07 janeiro 2015

valery larbaud / europe III


Europa! Só tu satisfazes os apetites sem limite
Do saber, e os apetites da carne,
E os do estômago, e os apetites
Indizíveis e mais que imperiais dos Poetas,
E todo o orgulho do Inferno
(Já por vezes me tenho perguntado se não serás um dos degraus, um cantão
                                                                                            adjacente do Inferno.)
Ó minha Musa, filha das grandes capitais, reconhece os teus ritmos
Nestes rumores incessantes das ruas intermináveis.



valery larbaud
vozes da poesia europeia III
traduções de david mourão-ferreira
colóquio letras 165
2003





06 janeiro 2015

fiama hasse pais brandão / do raio de sol



Raio de Sol na ombreira da porta,
na trave da cadeira, vindo da gelosia,
peço-te para amanhã voltares
mais arqueado pela esfericidade da Terra,
um raio não tão decididamente recto
cravado no meu tórax côncavo,
mas no meu coração curvo como um globo.



fiama hasse pais brandão
as fábulas
quasi
2002




05 janeiro 2015

bertolt brecht / aos que virão a nascer



1

Em verdade, vivo em tempos escuros!
A palavra ingénua é louca. Uma testa lisa
Denota insensibilidade. O que ri
Ainda não recebeu
A terrível notícia.

Que tempos são estes, em que
Uma conversa sobre árvores é quase um crime,
Porque inclui um silêncio sobre tantos malefícios!
O que acolá calmamente cruza a rua,
Não será ele talvez já acessível aos amigos
Necessitados?

É verdade: ainda ganho o meu sustento.
Mas acreditai-me: é só um acaso. Nada
Daquilo que faço me dá o direito de comer a fartar.
Por acaso fui poupado. (Quando se me acabar a sorte
Estou perdido.)
Dizem-me: Come e bebe! Alegra-te, já que o tens!

Mas como posso eu comer e beber, quando
Tiro ao faminto o que como, e
O meu copo de água falta ao que morre de sede?
E no entanto como e bebo.

Também gostava de ser sábio.
Nos velhos livros vem o que é ser sábio:
Manter-se alheio à luta do mundo, e o curto tempo
Passá-lo sem receio.
Também viver sem violência
Pagar o mal com o bem
Não satisfazer os desejos, mas esquecer
Vale por sábio.
E tudo isso é que eu não posso:
Em verdade, vivo em tempos escuros!


2

Entrei nas cidades no tempo da desordem
Quando lá reinava a fome.
Vim pra entre os homens no tempo da revolta
E com eles me revoltei.
Assim passou o tempo
Que na terra me foi dado.

O meu pão comi-o entre as batalhas.
Deitei-me a dormir entre os assassinos.
Dei-me ao amor, descuidado
E vi a Natureza sem paciência.
Assim passou o tempo
Que na terra me foi dado.

As estradas levavam ao pântano no meu tempo.
A língua traiu-me ao carniceiro.
Pouco pude fizer. Mas os que mandavam
Sem mim estavam mais seguros, esperava eu.
Assim passou o tempo
Que na terra me foi dado.

As forças eram poucas. O alvo
Estava muito longe.
Via-o com nitidez, inda que pra mim
Difícil de alcançar.
Assim passou o tempo
Que na terra me foi dado.


3

Vós, que haveis de surgir da cheia
Em que nós nos afundámos
Lembrai-vos
Quando falardes dos nossos fracos
Também do tempo escuro
A que escapastes.

Pois nós marchámos mudando de terra mais vezes que de sapatos
Através das guerras de classes, desesperados
Quando lá só havia injustiça e não revolta.

E contudo nós sabíamos:
Também o ódio contra a vilania
Desfigura as feições.
Também a cólera contra a injustiça
Enrouquece a voz. Ai, nós
Que queríamos amanhar o terreno para a amabilidade
Não podíamos nós mesmos ser amáveis.
Mas vós, quando chegar a hora
Em que o homem possa ajudar o homem
Pensai em nós
Com indulgência.

