02 junho 2015

ruy cinatti / saudade


Ouvi dizer que a tua voz se ouvia
lá longe, em Timor, na outra banda do mundo,
e que era esse o profundo dilema
da tua casta, enamorada alma.
O que não ouço fere-me o ouvido
e há segredos, que ocultos soluçam…
De tanto sofrer, uma dor simples
vagueia errante… Uma gaivota alada…
A minha vida, uma perdida âncora
em praia ignota, que eu conheço a fundo.
Tardarei muito a encontra-la,
mas será cedo para a vizinha morte.

13/3/77


ruy cinatti
56 poemas
de «ali também timor…»
relógio d´água
1992





01 junho 2015

fernando luís / num café de bolonha


3
Em dia não a imagem
de ti se desfoca, desagrega-se
a veloz intenção da partilha
em dia aziago te esmorece
a tez, o pulso e a perícia
das mãos outrora plenas.

O suor das noites fortalece
a memória, suas lacunas,
rompe-se o tendão do ombro
em sangue, estás livre és
o vazio, um escombro,

o pronome esfacelado na parede,
cão, cão da morte foge e vai,
que te açoite em fogo
a mão do Senhor,
te afogue, te conduza
para ofegante tédio.

Que em dia não
te desfaçam a vida
e o recusado coração.


fernando luís
num café de bolonha
as escadas não têm degraus 3
livros cotovia
março 1990



31 maio 2015

vicente valero / mar sem caminhos


I

Deve ser como um porto o coração do mundo,
o coração do homem. Aí onde repousa
e começa os seus trabalhos o mar das paixões,
em escura justiça, os desejos, as viagens
e a dúvida em silêncio.

Deve ser como um porto. Uma tarde saberemos
se saíram os barcos ou se tão-só o fantasma
do desconhecido nos lançou à aventura
e agora regressamos com os remos ao alto
até nós mesmos.

E nessa tarde outro mar em paz conheceremos.


vicente valero
trípticos espanhóis (2º)
tradução de joaquim manuel magalhães
relógio d´água
2000





30 maio 2015

mário cesariny / raio de luz



Burgueses somos nós todos
    ou ainda menos.
Burgueses somos nós todos
    desde pequenos.
 
Burgueses somos nós todos
       ó literatos.
Burgueses somos nós todos
      ratos e gatos

Burgueses somos nós todos
    por nossas mãos.
Burgueses somos nós todos
    que horror irmãos.
 
Burgueses somos nós todos
    ou ainda menos.
Burgueses somos nós todos
     desde pequenos.



mário cesariny
nobilíssima visão
assírio & alvim
1991




29 maio 2015

miguel torga / paz


Caldas da Raínha, 11 de Setembro de 1939


Calado ao pé de ti, depois de tudo,
Justificado
Como o instinto mandou,
Ouço, nesta mudez,
A força que te dobrou,
Serena, dizer quem és
E quem sou.

  
miguel torga
diário I
1941



28 maio 2015

joão miguel fernandes jorge / o mar já não era para mim suficiente


2.

O mar já não era para mim suficiente.
Fazia-me falta um rio
um rio sob sombra das árvores.

É difícil a meio da música
suportar a luz do café.

Estávamos juntos
como vejo estar no palco
sob dois projectores.

Os olhos
as mãos
todo o corpo
era só o frio da noite.



joão miguel fernandes jorge
poemas escolhidos,
o roubador de água (1981)
assírio & alvim
1982




27 maio 2015

josé ángel cilleruelo / auto-retrato com olhos ignóbeis



Os olhos enevoados, em silêncio
A rua, as persianas atiradas
Como capotes sobre os ombros;
Amarga a saliva, engulo-a
Enquanto o homem desaparece
Apagado na humidade da noite.
Deixa como única lembrança
Uma gota gelada de esperma
Na comissura dos meus lábios.



josé ángel cilleruelo
trípticos espanhóis 2º
trad. joaquim manuel magalhães
relógio d´água
2000




