03 janeiro 2015

mário-henrique leiria / viver com a crueldade



viver com a crueldade
da criança que
tira os olhos ao pássaro

um desconhecido
movendo-se constantemente
no deserto
em que cada pegada deixa
bem marcada na areia
a imagem dessa
outra existência
em que a morte e a memória
ainda mais significam

mais alto

muito mais alto talvez
que a claridade
do voo das aves que
partem para o desconhecido

o próprio corpo nada mais é
do que a sombra
bem simples por sinal
dos braços que nos rodeiam
por erro nosso ou dos outros
já não existe
a persistência do que
foi perdido

e as mãos
as mãos que sentimos
bem presas     seguras     aptas
essas
todos sabemos
que podem ainda     cada vez mais
esmagar com cuidado     com extremo cuidado
dilacerar     suavemente


nos olhos
está o amor

  

mário-henrique leiria
a única real tradição viva
antologia da poesia surrealista portuguesa
perfecto e. cuadrado
assírio & alvim
1998





02 janeiro 2015

ruy belo / perigo de vida



É grande o risco da palavra no tempo
maior mesmo talvez que no mar
Eu fui à margem do dia despedir um amigo
e não houve no cais
iniciativa verbal que edificasse
uma só tenda para o nosso coração
Éramos peregrinos
que deixam a saudade de turistas
ausentes na rua de outono
Morríamos contra a curva dos dias
a morte rotativa e provisória

Tivesse a própria palavra lábios
e nenhum clima poderia
arrefecer-lhe o coração
Tivesse ela lábios e não seria
tão grave o risco no tempo e no mar
  


ruy belo
relação
todos os poemas I
assírio & alvim
2004




01 janeiro 2015

alberto caeiro / assim como



Assim como falham as palavras quando querem exprimir qualquer  pensamento, 
Assim falham os pensamentos quando querem exprimir qualquer realidade, 
Mas, como a realidade pensada não é a dita mas a pensada. 
Assim a mesma dita realidade existe, não o ser pensada. 
Assim tudo o que existe, simplesmente existe. 
O resto é uma espécie de sono que temos, infância da doença. 
Uma velhice que nos acompanha desde a infância da doença. 

  

alberto caeiro




31 dezembro 2014

rui costa / manifesto


Eu gosto muito dos senhores que moram no meu prédio.
O prédio é alto e tem elevadores. Assim é melhor porque ninguém
tem que carregar ninguém às costas. Quer dizer, as pessoas
também podiam ir pelo seu próprio pé mas isso era se não houvesse
pessoas no meu prédio que precisam de favores. Precisam,
e depois pagam com as costas na subida - Ouvi dizer que há
pessoas no meu prédio que têm em casa florestas normandas (eu
cá só ervas daninhas!). É que o elevador do meu prédio avaria
muitas vezes. Avaria, e depois os senhores dos andares de cima
precisam de carregadores. As pessoas dos andares de baixo
começaram a nascer todos os dias com as costas mais
largas para poderem carregar melhor, e agora o elevador
avaria quase sempre. A minha sorte é eles saberem que
eu só tenho em casa ervas daninhas. Nunca me pedem para
os carregar nem sequer estacionam as suas árvores novas
a barrar-me a entrada de casa: têm medo de ser contaminados.
Agora são os senhores dos andares de cima que me pedem
favores: se posso mudar de casa, de prédio, que até me
oferecem uma casa com florestas normandas lá dentro.
Mas eu não quero. Estou bem aqui. As minhas ervas
chegam já ao primeiro andar. Às vezes subo por elas
e convidam-me para jantar. Falamos e rimos e quando
nos calamos o silêncio à volta é maior.
Até agora cresceram sempre frescas pelo seu pé acima.



rui costa
o pequeno-almoço de carla bruni
2009



30 dezembro 2014

valerio magrelli / comboio-cometa




" Assumia o autor, como fundamento da demanda, que no
seguimento da passagem de um comboio de mercadorias
deflagrara um incêndio, o qual, da via férrea, se propagara
à confinante propriedade desse autor, destruindo as culturas
existentes. Acrescentava que o incêndio fora provocado
por um vagão de comboio, de cujos travões, bloquea
dos apesar do movimento da composição, se tinham libertado
feixes de faúlhas. Do anexo relatório da oficina deduz-se
que, por causa do bloqueio do travão por obstrução
dos tubos devida a impurezas do óleo, as pastilhas e as
jantes do rodado ficaram fortemente incandescidas pelo
sobreaquecimento, e o chão do compartimento queimado."


