25 agosto 2014

joão almeida / a imensidão



Dias a dia a dia
Às duas da tarde
Alimentado a ração
E alecrim
Fez muito mais que mazelas
Na carne e no conhecimento

O que é de pouco lhe vale
Quando a noite em chão
Desconhecido se aproxima
E o metro incendeia os motores
Para estação adversa

Queimou o cartão de cidadão e os últimos vestígios
Conto com a misericórdia das mulheres
Quando cair doente disse-me
Aproxima a tua mão

Vi-o pelos campos
Ao  pé de um carro abandonado
Como um aviso


joão almeida
ladrador
averno
2012



24 agosto 2014

luiza neto jorge / a divisibilidade: a visibilidade a dois



A mulher divide-se em gestos particulares
o homem divide-se também. Se o átomo é
divisível só o poeta o diz.

A mulher divide-se em gestos
extremos coloridos arenosos destilados.

Dois homens são duas divisões de uma
casa que já foi um animal de costas
para o seu pólo mágico.

A divisibilidade da luz aclara os mistérios.
A mulher tem filhos. Descobrem-se
partículas soltas de um dedo mínimo
o peso menos pesado da balança
um cabelo eloquente em desagregação.

Gestos estrídulos dividem a mulher
o homem divide-se ainda.



luiza  neto jorge
o seu a seu tempo
poesia
assírio & alvim
1993



23 agosto 2014

maria gabriela llansol / volto a deitar-me



37

Volto a deitar-me.
Bebo a água que fui buscar à cozinha.
Tudo dorme.
Sou eu.
És tu.
É o quarto.
Amanhã, te digo.
Que a noite é mais ser. Eu quero-lhe bem
Sem me apaixonar por ela.



maria gabriela llansol
o começo de um livro é precioso
assírio & alvim
2003



22 agosto 2014

maria do rosário pedreira / nunca soube o teu nome



Nunca soube o teu nome. Entraste numa tarde,
por engano, a perguntar se eu era outra pessoa-
um sol que de repente acrescentava cal aos muros,
um incêndio capaz de devorar o coração do mundo.

Não te menti; levantei-me e fui levar-te à porta certa
como um veleiro arrasta os sonhos para o mar; mas,
antes de te deixar, disse-te ainda que nessa tarde
bem teria gostado de chamar-me outra coisa-ou
de ser gato, para poder ter mais do que uma vida.




maria do rosário pedreira
nenhum nome depois
gótica
2004



21 agosto 2014

daniel faria / homens que são como lugares mal situados




Homens que são como lugares mal situados
Homens que são como casas saqueadas
Que são como sítios fora dos mapas
Como pedras fora do chão
Como crianças órfãs
Homens sem fuso horário
Homens agitados sem bússola onde repousem
 
Homens que são como fronteiras invadidas
Que são como caminhos barricados
Homens que querem passar pelos atalhos sufocados
Homens sulfatados por todos os destinos
Desempregados das suas vidas
 
Homens que são como a negação das estratégias
Que são como os esconderijos dos contrabandistas
Homens encarcerados abrindo-se com facas
Homens que são como danos irreparáveis
Homens que são sobreviventes vivos
Homens que são como sítios desviados
Do lugar


  
daniel faria
homens que são como lugares mal situados
fundação manuel leão
1998




20 agosto 2014

antónio josé forte / prefácio



Ao nível do mar
como o nome da flor do vinho
murmurado entre relógios de carvão
escrito devagar na cal do silêncio
como o lençol de púrpura
no peito dos amantes
de costas para a morte
ao nível do mar
como um cardume de palavras cintilantes
no horizonte de cinza e de pavor
como um cavalo branco toda a noite
de estrela para estrela
ao nível do mar
como a flor que se abre na boca dos suicidas
um homem
ferido de morte
vai falar



antónio josé forte
caligrafia ardente
hiena
1987



19 agosto 2014

josé miguel silva / ítaca



A salsa, o lúcio não têm pressa
e o fio de azeite aprende a esperar.
Cada dia que passa, não sei como é
- jantamos mais tarde. Precisa uma casa
de ter quem a viva, quem reze por ela,
por isso te espero de roupa no chão,
sem nada vestido debaixo da pele.


Abrimos a água, enxugo-te o rosto
podemos agora deixar de mentir.
Só com o corpo, relógio parado,
deixámos o mundo a rugir no escuro.
Urtiga nenhuma nos vai separar.
Ouvimos o sulco da garra na porta
e rimo-nos baixo. Não sei como é
- cada dia que passa jantamos mais tarde.



josé miguel silva
ulisses já não mora aqui
língua morta
2014




18 agosto 2014

egito gonçalves / o vagabundo decepado


1)

A todos os que esperam de mim um movimento impetuoso,
discursos em pedestais, vozes de comando,
presto esta informação: - Sou um vagabundo decepado! 
Viajo sem cabeça e sem braços na paisagem que me dão,
limitado por um rio a norte, um oceano a sul,
e a luz metálica de um coração a noroeste...

Venho assim desde a infância. É inútil lutar
pois fiz das esperanças barcos de papel
e perdi-as, muito novo, debaixo de uma ponte.
Vagabundo que apenas sobrevive
escrevo relatórios, versos, diagnósticos diários
do que encontro nas esquinas e envenena os corações.

Atravesso as ruas com chagas de néons
e escrevo para ti que um dia me apareceste,
desembarcada de um combóio, para oferecer à minha vida
mais um motivo de alegria e de desânimo...
e para ti, meu amigo de outros tempos,
que hoje me enfrentas com o dedo no gatilho...

para os poetas que cavam a angústia com as unhas
e com elas erguem verdadeiros e fortes alicerces;
para todas as bocas sem doçura, beijos sem harmonia,
mulheres a quem o choro cavou leitos de rio sobre o rosto,
sexos que se deixam deslumbrar pelo cheiro a gasolina
e viajam em automóveis que conduzem à desfloração...

para todos os homens que utilizam a noite serviçal
fabricando com ela flechas para fender a neblina;
e para ti, meu amor, cuja presença
é uma aguarela a escorrer nos objectos...
escrevo para todas as coisas solitárias e inúteis
que amo sem compreender e desenham ternura nos meus dedos...