26 maio 2015

jorge de sena / tentações do apocalipse



Não é de poesia que precisa o mundo.
Aliás, nunca precisou. Foi sempre
uma excrescência escandalosa que
se lhe dissesse como é infame a vida
que não vivamos para outrem nele.
E nunca, só de ser, disse a poesia
uma outra coisa, ainda quando finge
que de sobreviver se faz a vida.
O mundo precisa de morte. Não da morte
com que assassina diariamente quantos teimam
em dizer-lhe da grandeza de estar vivo.
Nem da morte que o mata pouco a pouco,
e de que todos se livram no enterro dos outros.
Mas sim da morte que o mate como um percevejo,
uma pulga, um piolho, uma barata, um rato.
Ou que a bomba venha para estas culpas,
se foi para isso que fizemos filhos.
Há que fazer voltar à massa primitiva
esta imundície. E que, na torpitude
de existir-se, ao menos possa haver
as alegrias ingénuas de todo o recomeço.
Que os sóis desabem. Que as estrelas morram.
Que tudo recomece desde quando a luz
não fora ainda separada às trevas
do espaço sem matéria. Nem havia um espírito
flanando ocioso sobre as águas quietas,
que pudesse mentir-se olhando a criação.
(O mais seguro, porém, é não recomeçar.)



jorge de sena
peregrinatio ad loca infecta
1969



25 maio 2015

octavio paz / amor e erotismo



POESIA


Aquilo que o poema nos mostra não o vemos com os nossos olhos de carne mas com os do espírito.

Os sentidos são e não são deste mundo.
Por eles, a poesia traça uma ponte entre o ver e o crer.
Por essa ponte a imaginação adquire corpo e os corpos tornam-se imagens.

A poesia erotiza a linguagem e o mundo porque ela mesma é já erotismo.

Religião e poesia vivem em contínua osmose.



EROTISMO

O erotismo é uma poética corporal e a poesia é uma erótica verbal.

O erotismo não é mera sexualidade animal: é cerimónia, representação, sexualidade transformada: metáfora.

Sexo, erotismo e amor são aspectos do mesmo fenómeno, manifestações daquilo a que chamamos vida.
O mais antigo dos três, o amplo e básico, é o sexo. O sexo é o centro e o fulcro desta geometria passional.

O erotismo é exclusivamente humano.

O erotismo é invenção, variação, incessante; o sexo é sempre o mesmo.

Dupla face do erotismo: fascinação diante da vida e diante da morte.

O erotismo é, antes de tudo e sobretudo, sede de ser outro. E o sobrenatural é radical e supremo ser-se outro.

O sentido religioso de um poema como o Cântico dos Cânticos não pode separar-se do seu sentido erótico profano:
são dois aspectos da mesma realidade. Nos místicos sufis é frequente a confluência da visão religiosa com a erótica.
A comunhão é comparada às vezes com um festim ente dois amantes no qual o vinho corre com abundância.
Ebriedade divina, êxtase erótico.


   
AMOR

A transgressão, o castigo e a redenção são elementos constitutivos da concepção ocidental do amor.

O amor é uma atracção para uma única pessoa: para um corpo e uma alma. O amor é escolha; o erotismo, aceitação.
Sem erotismo, não há amor, mas o amor atravessa o corpo desejado e busca a alma no corpo e, na alma, o corpo.
A pessoa inteira.

A ideia de encontro entre dois amantes exige dois condições contraditórias: predestinação e escolha.

O sexo é a raiz, o erotismo é o caule e o amor a flor.
E o fruto? Os frutos do amor são intangíveis. Este é um dos seus enigmas.

O amor é um nó no qual se atam, indissoluvelmente, o destino e a liberdade.

No amor aparece o mal: é uma sedução mórbida que nos atrai e nos vence.

Há muitos anos escrevi: o amor é um sacrifício sem virtude;
hoje eu diria: o amor é uma aposta, insensata, pela liberdade. Não a minha, a alheia.



octavio paz
a chama dupla: amor e erotismo
trad. josé bento
assírio & alvim
1995






24 maio 2015

álvaro de campos / grandes são os desertos



Grandes são os desertos, e tudo é deserto. 
Não são algumas toneladas de pedras ou tijolos ao alto 
Que disfarçam o solo, o tal solo que é tudo. 
Grandes são os desertos e as almas desertas e grandes 
Desertas porque não passa por elas senão elas mesmas, 
Grandes porque de ali se vê tudo, e tudo morreu. 
Grandes são os desertos, minha alma! 
Grandes são os desertos. 


