11 junho 2015

john ashbery / na quinta do norte



Algures alguém viaja furiosamente ao teu encontro,
A uma velocidade incrível, viajando dia e noite
Por entre nevões e calores do deserto, transpondo torrentes, atravessando desfiladeiros.
Mas saberá ele onde te encontrar?
Reconhecer-te-à quando te vir?
Dar-te-à coisa que tem para ti?

Aqui quase nada cresce,
E contudo os celeiros estão a abarrotar,
As sacas de grão empilhadas até às trevas do tecto.
Os ribeiros correm docemente, engordando o peixe;
Pássaros escurecem o céu. Será que basta
Deixar a malga do leite lá fora à noite,
Pensar nele às vezes,
Às vezes e sempre, com sentimentos confusos?


john ashbery
uma onda e outros poemas
tradução colectiva / joão barrento
poetas em mateus
quetzal editores
1992




10 junho 2015

herberto helder / em boa verdade houve tempo em que tive uma




em boa verdade houve tempo em que tive uma
                                         ou duas artes poéticas,
agora não tenho nada:
sento-me, abro um caderno, pego numa esferográfica
                                           e traço meia dúzia de linhas:
às vezes apenas duas ou três linhas;
outras, vinte ou trinta:
houve momentos em que fui apanhado neste jogo e cheguei
                            a encher umas quantas páginas do caderno
aconteceu também por vezes que o papel pareceu
                                                                 estremecer,
mas o mundo, não: nunca senti que o mundo estremecesse
                                              sob as minhas palavras escritas,
o que já senti, e é de facto um pouco estranho, foi isto:
enquanto escrevia, o mundo parecia deslocar-se,
e quando eu chegava ao fim das linhas escritas,
sabia que estava tudo feito,
sentia que devia morrer
mas, como se vê, nunca o mais simples atingiu em mim a
                                                       sua própria profundidade



herberto helder
poemas canhotos
porto editora
2015




09 junho 2015

mário-henrique leiria / último encontro



o amor não somos nós que o temos
é-nos dado
muito antes de termos nascido
talvez verdadeiro     autêntico
como o encontro do mar e da luz

depois    muito depois
quando os teus braços     os teus seios
chegaram até mim
já estavam perdidos
já não existiam
o meu rosto deformado     atroz
já não te podia olhar
mas os meus olhos    esses sim
ainda te viam como antes
como tu eras quando não existias
só os meus olhos
só os meus olhos
as mãos    essas     sem dedos
esfoladas    esfaceladas
de tanto esperar
nunca te encontraram
w    na grande planície do medo
ficavas tu    que não existias
o meu corpo   belo   perdido
sem rosto   muito pálido
partiu então
entre a nuvem e a sombra
maravilha de verdade
mas perdido na praia do sonho
embalado em algas
com muitos animais marinhos no sexo
com um rasto de luas
que sempre     sempre
o acompanharão

apenas duas gotas de sangue
pequenas    rutilantes

os meus olhos     os meus olhos
sempre os meus olhos



mário-henrique leiria
a única real tradição viva
antologia da poesia surrealista portuguesa
perfecto e. cuadrado
assírio & alvim
1998




08 junho 2015

marin sorescu / leda



Leda passa sorrindo
Por entre as coisas
E vai para a cama
Com todas elas.

O muro fez-lhe um filho
Da hera,
O sol fez-lhe nascer
Um girassol.

Ela fez amor às claras
Com todos os bois,
À cabeça o boi Apis,
Mas, diabos a levem,
Nem sequer se nota.

Grande puta,
Esta Leda,
Por isso é que o mundo continua
tão bonito.




marin sorescu
simetria
tradução colectiva revista, completada e apresentada
por egito gonçalves
poetas em mateus
quetzal
1997



07 junho 2015

josé gomes ferreira / hoje para mim o sonho e a realidade



XXXIII

Hoje para mim o Sonho e a Realidade
confundem-se no mesmo fel lascivo
de subterrâneo sujo…

Mentira?... Verdade?...
Sei lá se sonho ou vivo!
(Fujo.)


josé gomes ferreira
gomes leal 1948
poesia III
portugália
1971




06 junho 2015

marguerite yourcenar / recordamo-nos dos nossos sonhos:



Recordamo-nos dos nossos sonhos:
não nos recordamos dos nossos sonos.