Mas não esperem nada. Sou um vagabundo decepado,
caminhando em nevoeiro como uma lenda,
apontando num livro as coisas que me surgem
e que são belas e estranhas como flores por descobrir,
religiões por inventar, ilhas por emergir,
a viagem com o teu rosto, um vestido sem habitante,
a feiticeira queimada em 1570... 

Sou apenas um fantasma vagabundeante e sem cabeça,
arrancado a uma lenda bretã vinda numa arca,
e que alicerça o amor de uma velha maneira
- percorrendo com um dedo o canal entre os teus seios.



egito gonçalves
o amor desagua em delta
editorial inova
1971



17 agosto 2014

rui knopfli / sem nada de meu


Dei-me inteiro. Os outros
fazem o mundo (ou crêem
que fazem). Eu sento-me
na cancela, sem nada
de meu e tenho um sorriso
triste e uma gota
de ternura branda no olhar.
Dei-me inteiro. Sobram-me
coração, vísceras e um corpo.
Com isso vou vivendo.


rui knopfli
memória consentida : 20 anos de poesia 1959-1979
imp. nac. casa da moeda
1982



16 agosto 2014

alberto caeiro / da minha aldeia



Da minha aldeia vejo quanto da terra se pode ver no Universo...
Por isso a minha aldeia é tão grande como outra terra qualquer
Porque eu sou do tamanho do que vejo
E não, do tamanho da minha altura...
Nas cidades a vida é mais pequena
Que aqui na minha casa no cimo deste outeiro.
Na cidade as grandes casas fecham a vista à chave,
Escondem o horizonte, empurram o nosso olhar para longe 
de todo o céu,
Tornam-nos pequenos porque nos tiram o que os nossos olhos 
nos podem dar,
E tornam-nos pobres porque a nossa única riqueza é ver.



alberto caeiro
o guardador de rebanhos



15 agosto 2014

gil t. sousa / sê então



sê então
a majestade da pirâmide
sobre
o meu sonho de faraó

e guarda o meu segredo
até ao despertar de outros reinos

e que o amor me guie ainda
na grande solidão cósmica

e que o meu olhar
se perpetue no teu sono
sem nunca te acordar

e que o tempo não acabe

e que o amor não acabe
nunca mais



gil t. sousa



14 agosto 2014

rui baião / um homem perdido no baldio de ser



Um homem perdido no baldio de ser
a verdadeira assunção da palavra.
Um homem sem memória,
baleado pelas sequelas do tempo,
pensa em tudo, é lenha
em turva combustão. Um homem
em riste perante o castigo, persiste.
É o mal no território do nada
a pregar a cura aos porcos.


rui baião
ladrador
averno
2012



13 agosto 2014

philip larkin / os velhos tolos



Que pensam eles que aconteceu, os velhos tolos,
Para os pôr assim? Porventura supõem
Que é mais crescido terem a boca aberta e a babar-se
E mijarem-se a toda a hora e não se recordarem
De quem os visitou hoje de manhã? Ou que é só quererem
E volta tudo a ser como quando dançaram toda a noite,
Ou casaram, ou marcharam de arma ao ombro num certo Setembro?
Ou imaginam que não houve mudança alguma
E que sempre se portaram como inválidos e bêbados
Ou se sentaram o dia inteiro em devaneio contínuo
Vendo a luz mover-se? Se não o crêem (e não podem), é estranho:
               Porque não estão a gritar?

Na morte, desfazemo-nos: os pedaços do que éramos
Começam a fugir uns dos outros para sempre
Sem ninguém a ver. Não é mais que um olvido, é certo:
Já o tivemos antes, mas dessa vez ia acabar,
E combinava-se com um esforço sem igual
para fazer desabrochar a flor de um milhão de pétalas
Que é estar aqui. Da próxima vez não se pode fingir
Que vai haver algo mais. E são estes os indícios:
Não saber como, não ouvir quem, já não ter
Força para escolher. Pelo ar deles, estão prontos para ir:
               Como podem não o saber?

Ser velho é talvez ter salas iluminadas
Dentro da cabeça e, lá dentro, gente a representar.
Gente que se conhece, mas cujo nome nos escapa;
Cada vulto responde a uma perda profunda, assomando
A uma porta conhecida, pousando uma vela, sorrindo
Das escadas, tirando um livro da estante; ou por vezes
Só as próprias salas, cadeiras e uma lareira acesa,
O vento no arbusto para lá da janela, ou a débil
Simpatia do sol na parede, num solitário
Fim de tarde de Verão, depois da chuva. É onde eles vivem:
Não aqui e agora, mas onde tudo aconteceu em tempos.
               Por isso é que eles têm

Um ar de ausência perplexa, tentando estar lá
E contudo estando aqui. É que as salas vão-se afastando,
Deixando para trás um frio inepto e o atrito constante
Do ar respirado, enquanto eles, os velhos tolos,
De cócoras junto ao morro da extinção, não se apercebem
De como está próximo. Deve ser isto que os sossega:
O pico que se observa de onde quer que se vá
Para eles é uma elevação. Será que não adivinham
O que os puxa para trás, e como tudo acabará? Nem à noite?
Ao longe de toda a horrível infância do avesso? Bom,
               Havemos de o saber.




philip larkin
janelas altas
trad. rui carvalho homem
cotovia
2004