17 fevereiro 2015

leopoldo maría panero / ma mère


                    À minha desoladora mãe, com essa estranha
                    mescla de compaixão e náusea que só pode
                    experimentar quem conhece a causa, banal e
                    sórdida, talvez, de tanto, tanto desastre.



Eu contemplava, caído
                                  o meu cérebro
esmagado, pasto de serpentes, à
mercê das águias,
                           pasto de serpentes
eu contemplava o meu cérebro para sempre esmagado
e a minha mãe ria, a minha mãe ria
vendo-me remexer com medo nos despojos
da minha alma ainda quentes
                                            tremendo sempre
como quem tem medo de saber que está morto,
e chora, implora caridade aos vivos
para que não lhe cuspam em cima a palavra morto. Vi digo
o meu cérebro no chão liquefazendo-se, como excremento
para as moscas. E o meu espírito convertido num teatro
vazio, de que todo o pensamento desertou
tutti gli spirti miei eran fugitti
                                                  dinanzi a Lei
o meu espírito como um teatro vazio
onde em vão se animava inútil, a minha consciência,
                                                                        coisa obscura ou
bafo de monstro pressentido na caverna. E ali, no
     teatro vazio,
ou debaixo da tenda do circo
                                     abandonado, três atletas
—Mozo, Bozo, Lozo—
                              saltavam sem descanso, movendo
com desesperada vaidade o trapézio
de um lado ao outro, de um lado ao outro. E também, cortesãs
com o cabelo tingido de um ouro repugnante, trocavam
histórias sobre aquilo que nunca houve
no palácio em ruínas. E logo me vi, mais tarde
muito para lá do demasiado tarde,
                                                    numa esquina desolada de
alguma cidade invernal, mendigando
aos transeuntes uma palavra que dissesse
algo de mim, um nome com que me vestir. Porta
do inferno —do
inferno da impossibilidade de sofrer mais—
                                                                porta do inferno
—do inferno da possibilidade de sofrer mais—
este poema, este canto exausto
esta porta que range na casa
sem ninguém, conduzida apenas pelo vento desabitado,
como uma marafona ou uma marioneta infame que mimara
a sua carência de ser com o exagero do gesto: uma boneca
conduzida pelos fios invisíveis de todas as mãos
e negada por todos os olhos. Como uma boneca mimo-me
a mim mesmo e finjo
diante de ninguém que ainda existo. Pião
na mão do deus dos mortos. Como uma boneca
      extraviada
na rota implacável de tantas outras, das incontáveis
      marionetas
que levam a sua vida como um rito funerário,
uma obsessão senil ou um delírio
último de moribundo. Porque os homens não falam, disse-me,
      disse
aos cegos que manchavam
de fezes e sangue os seus sapatos ao pisar o meu cérebro.
                                                                                      E no momento
em que pensou isso, um menino
urinou sobre a pasta derretida,
                                               dando logo
de beber vinho tinto e forte a um sapo
para que bêbado risse, risse, enquanto caia
sobre o inverno da vida a chuva
mais dura. E ao vê-lo, e enquanto me arrastava
coxeando entre os mortos, pensei: chove,
chove sempre nas ruínas. E a minha mãe riu, ao ouvir aquele ruído
que dilatava o meu pensamento.
  

      Narciso no Último Acorde das Flautas, 1979




leopoldo maría panero
antologia poética (1979/1994)
selecção, tradução e notas de jorge melícias
lume editor
2014




16 fevereiro 2015

eugénio de andrade / sul



Era por Agosto, há muitos anos.
O cheiro da sombra
das oliveiras subia ao ar. Vista de baixo
aquela folhagem parecia um mar,
um mar de vidro,
quando o sol obliquo lhe caia em cima.

Eram dois cães raivosos, eram duas
cobras enroscadas, eram dois rapazes
rolando pelo chão; lutavam,
mordiam-se, abraçavam-se.

Deviam amar-se muito, para se baterem
com tal ardor. Um sol verde
lambia agora a terra.

Eram muito novos, há muitos anos,
no pino do verão, debaixo de uma oliveira,
onde só as cigarras monotonamente
consentiam.



eugénio de andrade







15 fevereiro 2015

álvaro de campos / adiamento



Depois de amanhã, sim, só depois de amanhã...
Levarei amanhã a pensar em depois de amanhã,
E assim será possível; mas hoje não...
Não, hoje nada; hoje não posso,
A persistência confusa da minha subjectividade objectiva,
O sono da minha vida real, intercalado,
O cansaço antecipado e infinito,
Um cansaço de mundos para apanhar um eléctrico...
Esta espécie de alma...
Só depois de amanhã...
Hoje quero preparar-me,
Quero preparar-me para pensar amanhã no dia seguinte...
Ele é que é decisivo.
Tenho já o plano traçado; mas não, hoje não traço planos...
Amanhã é o dia dos planos.
Amanhã sentar-me-ei à secretária para conquistar o mundo;
Mas só conquistarei o mundo depois de amanhã...
Tenho vontade de chorar,
Tenho vontade de chorar muito de repente, de dentro...

