À minha desoladora mãe, com essa estranha
mescla de compaixão e náusea que só pode
experimentar quem conhece a causa, banal
e
sórdida, talvez, de tanto, tanto
desastre.
Eu contemplava, caído
o meu cérebro
esmagado, pasto de serpentes, à
mercê das águias,
pasto
de serpentes
eu contemplava o meu cérebro para sempre esmagado
e a minha mãe ria, a minha mãe ria
vendo-me remexer com medo nos despojos
da minha alma ainda quentes
tremendo sempre
como quem tem medo de saber que está morto,
e chora, implora caridade aos vivos
para que não lhe cuspam em cima a palavra morto. Vi digo
o meu cérebro no chão liquefazendo-se, como excremento
para as moscas. E o meu espírito convertido num teatro
vazio, de que todo o pensamento desertou
—tutti gli spirti miei eran
fugitti
dinanzi a Lei
o meu espírito como um teatro vazio
onde em vão se animava inútil, a minha consciência,
coisa
obscura ou
bafo de monstro pressentido na caverna. E ali, no
teatro vazio,
ou debaixo da tenda do circo
abandonado, três atletas
—Mozo, Bozo, Lozo—
saltavam sem descanso, movendo
com desesperada vaidade o trapézio
de um lado ao outro, de um lado ao outro. E também, cortesãs
com o cabelo tingido de um ouro repugnante, trocavam
histórias sobre aquilo que nunca houve
no palácio em ruínas. E logo me vi, mais tarde
muito para lá do demasiado tarde,
numa esquina desolada de
alguma cidade invernal, mendigando
aos transeuntes uma palavra que dissesse
algo de mim, um nome com que me vestir. Porta
do inferno —do
inferno da impossibilidade de sofrer mais—
porta do inferno
—do inferno da possibilidade de sofrer mais—
este poema, este canto exausto
esta porta que range na casa
sem ninguém, conduzida apenas pelo vento desabitado,
como uma marafona ou uma marioneta infame que mimara
a sua carência de ser com o exagero do gesto: uma boneca
conduzida pelos fios invisíveis de todas as mãos
e negada por todos os olhos. Como uma boneca mimo-me
a mim mesmo e finjo
diante de ninguém que ainda existo. Pião
na mão do deus dos mortos. Como uma boneca
extraviada
na rota implacável de tantas outras, das incontáveis
marionetas
que levam a sua vida como um rito funerário,
uma obsessão senil ou um delírio
último de moribundo. Porque os homens não falam, disse-me,
disse
aos cegos que manchavam
de fezes e sangue os seus sapatos ao pisar o meu cérebro.
E no momento
em que pensou isso, um menino
urinou sobre a pasta derretida,
dando logo
de beber vinho tinto e forte a um sapo
para que bêbado risse, risse, enquanto caia
sobre o inverno da vida a chuva
mais dura. E ao vê-lo, e enquanto me arrastava
coxeando entre os mortos, pensei: chove,
chove sempre nas ruínas. E a minha mãe riu, ao ouvir aquele ruído
que dilatava o meu pensamento.
Narciso
no Último Acorde das Flautas, 1979
leopoldo maría panero
antologia poética (1979/1994)
selecção, tradução e notas de jorge melícias
lume editor
2014