Comboio-cometa
fósforo embruxado, ferro
riscado contra os carris,
travão puxado e atrito,
comboio-travão que dilacera
a guincha na noite.
Avançava com as rodas bloqueadas
as vértebras contraídas
as palavras-hífen
e do meu esforço saía
um calor e uma cor
e um cheiro a carne chamuscada:
faíscas, uma chuva de línguas
pedrenais na noite.
Ah vagões travados, ah palavras-hífen
eu fricativo, retrato de atrito.




valerio magrelli
a espinha do p
trad. rosa alice branco
poetas em mateus
quetzal
1993







29 dezembro 2014

william carlos williams / canção



a beleza é uma concha
do mar
onde triunfante reina
até o amor dela se apoderar

vieiras e
garras de leão
esculpidas ao
som das ondas que se afastam

eternos acentos
repetidos até
olho e ouvido jazerem
juntos na mesma cama


william carlos williams
antologia breve
tradução josé agostinho baptista
assírio & alvim
1993




28 dezembro 2014

álvaro de campos / escrito num livro abandonado em viagem



Venho dos lados de Beja.
Vou para o meio de Lisboa.
Não trago nada e não acharei nada.
Tenho o cansaço antecipado do que não acharei,
E a saudade que sinto Não é nem no passado nem no futuro.
Deixo escrita neste livro a imagem do meu desígnio morto:
Fui, como ervas, e não me arrancaram.

  

álvaro de campos




27 dezembro 2014

michális ganas / naufrágio



A casa é velha cai caliça
Medem-se os flancos da parede.
Lá dentro a mãe
cá fora o polegar de deus,
que há-de destruí-la.
Vás para que canto vás,
as coisas voltam-se para te fitar,
vacas com sede.

Por detrás dos armários da cozinha
há outros armários
e por trás destes, ainda outros
até ao velho frigorífico.
Aqui adormecem as suas mãos artríticas
a senhora Lena e a senhora Maria...

A velha casa, que muito viajou,
de repente faz memórias, naufraga.


  
michális ganas
(n. 1943)
«akáthistos deipnos»
atenas, 1985
tradução de manuel  resende




26 dezembro 2014

antónio pedro / devia haver livros de racionamento mesmo para o entusiasmo


 (único poema de guerra)


As prostitutas mijaram na soleira da minha porta
E as escada cheirou a guisado até ao último andar
O ritmo dos aviões acomodou-se ao prestígio da noite
E encheu-me de intermitências
Alguém desfolhou um dedo como uma tulipa
Mas tiradas as pétalas e as sépalas
Em vez do androceu e do gineceu
Havia lá dentro uma pobre lua de pé
Como a chama gelada de uma candeia.

Quem é? Quem é aquele homem?
Quem é aquele homem que vai pela estrada fora
Decididamente
E quando acaba a estrada e o precipício se desenha como um U
Desce e sobe o U do precipício
Imperturbavelmente
E atravessa a água do rio e sobe a catarata
Ao contrário da corrente
E percorre os cinco diques do navio que puseram ao alto da água
Para a lua de mel dos turistas americanos
E depois molhado e violento faz mais mil e duzentos e vinte e dois atalhos e
                                                                       [caminhos
E só ao chegar finalmente à cabine do elevador no sétimo andar
Do bloco de flats de que percorrera gloriosamente todos os pisos e recantos
Sentiu que era inútil e desnecessário qualquer esforço
E chorou feio como um anúncio de limonadas?

V.D.
A sífilis não se contagia pelo ar
Como a gripe e o sarampo
Segundo dizem a experiência e o Senhor Ministro da Saúde
Do governo de sua Majestade
A sífilis contagia-se pelo olhar de certas velhas moralistas
Com óculos e barba
Anda no pêlo ratado de certas raposas de mendiga
Mas pode produzir frutos admiráveis
Tem de ser cultivada cuidadosamente num vaso
Tem de ser bem regada e bem coberta cheia de emanações.
Mas isto não diz o Ministro da Saúde do governo de sua Majestade
No anúncio do jornal
Porque é segredo de guerra agora
E na hora da nossa morte
Amen

Os olhos dos buses de Londres
São fixos e frios como o dos peixes mortos.

Era muito mais sensacional
Tremer a pálpebra aliciadoramente a qualquer olho dum bus
Que tenha-se publicado em vinte volumes
Mais de vinte mil discursos do senhor Winston Churchill
Aos vivas ao Franco como não vem nas caricaturas
Vestido de caixa de charutos
Todo Joly good fellow.