Não, não queiram saber mais de nada, é segredo, não digo.
Só depois de amanhã...
Quando era criança o circo divertia-se toda a semana.
Hoje só me diverte o circo d domingo de toda semana da minha infância...
Depois de amanhã serei outro,
A minha vida triunfar-se-á,
Todas as minhas qualidades reais de inteligente, lido e prático
Serão convocadas por edital...
Mas por um edital de amanhã...
Hoje quero dormir, redigirei amanhã...
Por hoje, qual é o espectáculo que me repetiria a infância?
Mesmo para eu comprar os bilhetes amanhã,
Que depois de amanhã é que está bem o espectáculo...
Antes, não...
Depois de amanhã terei a pose pública que amanhã estudarei.
Depois de amanhã serei finalmente o que hoje não posso nunca ser.
Só depois de amanhã...
Tenho sono como o frio de um cão vadio.
Tenho muito sono.
Amanhã te direi as palavras, ou depois de amanhã...
Sim, talvez só depois de amanhã...

O por vir...
Sim, o porvir...



álvaro de campos





14 fevereiro 2015

manuel de freitas / 8 410500 001100



Estou a ver o estilo: a folha de canabis
ao peito, os óculos de Foucault
não-li e uma devoção macrobiótica
tão estúpida quanto inquebrantável.
Esta gente custa - e o que é pior:
cheira mal. Assoa-se à manga
da camisola, cheio de ideologia
nos sovacos. E vem fazer compras
como se estivesse outra vez no Lux,
entre amigos abstémios que só
não legalizam a vida porque
ainda há limites para o mau gosto.

  

manuel de freitas
isilda ou a nudez dos códigos de barras
black son editores
2001





13 fevereiro 2015

samuel beckett / worstward ho


2/
Primeiro o corpo. Não. Primeiro o lugar. Não. Primeiro ambos. Ora um deles. Ora o outro. Até fartar de um deles e tentar o outro. Até fartar também deste e fartar outra vez de um deles. Assim em diante. Dalgum modo em diante, até fartar de ambos. Vomitar e partir. Para onde nem um nem outro. Até fartar desse lugar. Vomitar e voltar. Outra vez o corpo. onde nenhum. Outra vez o lugar. Onde nenhum. Tentar outra vez. Falhar outra vez. Melhor outra vez. Ou melhor pior. Falhar pior outra vez. Ainda pior outra vez. Até fartar de vez. Vomitar de vez. Partir de vez. Onde nem um nem outro de vez. De vez e tudo.



samuel beckett
últimos trabalhos de samuel beckett
tradução de miguel esteves cardoso
o independente / assírio & alvim
1996




12 fevereiro 2015

irene lisboa / amor



Aqueles olhos aproximam-se e passam.
Perplexos, cheios de funda luz,
doces e acerados, dominam-me.
Quem os diria tão ousados?
Tão humildes e tão imperiosos,
tão obstinados!

Como estão próximos os nossos ombros!
Defrontam-se e furtam-se,
negam toda a sua coragem.
De vez em quando,
esta minha mão,
que é uma espada e não defende nada,
move-se na órbita daqueles olhos,
fere-lhes a rota curta.
Poderosa e plácida.

Amor, tão chão de Amor,
Que sensível és…
Sensível e violento, apaixonado.
Tão carregado de desejos!

Acalmas e redobras
e de ti renasces a toda a hora
Cordeiro que se encabrita e enfurece
e logo recai na branda impotência

Canseira eterna!
Ou desespero, ou medo.
Fuga doida à posse, à dádiva.

Tanto bater de asas frementes,
tanto grito e pena perdida…
E as tréguas, amor cobarde?
Cada vez mais longe,
mais longe e apetecidas.
Ó amor, amor,
que faremos nós de ti
e tu de nós?

