivas
pedras. Sobre o interior

da respiração com sua massa
de apagadas estrelas. Noite alargada
e terrível terrível noite para uma voz
se libertar. Para uma voz dura,
uma voz somente. Uma vida expansiva e refluída.


Se pedem: canta, ele deve transformar-se no som.
E se as mulheres colocam os dedos sobre
a sua boca e dizem que seja como um violino penetrante,
ele não deve ser como o maior violino.
Ele será o único único violino
Porque nele começará a música dos violinos gerais
e acabará a inovação cantada.
Porque aquele que ama nasce e morre.
Vive nele o fim espalhado da terra.




herberto helder
lugar, poema II
poesia toda
assírio & alvim
1996




25 novembro 2015

eugéne guillevic / variações sobre um dia de verão


Acariciar o verão
saber dele

O peso da alegria
Que suporta a mão.

     *

Caminhar na luz
Quase como se
Estivesses em casa.

     *

Ela vem de longe
Esta bebedeira

Que tem por dever
Abrir as fronteiras


eugéne guillevic
a rosa do mundo 2001 poemas para o futuro
tradução de eugénio de andrade
assírio & alvim
2001



24 novembro 2015

joão rebocho / escrevo


escrevo
obrigado a fazê-lo
o tempo as religiões todas
em dívida sujeito
exposto
grato vencido
com violência
dominado
todos os dias
as mãos
atadas cordas
submisso silêncio

frio sem laços afectos
viver sozinho
anos de séculos
feito homem
à imagem e semelhança
homem
um perdido
coberto de bruma
sem nada dentro

se alguém pegasse
nesta mão



joão rebocho
rapazas e raparigos
edição do autor
2015



23 novembro 2015

antónio cândido franco / redenção


                liberdade e graça


O Pombal do futuro, não o do Sol
mas o da sombra
há-de andar de óculos, e de óculos escuros
com os  Sermões  de Vieira debaixo do braço
e emblema  na lapela
com o retrato de Malagrida.
O Estaline há-de ler em ascese Os Lusíadas
essa arte de heréticos
e o Junqueiro, o Vulcano pequeno-burguês
que foi desmontado peça a peça por Sérgio
há-de aparecer esquelético na Arcádia universal
de barrete e todo nu, a cores
como num retrato de Warhol
a conduzir nos aposentos da luz o faiton de Apolo


antónio cândido franco
estrela subterrânea
poesia digital
7 poetas dos anos 80
campo das letras
2002



22 novembro 2015

alberto caeiro / quem me dera



Quem me dera que eu fosse o pó da estrada
E que os pés dos pobres me estivessem pisando...

Quem me dera que eu fosse os rios que correm
E que as lavadeiras estivessem à minha beira...

Quem me dera que eu fosse os choupos à margem do rio
E tivesse só o céu por cima e a água por baixo...

Quem me dera que eu fosse o burro do moleiro
E que ele me batesse e me estimasse...

Antes isso que ser o que atravessa a vida
Olhando para trás de si e tendo pena...

alberto caeiro



21 novembro 2015

armando silva carvalho / a minha infância não a trago ao colo



A minha infância não a trago ao colo.
Mas hoje ao ver-me tão pintado
no espelho do seu rosto
ajoelho no chão
para que as águas me cubram
e o tempo de mim sinta
vergonha.



armando silva carvalho
canis dei 1995
o que foi passado a limpo, obra poética
assírio & alvim
2007