10 agosto 2015

narciso pinto / cheirar-te pela manhã



Cheirar-te pela manhã
Como se cheira uma maçã

(sem que o Goethe venha à baila)

Quando o sol se levanta
Já ninguém recusa uma boa foda…

Um beijo teu é quase um aríete
A demolir os meus alicerces.

A vizinha insiste com a vassoura
No estuque de um sonho nosso…

És o único despertador
Que eu vou tolerando!


narciso pinto
sarro
(da paixão à cova)
chiado editora




09 agosto 2015

alberto caeiro / bendito seja o mesmo sol



Bendito seja o mesmo sol de outras terras
Que faz meus irmãos todos os homens
Porque todos os homens, um momento no dia, o olham como eu, 
E, nesse puro momento
Todo limpo e sensível
Regressam lacrimosamente
E com um suspiro que mal sentem
Ao homem verdadeiro e primitivo
Que via o Sol nascer e ainda o não adorava.
Porque isso é natural - mais natural
Que adorar o ouro e Deus
E a arte e a moral ...
  

alberto caeiro




08 agosto 2015

al berto / amor dos fogos



...vêm sôfregos os peixes da madrugada
beber o marítimo veneno das grandes travessias
trazem nas escamas a primavera sombria do mar
largam minúsculos cristais de areia junto à boca
e partem quando desperto no tecido húmido dos sonhos

... vem deitar-te comigo no feno dos romances
para que a manhã não solte o ciúme
e de novo nos obrigue a fugir...
... vem estender-te onde os dedos são aves sobre o peito
esquece os maus momentos a falta de notícias a preguiça
ergue-te e regressa
para olharmos a geada dos astros deslizar nas vidraças
e os pássaros debicam o outono no sumo das amoras...
... iremos pelos campos
à procura do silente lume das cassiopeias...

  

al berto



07 agosto 2015

helga moreira / dobra palavras, silêncios.



Dobra palavras, silêncios.
Para o corpo pede uma qualquer
hora de encanto.
Falo da beleza dos seus olhos
e o rosto estremece,
cúmplice.



helga moreira
poesia digital
7 poetas dos anos 80
campo das letras
2002



06 agosto 2015

arsenii tarkovskii / pela noite concedias-me o favor,


Pela noite concedias-me o favor,
Abriam-se as portas do altar
E a nossa nudez iluminava o escuro
À medida que genuflectia. E ao acordar
Eu diria «Abençoada sejas!»
Sabendo como pretensiosa era a bênção:
Dormias, os lilases tombavam da mesa
Para tocar-te as pálpebras num universo de azul,
E tu recebias esse sinal sobre as pálpebras
Imóveis, e imóvel estava a tua mão quente.



arsenii tarkovskii
8 ícones
versão de paulo da costa domingos
assírio & alvim
1987



05 agosto 2015

ana hatherly (8-5-1929 / 5-8-2015)



Um ritmo perdido...



Se uma pausa não é fim
e silêncio nâo é ausência,
se um ramo partido não mata uma árvore,
um amor que é perdido,será acabado?

um ouvido que escuta
uma alma que espera...
-uma onda desfeita
É ou já não era?

Nuvem solitária,
silenciosa e breve,
nuvem transparente,
desenho etéreo de anjo distraído...

nuvem,
esquecida em céu de esperança,
forma irreal de sonho interrompido..

nuvem,
luz e sombra,
forma e movimento,
fantasia breve de ânsia de infinito...

nuvem que foste
e já não és:
desejo formulado e incompreendido.




ana hatherly




04 agosto 2015

josé tolentino mendonça / reis magos


Uma mesa de plástico, branca
junto da tarde que morre
e renasce por pequenas paixões 
de repente estávamos sozinhos
as ilhas muito inacessíveis
agora que escureceu
o menor desejo teria um sentido delicado
os olhos velozes de um gato
viam coisas belas
lado a lado com os homens
pareciam quase não ter sofrido

a mesa estava encostada às janelas do café
e nós de forma desolada
ignorados, aturdidos, de passagem
não muito mais

procuro desse facto uma versão
que me não conduza à inconfidência

era uma mesa lisa, branca
uma razão soletrava ao acaso
a medida soberana do incerto

olhos velozes de um gato os teus
olhos


josé tolentino mendonça
baldios
assírio & alvim
1999





03 agosto 2015

eugénio de andrade / espera


Horas, horas sem fim,
pesadas, fundas,
esperarei por ti
até que todas as coisas sejam mudas.