  

irene lisboa
1892-1958




11 fevereiro 2015

fernando luís / num café de bolonha



1
Saíu de um nome sem eco
e está sentado à minha mesa.
Com o sorriso pronto
a contornar o tédio a
quietude da minha existência.
O olhar tão nublado
como pisada erva e carvão
desenhava a fútil harmonia
entre alma e desejo,
vontade e o remoinho dela
cá fora.
Ali estava sem ocasião
para o destino. Por outras
palavras,
nunca quis olhar a agitada
superfície do lago
nem perder o seu rosto.



fernando luís
num café de bolonha
as escadas não têm degraus 3
livros cotovia
março 1990




10 fevereiro 2015

caio resende / retrato para lúcia


A tarde mastiga o para-sol da minha alma
e lembro-me de você, Lúcia –
sombra esguia estirada no limbo
orvalhando o balir da juventude
É quando desço
do mirante
dessa gélida vertigem –
onda inalada no sangue
de antigos girassóis –
e martelos segredam cores ou a febre
, o mar na resina dos dentes
encontra o silêncio na renda
Há nesse instante
um tumulto de braços
soerguendo a manhã
eu a vejo
desse espelho a esculpir omoplatas
nas paredes do tempo
Qual pedra derradeira
serrania e correnteza
tua pele feito estaca na urze
inda hoje
suaviza o bronze dos trovões
Sua Vulva, Lúcia
e seu Ânus
são duas prímulas
cortadas ao meio
pelos corredores ausentes dos meus olhos
E há nas ruínas deste esforço
te conhecer novamente
da costura exata da noite
deste desenho ornado de fúria
em que o fôlego se faz
e onde duas esfinges submersas
se derramam da vitrine do caos


caio resende






09 fevereiro 2015

antónio franco alexandre / a questão urbana


  1

  estas cidades, grés animal, as garrafas de sangue nos passeios,
  prenunciam devagarmente um acordar translúcido. o que
  movimentam no espaço, e aos bandos
  os pássaros decifram sobre o musgo e a hera,
  é o mesmo ar que na traqueia queima; e o cimento,
  translúcido, o mesmo que nos braços percorreu as veias,
  que nos olhos foi lava, que nos brilhou na boca
  dizendo: estas cidades, grés animal, um acordar sem boca.


  2

  movem nos muros, a vagina mineral das mães
  adormecidas, entre os apitos trémulos do aço
  e lenços verdes onde ocultam a cara. prenunciam, é certo,
  algum visível afastamento das madeiras, algum
  pensamento violentado, por isso as coisas permanecem sentadas
  e compreensíveis, afastadas de súbito pelo vento oco.


  3

  arrebanhados, como cães feitos de água, os dentes
  entendem, decifram sob o grés as patadas da terra,
  espalham na violência um musgo que prenuncia a
  transparência. foram construídas, assinaladas sobre o mapa por
  bandos de pássaros, respondem a algum ódio decisivo,
  algum afastamento da violência; o grés, os olhos,
  e o próprio desenho aéreo das lágrimas, aonde
  se perde pé muito de repente e se afundam as asas
  como uma lava dividida, um vidro, a soar junto à boca.


  4

  separam, mas esse
  é o seu rancor exaltado, a madeira onde furam
  as gengivas dos cães, e muito depois brilha o calcário dos dentes.
  nasceram de um modo diferente de pousar os ossos
  contra o peso da tarde, alguma raiva, algum pedal minucioso,
  como quando a sombra do pianista oculta um muro baixo
  onde está sentada, ausente ao musgo, a mulher que um dia
                                                                        [desejámos.


  5

  outras, as que brilham, as que espalham um lenço verde
  ao pescoço dos cães, e largas redes no ar empalidecido
  invisíveis capturam, as que vêm
  de dentro de um muro, e sobre um muro movem
  ombros de grés, então é noite, apetece uma nuvem,
  uma pedra sem cor que nos oculte o peito, o sangue
  transborda, e os apitos soam com a fúria dos grandes animais.


  6

  vêm, talvez, do acaso, como grandes nuvens de musgo
                                                                [amordaçado,
  ou animais encostados, ou a violência de uma gengiva
  onde o sangue bateu com patadas de cuspo. uma manhã
  se afastam no rancor, recobertas de grés permanecem sentadas,
  prenunciando, talvez, o ronco insuportável de uma boca.


  7

  o que movem no ar movem no sangue, um grés animal,
  a madeira das mães anoitecidas.
  amealham no peito os grãos translúcidos, prenunciando
  algum afastamento decisivo.
  o que afastam capturam. é um novo muro, então,
  à sombra das cidades, deitado sobre a boca.



  antónio franco alexandre
  os objectos principais
  centelha
  1979




07 fevereiro 2015

paul auster / noites brancas



Ninguém aqui,
e o corpo diz: o que se diz
não é para ser dito. Mas ninguém
é também um corpo, e o que diz o corpo
ninguém ouve
senão tu.

Noite e queda de neve. A repetição
de um homicídio
por entre as árvores. A caneta
move-se através da terra: já não sabe
o que vai acontecer, e desapareceu
a mão que a segura.