Apenas duas vezes penetrei nesses fundos
atravessados por correntes
onde os nossos sonhos
não são mais do que embarcações
de realidades submersas.

No outro dia,
bêbado de felicidade
como se fica bêbado de ar
no final de uma longa corrida,
atirei-me para a cama,
como um nadador
que se atira de costas,
os braços cruzados:
mergulhei num mar azul.

Encostado ao abismo
como uma nadadora que nada com prancha,
sustentada pela bóia de oxigénio
dos meus pulmões cheios de ar,
emergia desse mar grego
como uma ilha recém-nascida.

Esta noite,
bêbada de desgosto,
deixo-me cair sobre a cama
com os gestos de uma afogada
que se abandona:
cedo ao sono como à asfixia.

As correntes de recordações persistem
através do embrutecimento nocturno,
levam-me para uma espécie de lago Asfáltico.

Não há forma
de mergulhar nessa água saturada de sais,
amarga como a secreção das pálpebras.

Flutuo como a múmia sobre o seu betume,
na apreensão de um acordar
que será no máximo uma sobrevivência.

O fluxo,
depois o refluxo do sono
fazem-me rebolar contra minha vontade
nessa praia de cambraia.

A cada momento,
os meus joelhos batem um no outro
à tua lembrança.

O frio acorda-me,
como se me tivesse deitado
ao lado de um morto.


  

marguerite yourcenar
fogos
trad. de maria da graça morais sarmento
difel
1995




05 junho 2015

arsenii tarkovskii / e agora sonho com



E agora sonho com
Um branco hospital entre as macieiras,
E um lençol branco sob o meu queixo,
E um médico de branco que olha para mim,
E uma branca enfermeira à cabeceira
Batendo as asas. Estavam todos ali.
Quando a mãe veio, acenando –
E partiu….


arsenii tarkovskii
8 ícones
versão de paulo da costa domingos
assírio & alvim
1987




04 junho 2015

alejandra pizarnik / apenas a sede



3
Apenas a sede
O silêncio
Nenhum encontro

Cuidado comigo, meu amor
Cuidado com a silenciosa no deserto
Com a que viaja de copo vazio
E com a sombra da sua sombra


alejandra pizarnik
antologia poética
trad. alberto augusto miranda
edit. o correio dos navios
2002




03 junho 2015

emmanuel hocquard / fim de vida. a velha língua está ali.



     10
     Fim de vida. A velha língua está ali.
escondida como uma carraça na orelha. Alimenta-se de tudo
     o que vejo e o seu ruído não me deixa ver o que não vejo.
     Terei passado a minha vez sem ver.
     A minha visão? Na gaiola de um esquilo,
O incessante retorno das mesmas impressões & dos mesmos
                                                                               [pensamentos
     insípidos até se tornarem enjoativos;
     até apertarem o coração como num torno: pulsações monótonas,
apagadas repetições que se atravessam subitamente, sem motivo aparente,
     a meio da noite, no desvio de uma frase
     ou em sonho, um clarão muito fugitivo,
uma fulgurante vertigem que, bruscamente, rompe os hábitos.
     Então a carraça desperta e tudo volta a ser como antes.
     Os nomes de Keats, Shelley, Sir Joseph Cheyne
estão ainda escritos nas caixas de correio dos inquilinos,
     no corredor, à esquerda da entrada. Uma flor
     cresceu nas telhas, na beira do telhado. Esta manhã,
de madrugada, vista da janela, a cidade parece uma floresta
     petrificada de árvores cinzentas sem folhagens,
     de troncos nodosos, retorcidos sob o céu tempestuoso.
     Também a cidade é um alarme, uma vertigem exacta
     no rumor das pulsações e dos tornos.
Pisa, Tony, Régis, Signore Typoce & C.ª, enquanto dormis,
     eu, Pirro, vigio as letras dos vossos nomes,
     que são as letras do meu nome.
Biblioteca, armazéns, boutiques de luxo, companhia de seguros,
     a cidade está construída sobre o alfabeto e vive sobre a reserva
     das letras: vinte e seis pulsações, em francês.

