estão todos convidados!
09 julho 2014
josé miguel silva / passagem
Em Segóvia há uma praça,
na praça uma varanda, na varanda
o rasto de ninguém.
Mas tens uma cadeira no café,
abundante chá de tília,
a certeza de que dentro duma hora
vai abrir-se para ti
a livraria da esquina.
É pouco mas sossega,
sob o bolso da camisa,
o motim do coração.
josé miguel silva
ulisses já não mora aqui
língua morta
2014
08 julho 2014
leopoldo maria panero / o que resta depois da flor
O que resta depois da flor
é uma coisa sem dentes,
recordando
o mistério da flor, a medonha
agulha
para gravar na pele as sílabas
da dor: e a vida
é como uma irritação, ou uma
incomodidade
de ser ainda nada,
como uma recordação.
leopoldo maria panero
conversação
tradução pedro serra
livros cotovia
2001
07 julho 2014
ary dos santos / kyrie
Em nome dos que choram,
Dos que sofrem,
Dos que acendem na noite o facho da revolta
E que de noite morrem,
Com a esperança nos olhos e arames em volta.
Em nome dos que sonham com palavras
De amor e paz que nunca foram ditas,
Em nome dos que rezam em silêncio
E falam em silêncio
E estendem em silêncio as duas mãos aflitas.
Em nome dos que pedem em segredo
A esmola que os humilha e destrói
E devoram as lágrimas e o medo
Quando a fome lhes dói.
Em nome dos que dormem ao relento
Numa cama de chuva com lençóis de vento
O sono da miséria, terrível e profundo.
Em nome dos teus filhos que esqueceste,
Filho de Deus que nunca mais nasceste,
Volta outra vez ao mundo!
ary dos santos
a liturgia do sangue
lisboa
1963
06 julho 2014
novalis /os hinos à noite
1
De entre os seres vivos que têm o dom da sensibilidade
haverá algum que não ame, mais do que todas aparições feéricas do extenso espaço que o rodeia, a
luz, em que tudo rejubila as suas cores, os seus raios, as suas vagas, e a
suave omnipresença do seu dia que desponta? Como se fora a alma mais íntima da
vida, respira-o o gigantesco orbe dos astros sem repouso, que flutua dançando
no seu fluxo azul - respira-a a pedra faiscante, em sempiterna paz, as plantas
sugadoras e meditativas, e os animais selvagens e ardentes, de tão várias
figuras - todavia, mais do que todos, respira-o o excelso Estrangeiro, de olhar
pensativo, passos incertos, lábios docemente apertados e repletos de harmonias.
Como um rei da terrestre Natureza, ela convoca todas as potências para inúmeras
transformações, prende e desprende perenes vínculos e envolve todos os seres
terrenos na sua celeste imagem. Somente pela sua presença desvela toda a
maravilha dos impérios do mundo.
[...]
novalis
os hinos à
noite
tradução fiama hasse pais brandão
assírio & alvim
1998
05 julho 2014
daniel faria / explicação da gravidade
A lei das coisas é tombar
Interrogando-se:
Só o pássaro vive para o voo.
Quando pousa é igual ao homem que
se senta
Para pensar.
O homem pensa que nada é mais
profundo
Que depois de Deus os filhos e os
sismos.
daniel faria
poesia
últimas explicações
quasi
2003
04 julho 2014
henry deluy / o mar
O mar era quase uma estrada ao longo da costa.
Ao longo da palavra costa. ─ Pois não havia palavra
Mais afastada de nós ─ Eram, sim, os rochedos,
À beira-mar. ─ E o mar era como uma entrada
*
Para não chegar à morte.