Não tirei bilhete para a vida, 
Errei a porta do sentimento, 
Não houve vontade ou ocasião que eu não perdesse. 
Hoje não me resta, em vésperas de viagem, 
Com a mala aberta esperando a arrumação adiada, 
Sentado na cadeira em companhia com as camisas que não cabem, 
Hoje não me resta (à parte o incômodo de estar assim sentado) 
Senão saber isto: 
Grandes são os desertos, e tudo é deserto. 
Grande é a vida, e não vale a pena haver vida, 


Arrumo melhor a mala com os olhos de pensar em arrumar 
Que com arrumação das mãos factícias (e creio que digo bem) 
Acendo o cigarro para adiar a viagem, 
Para adiar todas as viagens. 
Para adiar o universo inteiro. 


Volta amanhã, realidade! 
Basta por hoje, gentes! 
Adia-te, presente absoluto! 
Mais vale não ser que ser assim. 


Comprem chocolates à criança a quem sucedi por erro, 
E tirem a tabuleta porque amanhã é infinito. 


Mas tenho que arrumar mala, 
Tenho por força que arrumar a mala, 
A mala. 


Não posso levar as camisas na hipótese e a mala na razão. 
Sim, toda a vida tenho tido que arrumar a mala. 
Mas também, toda a vida, tenho ficado sentado sobre o canto das camisas empilhadas, 
A  ruminar, como um boi que não chegou a Ápis, destino. 


Tenho que arrumar a mala de ser. 
Tenho que existir a arrumar malas. 
A cinza do cigarro cai sobre a camisa de cima do monte. 
Olho para o lado, verifico que estou a dormir. 
Sei só que tenho que arrumar a mala, 
E que os desertos são grandes e tudo é deserto, 
E qualquer parábola a respeito disto, mas dessa é que já me esqueci. 


Ergo-me de repente todos os Césares.   
Vou definitivamente arrumar a mala.   
Arre, hei de arrumá-la e fechá-la;  
Hei de vê-la levar de aqui, 
Hei de existir independentemente dela. 


Grandes são os desertos e tudo é deserto, 
Salvo erro, naturalmente. 
Pobre da alma humana com oásis só no deserto ao lado! 


Mais vale arrumar a mala. 
Fim.





álvaro de campos





23 maio 2015

e e cummings / a minha miúda é alta e de olhos duros e longos


[iii]

a minha miúda é alta e de olhos duros e longos
assim de pé, com suas longas e duras mãos guardando
silêncio no seu vestido, bom para dormir
é o seu longo e duro corpo cheio de surpresas
qual branco arame electrificado, quando sorri
um duro e longo sorriso isso às vezes faz
crescer alegremente em mim ardentes comichões,
e o frágil ruído dos seus olhos facilmente aguça
a minha impaciência até à ponta ─  a minha miúda é alta
e tesa, com pernas finas tal qual uma trepadeira
que passou a vida inteira num muro de jardim,
e vai morrer. Quando carrancudos vamos para a cama
com estas pernas começa a lançar-se e a enroscar-se
à minha volta, e a beijar-me o rosto e a cabeça.


e. e. cummings
xix poemas
trad. jorge fazenda lourenço
assírio & Alvim
1998




22 maio 2015

paulo da costa domingos / averbamento



Um cordão policial, na socialização
da falência, debrua as sanefas.
Julga-se que a lógica é
salvar os ricos e esperar

que eles deixem cair,
dos seus sacos a abarrotar
de dinheiro, algum
na praça pública.


paulo da costa domingos
averbamento
& etc
2011




21 maio 2015

manuel de freitas / 5 601036 307313



Dizem que ressuscitou o rock
numa pose de vampiro. Não sei.
Pelas olheiras, sobre o cabedal
tão velho, mais parece um agarrado,
desses que costumo encontrar
no 42. Mau hálito tem - quase tanto
como a voz. Mas leva sempre
suminhos, cremes de beleza, fiambre.
Dá-me a ideia que nele até o olhar
cansado é uma mentira cosmética,
que depois usa em voz alta contra o tal
"sistema". Eu talvez gritasse melhor.

  

manuel de freitas
isilda ou a nudez dos códigos de barras
black son editores
2001