     Um dicionário & uma gramática para rectificar a vista?
Que garantia? Terei passado a minha vida sob uma chuva
                                                                              [de letras,
     tendo por vezes procurado refúgio no amor.
Mas a língua do amor, entrecortada pelos suspiros, os silêncios
     e os gritos inarticulados do prazer, é pobre,
aproximativa, inadaptada às esperanças que nela depositamos.
     O sexo de uma mulher é um abrigo muito doce,
     um refúgio sem saída, que semeamos de letras.
O amor nasce, alimenta-se, morre com a extinção provisória das
                                                                                     [letras
     que, imediatamente, renascem das suas cinzas. O amor perece
     com as letras que restitui ao mundo; e deixa-nos, de novo,
na mesma, às voltas com o velho alfabeto tomado de vertigens.





emmanuel hocquard
allée de poivriers en californie
tradução de nuno júdice
sud-express
poesia francesa de hoje
relógio d´água
1993




02 junho 2015

ruy cinatti / saudade


Ouvi dizer que a tua voz se ouvia
lá longe, em Timor, na outra banda do mundo,
e que era esse o profundo dilema
da tua casta, enamorada alma.
O que não ouço fere-me o ouvido
e há segredos, que ocultos soluçam…
De tanto sofrer, uma dor simples
vagueia errante… Uma gaivota alada…
A minha vida, uma perdida âncora
em praia ignota, que eu conheço a fundo.
Tardarei muito a encontra-la,
mas será cedo para a vizinha morte.

13/3/77


ruy cinatti
56 poemas
de «ali também timor…»
relógio d´água
1992





01 junho 2015

fernando luís / num café de bolonha


3
Em dia não a imagem
de ti se desfoca, desagrega-se
a veloz intenção da partilha
em dia aziago te esmorece
a tez, o pulso e a perícia
das mãos outrora plenas.

O suor das noites fortalece
a memória, suas lacunas,
rompe-se o tendão do ombro
em sangue, estás livre és
o vazio, um escombro,

o pronome esfacelado na parede,
cão, cão da morte foge e vai,
que te açoite em fogo
a mão do Senhor,
te afogue, te conduza
para ofegante tédio.

Que em dia não
te desfaçam a vida
e o recusado coração.


fernando luís
num café de bolonha
as escadas não têm degraus 3
livros cotovia
março 1990



31 maio 2015

vicente valero / mar sem caminhos


I

Deve ser como um porto o coração do mundo,
o coração do homem. Aí onde repousa
e começa os seus trabalhos o mar das paixões,
em escura justiça, os desejos, as viagens
e a dúvida em silêncio.

Deve ser como um porto. Uma tarde saberemos
se saíram os barcos ou se tão-só o fantasma
do desconhecido nos lançou à aventura
e agora regressamos com os remos ao alto
até nós mesmos.

E nessa tarde outro mar em paz conheceremos.


vicente valero
trípticos espanhóis (2º)
tradução de joaquim manuel magalhães
relógio d´água
2000





30 maio 2015

mário cesariny / raio de luz



Burgueses somos nós todos
    ou ainda menos.
Burgueses somos nós todos
    desde pequenos.
 
Burgueses somos nós todos
       ó literatos.
Burgueses somos nós todos
      ratos e gatos

Burgueses somos nós todos
    por nossas mãos.
Burgueses somos nós todos
    que horror irmãos.
 
Burgueses somos nós todos
    ou ainda menos.
Burgueses somos nós todos
     desde pequenos.



mário cesariny
nobilíssima visão
assírio & alvim
1991