  

bertolt brecht





04 janeiro 2015

antónio ramos rosa / para além dos signos



Escrever agora é dispersar os reflexos,
abrir as portas de pedra e repousar no ar.
Ajoelhado junto de um barco ou de uma jarra,
um deus respira e é um puro vazio.
Para além dos signos e no início deles
um sorriso, um fulgor das coisas confiantes.
E nos muros e nos dedos, uma areia
que das nuvens descesse e na distância
a forma de um abraço amante, o sonho do outro.



antónio ramos rosa
acordes
quetzal editores
1990





03 janeiro 2015

mário-henrique leiria / viver com a crueldade



viver com a crueldade
da criança que
tira os olhos ao pássaro

um desconhecido
movendo-se constantemente
no deserto
em que cada pegada deixa
bem marcada na areia
a imagem dessa
outra existência
em que a morte e a memória
ainda mais significam

mais alto

muito mais alto talvez
que a claridade
do voo das aves que
partem para o desconhecido

o próprio corpo nada mais é
do que a sombra
bem simples por sinal
dos braços que nos rodeiam
por erro nosso ou dos outros
já não existe
a persistência do que
foi perdido

e as mãos
as mãos que sentimos
bem presas     seguras     aptas
essas
todos sabemos
que podem ainda     cada vez mais
esmagar com cuidado     com extremo cuidado
dilacerar     suavemente


nos olhos
está o amor

  

mário-henrique leiria
a única real tradição viva
antologia da poesia surrealista portuguesa
perfecto e. cuadrado
assírio & alvim
1998





02 janeiro 2015

ruy belo / perigo de vida



É grande o risco da palavra no tempo
maior mesmo talvez que no mar
Eu fui à margem do dia despedir um amigo
e não houve no cais
iniciativa verbal que edificasse
uma só tenda para o nosso coração
Éramos peregrinos
que deixam a saudade de turistas
ausentes na rua de outono
Morríamos contra a curva dos dias
a morte rotativa e provisória

Tivesse a própria palavra lábios
e nenhum clima poderia
arrefecer-lhe o coração
Tivesse ela lábios e não seria
tão grave o risco no tempo e no mar
  


ruy belo
relação
todos os poemas I
assírio & alvim
2004




01 janeiro 2015

alberto caeiro / assim como



Assim como falham as palavras quando querem exprimir qualquer  pensamento, 
Assim falham os pensamentos quando querem exprimir qualquer realidade, 
Mas, como a realidade pensada não é a dita mas a pensada. 
Assim a mesma dita realidade existe, não o ser pensada. 
Assim tudo o que existe, simplesmente existe. 
O resto é uma espécie de sono que temos, infância da doença. 
Uma velhice que nos acompanha desde a infância da doença. 

  

alberto caeiro




31 dezembro 2014

rui costa / manifesto


Eu gosto muito dos senhores que moram no meu prédio.
O prédio é alto e tem elevadores. Assim é melhor porque ninguém
tem que carregar ninguém às costas. Quer dizer, as pessoas
também podiam ir pelo seu próprio pé mas isso era se não houvesse
pessoas no meu prédio que precisam de favores. Precisam,
e depois pagam com as costas na subida - Ouvi dizer que há
pessoas no meu prédio que têm em casa florestas normandas (eu
cá só ervas daninhas!). É que o elevador do meu prédio avaria
muitas vezes. Avaria, e depois os senhores dos andares de cima
precisam de carregadores. As pessoas dos andares de baixo
começaram a nascer todos os dias com as costas mais
largas para poderem carregar melhor, e agora o elevador
avaria quase sempre. A minha sorte é eles saberem que
eu só tenho em casa ervas daninhas. Nunca me pedem para
os carregar nem sequer estacionam as suas árvores novas
a barrar-me a entrada de casa: têm medo de ser contaminados.
Agora são os senhores dos andares de cima que me pedem
favores: se posso mudar de casa, de prédio, que até me
oferecem uma casa com florestas normandas lá dentro.
Mas eu não quero. Estou bem aqui. As minhas ervas
chegam já ao primeiro andar. Às vezes subo por elas
e convidam-me para jantar. Falamos e rimos e quando
nos calamos o silêncio à volta é maior.
Até agora cresceram sempre frescas pelo seu pé acima.



rui costa
o pequeno-almoço de carla bruni
2009



30 dezembro 2014

valerio magrelli / comboio-cometa




" Assumia o autor, como fundamento da demanda, que no
seguimento da passagem de um comboio de mercadorias
deflagrara um incêndio, o qual, da via férrea, se propagara
à confinante propriedade desse autor, destruindo as culturas
existentes. Acrescentava que o incêndio fora provocado
por um vagão de comboio, de cujos travões, bloquea
dos apesar do movimento da composição, se tinham libertado
feixes de faúlhas. Do anexo relatório da oficina deduz-se
que, por causa do bloqueio do travão por obstrução
dos tubos devida a impurezas do óleo, as pastilhas e as
jantes do rodado ficaram fortemente incandescidas pelo
sobreaquecimento, e o chão do compartimento queimado."