henry deluy
primeiras sequências
trad. colectiva Mateus, set. out. de 2000
quetzal editores
2002
03 julho 2014
ângela marques / circulares
II
havia um combóio de ti que me levava
de veneza a paris
partia todas as noites de um cais azul
quando me reencontrava com fotografias velhas
e pedaços de jornal esquecidos no banco de jardim
reconheci o teu nome mesmo que a música
não trouxesse rastos de perfume da beira
onde os rostos te ficaram tão na memória
debruço-me sobre os teus olhos até
o vento me devolver às águas
e ao fundo há uma catedral de velas
que se confundem no horizonte
assim te leio postais molhados
enquanto procuras o cheiro de roupa lavada
e um pedaço de sol em cima da cómoda
descubro que são nossas as gotas de mar
penduradas naquela janela verde quando
o riso nos vem aos lábios
o rio atravessa infinitamente este barco
podemos abrir as mãos de ternura
afastar as cortinas da solidão
e acenarmos à i1ha do sul
amanhã chegaremos aí
Porto, 8-11-81
ângela marques
circulares
nova renascença
abril/junho
primavera de 1985
02 julho 2014
sophia de mello breyner andresen / espera
Dei-te a solidão do dia inteiro,
Na praia deserta, brincando com a areia,
No silêncio que apenas quebrava a maré cheia
A gritar o seu eterno insulto,
Longamente esperei que o teu vulto
Rompesse o nevoeiro.
sophia de mello
breyner andresen
obra poética I
dia do mar 1947
caminho
1999
01 julho 2014
al berto / os amigos
no regresso
encontrei aqueles
que haviam
estendido o sedento corpo
sobre
infindáveis areias
tinham os
gestos lentos das feras amansadas
e o mar
iluminava-lhes as máscaras
esculpidas
pelo dedo errante da noite
prendiam sóis
nos cabelos entrançados
lentamente
moldavam o
rosto lívido como um osso
mas estavam
vivos quando lhes toquei
depois
a solidão
transformou-os de novo em dor
e nenhum quis
pernoitar na respiração
do lume
ofereci-lhe
mel e ensinei-os a escutar
a flor que
murcha no estremecer da luz
levei-os
comigo
até onde o
perfume insensato de um poema
os transmudou
em remota e resignada ausência
al berto
o medo
assírio &
alvim
1997
30 junho 2014
miguel serras pereira / advento
Se eu
pudesse dizer-te outra palavra
que não
fosse só este silêncio só desfeito
com ela
te diria o nome do meu filho
e
entretanto descubro que não esperamos
Também
aqui não nos espera a terra
Podemos ouvir
e beber todos os ventos
ou saber
como todas as palavras são apenas
o momento
só de outro momento
Mas nem
na morte estamos sós
Por isso
não esperamos nem cremos
e é nos
nossos corpos o silêncio de outra voz
quem
respira quando nos calamos
miguel
serras pereira
trinta
embarcações para regressar devagar
relógio d´água
1993
29 junho 2014
cesário verde / de tarde
Naquele
pique-nique de burguesas,
Houve uma
coisa simplesmente bela,
E que, sem
ter história nem grandezas,
Em todo o
caso dava uma aguarela.
Foi quando
tu, descendo do burrico,
Foste
colher, sem imposturas tolas,
A um
granzoal azul de grão-de-bico
Um ramalhete
rubro de papoulas.
Pouco
depois, em cima duns penhascos,
Nós
acampámos, inda o Sol se via;
E houve
talhadas de melão, damascos,
E pão-de-ló
molhado em malvasia.
Mas, todo
púrpuro a sair da renda
Dos teus
dois seios como duas rolas,
Era o
supremo encanto da merenda
O ramalhete
rubro das papoulas!
1887
cesário verde
o livro de cesário verde
1901
28 junho 2014
m. fernanda silva / o murmúrio sobre os olhos
O murmúrio sobre os olhos
no contorno do rosto
a brisa de um suspiro
a água que que se acalma
na planície
sobre os verdes musgos
os pequenos calhaus que brilham
como luzes de semáforos
o corpo
o corpo sem dono
sem substância
na orla do caminho
de cascalho cantante
e o murmúrio
sobre os olhos
que se fecham
à luz dos calhaus como semáforos
como gritos incandescentes
como pedras siderais
como corações moribundos
o corpo que se volatiliza
sob o sol vermelho
das madrugadas
m.f.s.
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