Talvez a
criança semi-devorada recupere o uso da fala
e nos diga o
silêncio dos guardas
e os seus
capacetes de aço escuro
talvez as
salas se desmoronem contigo
para
revelarem o segredo dos juízes
— os cubos
amarelos na amplidão dos tectos —
talvez tu,
Franz, soldado no abismo,
pequeno e
secreto deus das metamorfoses
um olho nu a
descansar sobre Zina
friamente
e os teus
dedos muito leves e brancos
atravessando-lhe
em lentidão o rosto.
Após a noite
quando as
aves já cantam na manhã
o teu corpo
envolvido em vermes e rosas
debruça-se
febril nas montanhas
revelando o
guarda
redescobrindo
a tempestade intensa e serena
os passos
mais recônditos no interior da seiva
as árvores
mais pétreas no fundo do deserto
a loucura
mais lúcida no trânsito da cidade:
aqueles
homens sentados nos passeios das ruas
dobrados
sobre si mesmos
auscultando
pequenos seres misteriosos
e a
conservação do rito mais solene.
A tua
liturgia é o hábito
de veres o
mundo de costas morrendo
quando nas
árvores
os corpos já
pendem ressequidos
maduros como
frutos de verão.
Pelo silêncio
da madrugada
as tuas mãos
acariciam-nos dolorosamente.
Um choro
ergue-se nos campos ondulantes
e refazemos
este homem comummente vestido
que ignora a
lei e caminha imperturbável
para além dos
seus passos e das suas palavras;
nas pedras
funâmbulas que limitam a cidade
— guilhotina
de múltiplas lâminas
de eficácia
perfeitamente controlada —
e a revelam
ao viajante hierárquica
levanta-se no
silêncio do teu quarto.
Já tarde
quando
erguido no leito
ansioso
aguardas
o pássaro vem
dançar sobre o teu rosto
balançando-se
penosamente até te ferir,
revelando
aquele fumo
que teus
olhos se habituaram a perfurar
(teus olhos a
máquina perfeita
e devoradora
de tempo e mitos).
As tuas três
mil colunas rodeiam-te
quando o
incêndio principia.
Agora o teu
rosto
está negro de
temor, desfalecido
e as rosas
rubras queimam-te
as mãos
na sua febre
outonal e raivosa.
Começa outra
vez o crepúsculo antigo e pressentido
a mortalha
iniciada cedo
no descanso
da montanha
na coluna do
termómetro obrigatório e detestado
no silêncio
da galeria povoada de mortes
com lágrimas
que não
quiseste revelar
e o cinzento
das coisas em putrefação
deslizando
lentamente
e a noite, A
NoITE
A MoRTE
A TUA MoRTE
ACARICIADA PELAS TUAS
MÃos.
mário cesariny
antologia do cadáver esquisito
assírio &
alvim
1989