Até que uma pedra irrompa
e floresça.
Até que um pássaro me saia da garganta
e no silêncio desapareça.

  
eugénio de andrade



02 agosto 2015

miguel torga / regresso


Quanto mais longe vou, mais perto fico
De ti, berço infeliz onde nasci.
Tudo o que tenho, o tenho aqui
Plantado.
O coração e os pés, e as horas que vivi,
Ainda não sei se livre ou condenado.



miguel torga
diário XII
1977




01 agosto 2015

ricardo reis / não só quem nos odeia ou nos inveja



Não só quem nos odeia ou nos inveja
Nos limita e oprime; quem nos ama
                   Não menos nos limita.
Que os deuses me concedam que, despido
De afectos, tenha a fria liberdade
                   Dos píncaros sem nada.
Quem quer pouco, tem tudo; quem quer nada
É livre; quem não tem, e não deseja,
                   Homem, é igual aos deuses.




ricardo reis




31 julho 2015

pascalle monnier / the murphy bed (excerto)



Olharei
o mar
das
janelas da minha casa
como
hoje vejo
os automóveis
e
adivinharei
as trovoadas
as tempestades
e
outra vez o sol
e
verei
nas noites de lua cheia
dentro do quarto
como
em pleno dia
e
nesses dias
mesmo
se
não conseguir dormir
eu
ficarei contente
porque
esperarei
então
sentada
diante
da janela
sobre
o mar
que
a luz do dia
venha
e fique
em vez
da luz da Lua
e
quando
o dia tiver sucedido à noite
adormecerei
enfim
sem recear
que a luz do Sol
do dia
seja demasiado
clara
e demasiado violenta
como
receio
que seja hoje
porque
tenho
sempre medo
quando o sol
é muito forte
gosto
da luz
suave
da manhã
da luz
suave da noite
mas
não
da luz
vertical
e
violenta
do sol
no zénite
E conhecerei cada tremular de uma folha sob
o efeito do vento.
Um suspiro, um grito, uma palavra.


pascalle monnier
tradução de miguel serras pereira
sud-express, poesia francesa de hoje
relógio d´água
1993



30 julho 2015

charles simic / adensam-se as nuvens



Parecia o género de vida que queríamos.
Morangos silvestres com natas pela manhã.
Em todos os quartos a luz do sol.
Nós os dois a passear nus na praia.

Certas noites, porém, descobríamo-nos
Incertos do que viria a seguir.
Como actores de um drama num teatro em chamas,
As aves volteando por cima de nós.
Os pinheiros escuros estranhamente quietos,
Todas as pedras em que tropeçávamos
Ensanguentadas pelo sol poente.

E voltávamos para o terraço a beber vinho.
De onde nos vinha este pressentimento de um final infeliz?
Nuvens de aparência quase humana
Adensavam-se no horizonte, mas tudo o resto tão lindo
O ar tão brando e o mar tão manso.

A noite caía subitamente sobre nós, uma noite sem estrelas.
Acendias uma vela, levava-la nua
Para o nosso quarto e apagáva-la depressa com um sopro.
Os pinheiros escuros e os arbustos estranhamente quietos.



charles simic
traduzido por josé lima
diversos nr. 2





29 julho 2015

alda merini / e mais fácil ainda



E mais fácil ainda me seria
descer a ti plas mais sombrias escadas,
aquelas do desejo que me assalta
como lobo infecundo noite adentro.

Sei que tu colherias dos meus livros
com as mãos sabedoras do perdão…

E também sei que me amas de um amor
casto, infindável, reino de tristeza…

Mas eu pra ti o pranto o alisei
dia após dia como luz repleta
e mando-o de volta tácita aos meus
olhos, que, se te olho, vivem de estrelas.

(de  Tu és Pedro, Scheiwiller, 1961)



alda merini
tradução de marco bruno
relâmpago
revista de poesia, nr. 17 10/2005
fundação luís miguel nava
outubro de 2005