Comboio-cometa
fósforo embruxado, ferro
riscado contra os carris,
travão puxado e atrito,
comboio-travão que dilacera
a guincha na noite.
Avançava com as rodas bloqueadas
as vértebras contraídas
as palavras-hífen
e do meu esforço saía
um calor e uma cor
e um cheiro a carne chamuscada:
faíscas, uma chuva de línguas
pedrenais na noite.
Ah vagões travados, ah palavras-hífen
eu fricativo, retrato de atrito.




valerio magrelli
a espinha do p
trad. rosa alice branco
poetas em mateus
quetzal
1993







29 dezembro 2014

william carlos williams / canção



a beleza é uma concha
do mar
onde triunfante reina
até o amor dela se apoderar

vieiras e
garras de leão
esculpidas ao
som das ondas que se afastam

eternos acentos
repetidos até
olho e ouvido jazerem
juntos na mesma cama


william carlos williams
antologia breve
tradução josé agostinho baptista
assírio & alvim
1993




28 dezembro 2014

álvaro de campos / escrito num livro abandonado em viagem



Venho dos lados de Beja.
Vou para o meio de Lisboa.
Não trago nada e não acharei nada.
Tenho o cansaço antecipado do que não acharei,
E a saudade que sinto Não é nem no passado nem no futuro.
Deixo escrita neste livro a imagem do meu desígnio morto:
Fui, como ervas, e não me arrancaram.

  

álvaro de campos




27 dezembro 2014

michális ganas / naufrágio



A casa é velha cai caliça
Medem-se os flancos da parede.
Lá dentro a mãe
cá fora o polegar de deus,
que há-de destruí-la.
Vás para que canto vás,
as coisas voltam-se para te fitar,
vacas com sede.

Por detrás dos armários da cozinha
há outros armários
e por trás destes, ainda outros
até ao velho frigorífico.
Aqui adormecem as suas mãos artríticas
a senhora Lena e a senhora Maria...

A velha casa, que muito viajou,
de repente faz memórias, naufraga.


  
michális ganas
(n. 1943)
«akáthistos deipnos»
atenas, 1985
tradução de manuel  resende




26 dezembro 2014

antónio pedro / devia haver livros de racionamento mesmo para o entusiasmo


 (único poema de guerra)


As prostitutas mijaram na soleira da minha porta
E as escada cheirou a guisado até ao último andar
O ritmo dos aviões acomodou-se ao prestígio da noite
E encheu-me de intermitências
Alguém desfolhou um dedo como uma tulipa
Mas tiradas as pétalas e as sépalas
Em vez do androceu e do gineceu
Havia lá dentro uma pobre lua de pé
Como a chama gelada de uma candeia.

Quem é? Quem é aquele homem?
Quem é aquele homem que vai pela estrada fora
Decididamente
E quando acaba a estrada e o precipício se desenha como um U
Desce e sobe o U do precipício
Imperturbavelmente
E atravessa a água do rio e sobe a catarata
Ao contrário da corrente
E percorre os cinco diques do navio que puseram ao alto da água
Para a lua de mel dos turistas americanos
E depois molhado e violento faz mais mil e duzentos e vinte e dois atalhos e
                                                                       [caminhos
E só ao chegar finalmente à cabine do elevador no sétimo andar
Do bloco de flats de que percorrera gloriosamente todos os pisos e recantos
Sentiu que era inútil e desnecessário qualquer esforço
E chorou feio como um anúncio de limonadas?

V.D.
A sífilis não se contagia pelo ar
Como a gripe e o sarampo
Segundo dizem a experiência e o Senhor Ministro da Saúde
Do governo de sua Majestade
A sífilis contagia-se pelo olhar de certas velhas moralistas
Com óculos e barba
Anda no pêlo ratado de certas raposas de mendiga
Mas pode produzir frutos admiráveis
Tem de ser cultivada cuidadosamente num vaso
Tem de ser bem regada e bem coberta cheia de emanações.
Mas isto não diz o Ministro da Saúde do governo de sua Majestade
No anúncio do jornal
Porque é segredo de guerra agora
E na hora da nossa morte
Amen

Os olhos dos buses de Londres
São fixos e frios como o dos peixes mortos.

Era muito mais sensacional
Tremer a pálpebra aliciadoramente a qualquer olho dum bus
Que tenha-se publicado em vinte volumes
Mais de vinte mil discursos do senhor Winston Churchill
Aos vivas ao Franco como não vem nas caricaturas
Vestido de caixa de charutos
Todo Joly good fellow.

Anda no ar um rodopio do vento
Como uma interrogação neste calor de Maio

Acabem lá com isso dos alemães e da guerra
E ponham taipais na Europa
"PARA CONSERTAR"


Londres, Maio de 1944



antónio pedro
antologia poética
obras clássicas da literatura portuguesa séc. xx
edição de fernando matos oliveira
angelus novus, editora
1998