Anda no ar um rodopio do vento
Como uma interrogação neste calor de Maio

Acabem lá com isso dos alemães e da guerra
E ponham taipais na Europa
"PARA CONSERTAR"


Londres, Maio de 1944



antónio pedro
antologia poética
obras clássicas da literatura portuguesa séc. xx
edição de fernando matos oliveira
angelus novus, editora
1998




23 dezembro 2014

luis alberto de cuenca / os gigantes de gelo



Os Gigantes de Gelo tornaram a visitar-me.
Não em sonhos. À luz do dia. Com elmos
reluzentes e o rosto selvático e maligno.
Senti tanto medo que nem fui capaz de dizer-lhes
que tinhas partido. Investigaram tudo,
amaldiçoando a hora em que Deus criou o mundo,
jurando pelos dentes do Lobo e pelas fauces
do Dragão, cuspindo terríveis ameaças,
blasfemando e destruindo os livros e os discos.
Ao ver que tu não estavas, foram-se, não sem antes
garantir que dariam com o teu novo esconderijo
e serias sua escrava até ao fim dos tempos.
Onde estejas, meu amor, não lhes abras a porta.
Ainda que se façam passar por homens de minha confiança
e te garantam que sou eu que os envia.


luis alberto de cuenca
tradução de manuel rodrígues 




22 dezembro 2014

marin sorescu / capriccio



Todas as noites
Junto as cadeiras da vizinhança,
As disponíveis,
E leio-lhes versos.

As cadeiras são muito receptivas
À poesia
Se soubermos como as dispor.

Por isso
Fico emocionado,
E durante algumas horas
Conto-lhes
A morte maravilhosa da minha alma
Ao longo do dia.

Os nossos encontros
São habitualmente sóbrios,
Sem entusiasmos
Inúteis.

Seja como for,
É possível dizer-se:
Cada um fez o seu dever,
E pode seguir
Adiante.




marin sorescu
simetria
tradução colectiva revista, completada e apresentada
por egito gonçalves
poetas em mateus
quetzal
1997




20 dezembro 2014

fernando alves dos santos / encontrei-me iluminado



Encontrei-me iluminado nos telhados,
era vago, era despovoado, era lindo.
Tinha a tristeza de uma cisterna
abandonada por preguiça de outras gerações.
Agora, ainda posso ver o meu choro discreto
quando no meu voo
os olhos grandes me deixam ver o sol em pausa.

Além, mesmo além
— o silêncio regressava aos braços cansados e sábios
para junto dos homens que volviam plácidos.
Além, mesmo além
o silêncio trazia no fundo chamas de queimar deuses e o próprio háli-
         to dos deuses.
E queimava, queimava o solo vestido
hora a hora
até que das chamas colhia o segredo da vida e da morte.

Além, mesmo além
vago e despovoado eu caminhava mais um pouco
ainda com neve nos cabelos em ferida.

Que ninguém respire.
A hora não é de respirar,
reconheço.
No meu fato de espectador mal arrumado
exposto à porta de uma paróquia de condenados
não é de respirar,
reconheço.
Mais rei
acompanho a minha antiguidade
que parte nervosa para uma grande viagem.
A meio do dia
tomarei a meu gosto um pouco de moral no sangue.
         E quando lá do sonho
         os espelhos trouxerem mar
         a chama singular e franzina
         queimará o século e a fronte,
         as sombras dos dedos nos seios,
         os veleiros de imortalidade
         cheios de palmos de terra,
         até que lá do sonho eu não respire
         que a hora não é de respirar,
         eu reconheço.





fernando alves dos santos
a única real tradição viva
antologia da poesia surrealista portuguesa
perfecto e. cuadrado
assírio & alvim
1998




19 dezembro 2014

luis buñuel / redentora



Encontrava-me no jardim de um convento.
Um monge de S. Benito,
que levava sujeito a uma corrente um grande mastim vermelho,
contemplava-me com curiosidade, desde um claustro próximo.
Senti que o frade intentava lançar a fera contra mim,
pelo que, cheio de temor,
pus-me a dançar sobre a neve.

Suavemente, no princípio.
Depois,  jà que o ódio crescia nos olhos do meu espectador,
dancei furiosamente,
como um doido, como um possesso.

O sangue afluía-me à cabeça,
toldando-me os olhos vermelhos,
um vermelho semelhante ao do mastim.

O frade desapareceu e a neve fundiu-se.
O carniceiro vermelho desvanecera-se num imenso campo de papoilas.
Entre os trigais, na luz primaveril,
vinha agora a minha irmã, vestida de branco,
e trazendo-me nas mãos erguidas uma pomba de amor.

Era meio-dia em ponto,
a hora em que todos os sacerdotes da terra erguem a hóstia
sobre as searas.


Recebi minha irmã com os braços em cruz,
plenamente liberto
no meio de um silêncio augusto e branco de hóstia.



luis buñuel
poemas
trad. de mário cesariny
arcadia
1977