E no entanto, escreve.
escreve: no princípio,
por entre as árvores, um corpo veio
caminhando da noite. Escreve:
a brancura do corpo
é a cor da terra. É terra,
e a terra escreve: tudo
é a cor do silêncio.

Já não estou aqui. Nunca disse
o que dizes
que eu disse. E no entanto, o corpo é um lugar
onde nada morre. E todas as noites,
pelo silêncio das árvores, sabes
que a minha voz
vem caminhando para ti.



paul auster
poemas escolhidos
tradução de rui lage
quasi
2002




06 fevereiro 2015

ernesto sampaio / o menos possível



Respirar
o menos possível
nestas cidades
de uma tristeza
sem idade
abrindo o espaço
com os gestos lentos de um náufrago
a caminho
do fundo

A noite sobe-me
na voz
como um lugar
capaz de imaginar
sozinho
o seu cenário
onde o azul
dorme
numa cave
com os cães



ernesto sampaio
feriados nacionais
fenda
1999




05 fevereiro 2015

carlos drummond de andrade / procura da poesia



Não faças versos sobre acontecimentos.
Não há criação nem morte perante a poesia.
Diante dela, a vida é um sol estático,
não aquece nem ilumina.
As afinidades, os aniversários, os incidentes pessoais não contam.
Não faças poesia com o corpo,
esse excelente, completo e confortável corpo, tão infenso à efusão lírica.

Tua gota de bile, tua careta de gozo ou dor no escuro
são indiferentes.
Não me reveles teus sentimentos,
que se prevalecem de equívoco e tentam a longa viagem.
O que pensas e sentes, isso ainda não é poesia.
   
Não cantes tua cidade, deixa-a em paz.
O canto não é o movimento das máquinas nem o segredo das casas.
Não é música ouvida de passagem, rumor do mar nas ruas junto à linha de espuma.

O canto não é a natureza
nem os homens em sociedade.
Para ele, chuva e noite, fadiga e esperança nada significam.
A poesia (não tires poesia das coisas)
elide sujeito e objeto.

Não dramatizes, não invoques,
não indagues. Não percas tempo em mentir.
Não te aborreças.   
Teu iate de marfim, teu sapato de diamante,
vossas mazurcas e abusões, vossos esqueletos de família
desaparecem na curva do tempo, é algo imprestável.
   
Não recomponhas
tua sepultada e merencória infância.
Não osciles entre o espelho e a
memória em dissipação
Que se dissipou, não era poesia
Que se partiu, cristal não era.

Penetra surdamente no reino das palavras.
Lá estão os poemas que esperam ser escritos.
Estão paralisados, mas não há desespero,
há calma e frescura na superfície intata.
Ei-los sós e mudos, em estado de dicionário.
Convive com teus poemas, antes de escrevê-los.
Tem paciência, se obscuros. Calma, se te provocam.
Espera que cada um se realize e consume
com seu poder de palavra
e seu poder de silêncio.
Não forces o poema a desprender-se do limbo.
Não colhas no chão o poema que se perdeu.
Não adules o poema. Aceita-o
como ele aceitará sua forma definitiva e concentrada
no espaço.
   
Chega mais perto e contempla as palavras
Cada uma
tem mil faces secretas sob a face neutra
e te pergunta, sem interesse pela resposta,
pobre ou terrível que lhe deres
Trouxeste a chave?

Repara:
ermas de melodia e conceito
elas se refugiaram na noite, as palavras.
Ainda úmidas e impregnadas de sono,
rolam num rio difícil e se transformam em desprezo.

  

carlso drummond de andrade





04 fevereiro 2015

hermann hesse / o lobo das estepes



Eu, lobo das estepes, corro, corro,
a neve cobre o mundo,
da bétula levanta voo o corvo,
mas nunca aparece uma lebre, nunca aparece um cervo.
E como eu amo os cervos!
Se acaso encontrasse algum,
prendia-o com garras e dentes:
é a coisa mais bela em que penso.
Com os sensíveis seria também sensível,
devorava-os todos de extremo a extremo,
bebia-lhes até ao fundo o sangue púrpura e espesso,
e solitariamente uivava pela noite dentro.
Contentava-me com uma lebre.
É tão doce à noite o sabor da sua carne quente.
Porventura foi-me negado tudo quanto possa, um pouco,
alegrar a vida, um pouco apenas?
A minha companheira, há muito que a não tenho,
o pêlo da minha cauda começa a ficar cor de cinza,
e só quando há bastante luz é que vejo.
Agora corro e sonho com cervos,
ouço o vento soprar nas grandes noites de inverno,
e a minha alma dolorosa, entrego-a eu ao demónio.



hermann hesse
doze nós numa corda
herberto helder
assírio & alvim
1997