18 agosto 2014

egito gonçalves / o vagabundo decepado


1)

A todos os que esperam de mim um movimento impetuoso,
discursos em pedestais, vozes de comando,
presto esta informação: - Sou um vagabundo decepado! 
Viajo sem cabeça e sem braços na paisagem que me dão,
limitado por um rio a norte, um oceano a sul,
e a luz metálica de um coração a noroeste...

Venho assim desde a infância. É inútil lutar
pois fiz das esperanças barcos de papel
e perdi-as, muito novo, debaixo de uma ponte.
Vagabundo que apenas sobrevive
escrevo relatórios, versos, diagnósticos diários
do que encontro nas esquinas e envenena os corações.

Atravesso as ruas com chagas de néons
e escrevo para ti que um dia me apareceste,
desembarcada de um combóio, para oferecer à minha vida
mais um motivo de alegria e de desânimo...
e para ti, meu amigo de outros tempos,
que hoje me enfrentas com o dedo no gatilho...

para os poetas que cavam a angústia com as unhas
e com elas erguem verdadeiros e fortes alicerces;
para todas as bocas sem doçura, beijos sem harmonia,
mulheres a quem o choro cavou leitos de rio sobre o rosto,
sexos que se deixam deslumbrar pelo cheiro a gasolina
e viajam em automóveis que conduzem à desfloração...

para todos os homens que utilizam a noite serviçal
fabricando com ela flechas para fender a neblina;
e para ti, meu amor, cuja presença
é uma aguarela a escorrer nos objectos...
escrevo para todas as coisas solitárias e inúteis
que amo sem compreender e desenham ternura nos meus dedos...

Mas não esperem nada. Sou um vagabundo decepado,
caminhando em nevoeiro como uma lenda,
apontando num livro as coisas que me surgem
e que são belas e estranhas como flores por descobrir,
religiões por inventar, ilhas por emergir,
a viagem com o teu rosto, um vestido sem habitante,
a feiticeira queimada em 1570... 

Sou apenas um fantasma vagabundeante e sem cabeça,
arrancado a uma lenda bretã vinda numa arca,
e que alicerça o amor de uma velha maneira
- percorrendo com um dedo o canal entre os teus seios.



egito gonçalves
o amor desagua em delta
editorial inova
1971



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